Precisamos de amplo esforço pela humanização das relações, nos preocupando com o básico da vida
Em 3 agosto 2020 a Revista Nature publicou outro texto de Fernando T. Maestre. Ele se viu diagnosticado com alto nível de ansiedade durante a quarentena estrita, o lockdow de 6 semanas, durante a crise da covid-19 na Espanha, e tirou disso lições muito úteis.
Basicamente, ele percebeu que sua vida estava de cabeça pra baixo e revisou posição que havia assumido em outro artigo, também publicado pela Nature, onde recomendava a alegria e profissionalismo como condições para alta produtividade na vida da comunidade científica.
Naquele artigo, publicado em 23 novembro 2018, ele questionava pesquisadores que defendiam um mecanismo de controle central, sob responsabilidade da chefia do laboratório ou do líder de equipe, para a agenda de trabalho de todos. O sucesso na profissão e na vida dependeria, naquela visão, de muitas horas de dedicação e tempo de trabalho no laboratório ou outros locais de trabalho, bem como reuniões de trabalho nos fins de semana, e assim por diante.
Entendendo que aquela visão era errada e que a produtividade dependia da alegria no grupo, algo assim como os cantos dos quebradeiras de coco durante as atividades de trabalho, ele se baseou em estudos referidos ao final deste texto, e teorizou que a produtividade e qualidade do trabalho científico - e vejam que isso vale para todos os tipos de trabalho - podia ser assegurada com atenção a poucas regras básicas, que estabeleciam necessidade de respeito às decisões e opções de cada um, em acordo negociado pelo grupo. Cada um controlando sua própria agenda, trabalhando em seus horários de preferência, com avaliações conjuntas e ausência de hierarquia de importância entre as atividades e as pessoas. Assim seria estabelecido clima de cooperação, respeito e ajuda mútua, com reflexos positivos sobre a produtividade e a qualidade do trabalho, assegurando alta performance para toda a equipe.
Parece uma receita ótima, comprovadamente funcional, para qualquer tipo de trabalho durante tempos normais.
Mas não estamos em tempos normais.
Seguindo aquelas regras, com a pandemia e o lockdown de 6 semanas, Maestre se viu num hospital, altamente estressado, com risco de repercussões dramáticas.
Observando isso publicou o artigo, distribuído agora dia 3 de agosto, na revista Nature, que motivou esta nossa conversa.
Neste artigo (One scientist’s six-point recovery plan to tackle covid-19 anxiety) Fernando T. Maestre observa que a pandemia mudou tudo. Alterou as relações entre as pessoas, suas famílias e suas atividades.
Agora, em todas as casas, as agendas de trabalho se chocam com relações de maior valor real.
Refletindo sobre isso ele propôs a orientação que aqui repito, de forma adaptada, acreditando que pode ser útil para muitos de nós, em qualquer atividade.
1 - Cancele ou deixe para depois toda atividade de trabalho que não seja VERDADEIRAMENTE essencial. No trabalho, atenha-se ao imprescindível, sem fechar prazos difíceis e organizando ações menos tensas, entre as mais complicadas, de maneira a conseguir um máximo de tempo de relaxamento.
2 - Reveja suas agendas, estabeleça um plano “de família”, incluindo rotinas de atenção diária a demandas das crianças e aos trabalhos de casa, mantendo um tempo específico, negociado, para o trabalho “profissional”.
3 - Reduza a exposição a noticiosos e mídias sociais. Saia de alguns grupos de WhatsApp, desligue o celular às 8h da noite, evite reuniões diárias via zoom. Ele diz que em sua experiência isso de início traz sensação de isolamento, mas que logo passa.
4 - Dê especial atenção ao que for positivo. Celebre qualquer coisa boa que aconteça em casa ou no mundo. Estes tempos de incerteza se tornarão mais agradáveis e interessantes se apreciarmos e comemorarmos os acontecimentos que trazem alegria.
5 - Faça exercícios físicos. Estabeleça uma rotina diária para algum tipo de esforço físico, mesmo que seja tipo hamster, correndo na frente da TV.
