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Artigo | Líbano em chamas: a falência da pérola do Oriente Médio

Explosão em 4 de agosto de 2020 (marquem esse dia) destruiu o local onde ocorria a maior transição da economia do país

Porto Alegre | BdF RS |
A explosão que ocorreu no país intensificou a profunda crise política, econômica e social que o Líbano está vivenciando - Issa Moussalem/Cruz Vermelha do Líbano

Agosto do desgosto, é assim que a maioria de nós nos remetemos a este mês, somos supersticiosos demais em relação ao amanhã. Não é de assustar, pois 2020 tem nos trazido grandes acontecimentos dos quais nunca imaginávamos que poderiam ocorrer. Sempre fui uma pessoa otimista sobre o amanhã, mas, está difícil manter este sentimento pela quantidade de atrocidades.

Para mim, 2020 tem sido um ano de provações, não tem sido fácil viver na virada da década. Governo corrupto no poder, extremismos têm criado divisões entre as pessoas, a pobreza tem aumentado em grande escala. A única pergunta que me faço neste momento, o que tenho feito para mudar tudo isso? Você já se perguntou isso? Não é uma tarefa fácil e nunca será.

O cenário de 2020 não tem sido bom, um vírus que tem nos derrotado, entes queridos nos deixado, não é pra menos que a taxa de depressão no mundo tem aumentado, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), nos últimos 10 anos o número de pessoas com depressão aumentou 18,4%, correspondendo a 322 milhões de indivíduos, ou, 4,4% da população da Terra. No Brasil, 5,8% dos habitantes – a maior taxa do continente latino-americano – sofrem com o problema. Fatos sociais têm demonstrado uma população dependente das grandes empresas farmacêuticas, e há quem diga: “alguém tem que faturar com os problemas sociais”, ou seja, as grandes empresas produtoras de remédios realmente têm faturado às custas de uma população doente.

É difícil você encontrar alguém que não necessite de algum ansiolítico para conseguir chegar ao fim do dia. Sou uma dessas pessoas, e esta semana precisei ingerir, pois a explosão ocorrida no Líbano me deixou transtornado, desesperado e muito triste.

Na última quarta-feira, dia 4 de agosto de 2020 (marquem esta data), um armazém no porto do Líbano explodiu levando a destruição do local onde ocorria a maior transição da economia do país. A explosão que ocorreu no país intensificou a profunda crise política, econômica e social que o Líbano está vivenciando. Esta não é a primeira vez que o país entra em crise, e infelizmente não será a última, quisera eu que isso acontecesse.

Um brinde à independência

Em 1941, o Líbano e a França viviam a maior tensão que existiu no século passado, pois o país dos cedros estava lutando pela sua independência, que ocorreu em 26 de novembro de 1941. Tal ação só foi possível pela fragilidade da França durante a Segunda Guerra Mundial que permitiu a efetivação da emancipação do país. Cansados de esperar pela independência prometida, a Câmara de Deputados libanesa aprovou uma emenda constitucional que suprimiu todos os artigos relacionados ao domínio francês. A França não aceitou tal conjuntura, então o alto-comissionário Jean Helleu ordenou a prisão do então presidente recém eleito, do chefe de governo e dos três principais ministros, declarando que as mudanças na Constituição eram inválidas.

Esse cenário de repressão e autoritarismo levou o Líbano a uma insurreição geral contra os colonizadores, o que permitiu a união de todas as forças políticas em torno de uma causa comum; algo que dificilmente voltaria a acontecer. Nesse cenário de grandes mudanças políticas e rechaços sociais em relação à presença estrangeira no Líbano, a juventude local começou a se organizar politicamente. Este novo movimento foi chamado de Partido Falangista Libanês ou Kataib, em árabe, influenciado pelos falangistas espanhóis que apoiavam o general Francisco Franco. O nacionalismo libanês do Kataib teve sua doutrina e política nacional desenvolvidas principalmente em artigos panfletários supostamente escritos por Pierre Gemayel entre 1936-1947, Pierre era um farmacêutico de 21 anos que ajudou a fundar o Kataib.

A construção da Suíça do Oriente

Após anos de sublevações e governos incapazes de manter uma gestão democrática social do povo libanês, Fuad Shehab assumiu a presidência (1958) com a promessa de criar instituições políticas e sociais que pudessem manter um país ideologicamente dividido sólido. O principal programa do governo de Shehab era uma reconstrução do país, pois prometia fortalecer a solidariedade social e uma junção com o poder do Estado libanês. 

No entanto, para ter sucesso em suas funções, o então presidente tentou promover a diminuição das desigualdades sociais entre as diferentes regiões do país, como por exemplo, expandindo os serviços básicos do Estado, como saneamento e eletricidade (sobre a eletricidade, até hoje o país tem grandes quedas e há geradores pelo país, que também já foi causa de brigas internas, pois tais motores são propriedade particular e o governo não tem controle dos mesmos) e por último o crescimento da rede de ensino público no país. Além disso, o governo também criou grandes instituições como o Banco Central Libanês, o Ministério do Planejamento, o Conselho Executivo de Obras Públicas para todo o Líbano.

As mudanças feitas pelo governo de Shehab foram muito positivas, pois foi a primeira vez na história do país, recém-independente, que o Líbano era pensado e construído como um projeto nacional que incorporava todos os cidadãos ao seu plano econômico, ou seja, havia uma participação democrática de todos. O governo não estava preocupado com as relações exteriores neste momento e sim com as questões de criar um Estado libanês forte, pois suas instituições eram frágeis, assim, o Estado assumiu o papel de promover a unidade nacional.