6 - Preste atenção a tudo que estiver fazendo, em cada momento. Lavando pratos, varrendo a casa, cozinhando. Viver cada momento, com intensidade, ajuda a esquecer ou pelo menos não sentir culpa ou remorso em relação ao que poderia estar sendo feito em outras áreas, naqueles momentos.
Isso funciona?
Ele afirma que sim. Que no caso dele a crise pessoal aconteceu porque ele havia deixado de perceber a si mesmo como uma pessoa, em um grupo com limites a serem conhecidos e respeitados. Em síntese:
· Tome conta das pessoas em volta de você. Observe, seja atencioso, paciente e carinhoso. Elas farão o mesmo, tomarão conta de você e das suas necessidades. Gentileza gera gentileza.
· Tenha consciência de que não está só. Não tenha receio de pedir ajuda e expor necessidades. Busque soluções coletivas.
· Aprenda com o próprio corpo, escute suas mensagens e atue de acordo com suas possibilidades. Se antecipe aos problemas, de início, antes que as coisas piorem.
· Desfrute as coisas boas que a vida oferece. Elas estão presentes mesmo em meio a dificuldades.
· Não pense demais no que virá a seguir. O futuro é pleno de incertezas e sempre estará além do nosso controle.
Concluindo: Danos para a saúde mental são o que mais ameaça a todos nós, nesta crise. Ou melhor, nesta superposição de crises... desemprego e pandemia, sob o desgoverno Bolsonaro, tomando água com agrotóxicos... e já com quase 100 mil mortos. Um presidente recomendando cloroquina e redes de mídia festejando a oportunidade de sermos cobaias para testes com vacinas que podem resultar em qualquer efeito colateral imprevisto. Difícil não ficar estressado.
Antes desta superposição de pandemias as carreiras profissionais e os resultados do trabalho pareciam mais importantes do que de fato eram.
E por causa deste tipo de leitura, nos deixamos enganar por campanhas de mídia e chegamos a este momento, valorizando as competições, em grupos cada dia menos solidários e mais vulneráveis a colapsos de todo tipo.
Nossa saúde mental ficou fragilizada e as pressões destes novos tempos trazem níveis de estresse sem precedentes, que tendem a se estender aos em nossa volta, ameaçando a sociedade inteira. Com a família presidencial decidida a colocar armas nas mãos de todos fica claro que precisamos mudar o rumo de algumas tendências, tão rápido quando possível.
A solução está em cada um começar consigo mesmo, junto à cada família, cada comunidade. Precisamos de amplo esforço pela humanização das relações, ampliando a preocupação com o básico da vida, a nossa e a dos outros. Olhar menos para as atividades profissionais, do passado e do futuro, e mais para o que tem valor real, positivo ou negativo, no presente. Precisamos reconstruir a nós mesmos, para podermos reconstruir o país, nas condições da nova realidade imposta pelas pandemias que nos afetam. Precisamos retomar políticas públicas de inclusão e reconstruir o respeito de todos, em relação ao Brasil, seu território e seus povos.
Enfim, precisamos assumir que esta fase ruim tem aspectos que são de nossa responsabilidade. Eles dependem de mudanças em nossos comportamentos, para serem superados.
Links recomendados
One scientist’s six-point recovery plan to tackle COVID-19 anxiety https://www.nature.com/articles/d41586-020-02298-1?utm_source=Nature+Briefing&utm_campaign=c694d7cff4-briefing-dy-20200804&utm_medium=email&utm_term=0_c9dfd39373-c694d7cff4-43678093
Seven steps towards health and happiness in the lab https://www.nature.com/articles/d41586-018-07514-7
Does Happiness Promote Career Success? Revisiting the Evidence - Walsh, L. C. et al. J. Career Assess. 26, 199–219 (2018). https://journals.sagepub.com/doi/10.1177/1069072717751441
Happiness and Productivity Oswald, A. J. et al. J. Labor Econ. 33, 789–822 (2015). https://www.journals.uchicago.edu/doi/10.1086/681096
Edição: Katia Marko