No entanto, o governo de Shehab não apresentou nenhuma ação em relação a diminuição do poder das elites confessionais na ordem pública, mantendo assim a distribuição de cargos políticos e a estrutura jurídica do país dividida. A constituição do Estado libanês foi construída em cima de brigas de elites familiares, de um lado tínhamos líderes sunitas e de outro líderes cristãos, ambos disputavam o poder neste período e até hoje.

Aos olhos do mundo, as questões comunitárias do Líbano não podiam manchar a imagem de prosperidade e modernidade de um país cravado em uma região repleta de tensões geopolíticas.


Prédio destruído durante a Guerra Civil Libanesa de 1982, atualmente é uma galeria de importantes personagens que morreram durante a guerra civil / Foto: Bruno Younes

Anos dourados: A Guerra Civil

Antes de começarmos a discutir sobre as guerras civis que assolaram o território libanês, temos que tomar muito cuidado, pois muitas feridas que foram abertas durante esse período até hoje não foram cicatrizadas e ainda há razões para grandes discussões internas e externas à sociedade. Por mais que eu possa tomar cuidado com cada um envolvido nestes conflitos, nunca serei capaz de trazer todos os atores, vítimas e impactos humanitários dessa crise para a discussão. Nesse caso, mais do que a compreensão dos leitores, peço o desejo de contar com o respeito que se deve ter com as vítimas que sobreviveram a esse processo.

A lista de fatores que dividiam politicamente a sociedade civil libanesa em 1975 era gigantesca, porém não há dúvidas de que a Questão da Palestina, as animosidades entre posições de “esquerda” e de “direita” no Líbano da Guerra Fria e o fracasso do Pacto Nacional compunham o núcleo das hostilidades.

Não se sabe realmente se o Líbano estava preparado para uma guerra naquele momento, mas, a crise na gestão do governo passou a ser conduzida por atores externos, e os primeiros protagonistas do conflito foram a Síria e a Arábia Saudita.

Em 1976, houve a instalação da “linha vermelha” entre a Síria e Israel, dividindo assim o norte do Líbano entre essas duas nações, mas, o Líbano não aceitou tal ação. A mediação das negociações foi conduzida pelos Estados Unidos, e assegurava a credibilidade necessária ao acordo para a opinião pública internacional. Esse cenário foi formado pela eleição de um novo presidente com aval sírio, com o objetivo de conter uma crise interna.

O novo presidente eleito foi Bashir Gemayel, filho do fundador do partido Kataib, no entanto, este foi morto em 1982, resultando assim na Guerra Civil Libanesa mais sangrenta da história com a invasão dos israelenses no território. A partir desse momento, a Guerra Civil Libanesa transformou-se na imagem da barbárie em todos os veículos de comunicação internacional que tiveram acesso aos campos de refugiados atacados.

Neste cenário foi criado então o mais poderoso e permanente grupo terrorista do país – o Hezbollah, com o apoio iraniano. Ele foi ganhando espaço onde o Estado libanês não conseguia atuar, pois a população aceitou a simpatia do grupo pela força da eficiência, onde as forças armadas atuaram em rede de escolas, hospitais e órgãos que foram atingidos diretamente pelo conflito.

A primeira ação datada pelo grupo Hezbollah foi em 22 de outubro de 1983, quando um caminhão repleto de explosivos explodiu e atingiu a Embaixada dos Estados Unidos em Beirute, matando cerca de 200 soldados. A partir deste momento, o Líbano se tornou um campo minado aberto, onde ocorriam várias tentativas de disputas para influenciar a maior parcela do território.

A cortina de fumaça chamada paz

Durante o período de negociações pela paz pós-guerra civil libanesa, o governo tentou criar um projeto que tinha por objetivo reescrever a história da formação política do país, para que dessa forma pudessem recriar a identidade do povo. Essa reescrita da história foi feita desde o momento da independência do Líbano em 1943 até o término da Guerra Civil em 1990. Neste cenário também foi defendido o desarmamento das milícias que participaram da Guerra Civil, pois a ideia era reconstruir um país que a paz pudesse prevalecer e a população andar pelas ruas sem medo de uma guerra ou que um atentado ocorresse.

Nesse mesmo período o Hezbollah não deixou de ganhar força, no entanto, um novo personagem surgia em meio ao Conselho de Ministros, Rafiq Hariri se fortaleceu como uma nova liderança sunita.

Em 2005, ocorreu uma nova sublevação no Líbano, esta ficou conhecida como a Revolução dos Cedros, onde, confirmou a saída dos sírios do território libanês. Mas outro acontecimento tomou as ruas do país, um atentado em 14 de fevereiro deste mesmo ano, uma bomba com grande quantidade explosiva estourou em uma das áreas mais nobres de Beirute. O número de mortos chegou a 21, e entre eles estava o premiê Rafiq Hariri. Este acontecimento colocou novamente o Líbano nos noticiários, levando a Síria e o Irã a dizer que os israelenses eram culpados pelo atentado.


Mesquita Mohammad Al-Amin, construída entre 2002 e 2007 pelo ex-ministro libanês Rafik Hariri, no centro de Beirute, na praça dos Mártires / Arquivo pessoal

Durante os últimos 10 anos, a estabilidade política e econômica tão necessária ao Líbano ainda é um sonho a ser conquistado. Depois de 15 anos do assassinato de Rafiq Hariri o Líbano ainda tenta se reerguer, mas isso não é uma tarefa tão simples quanto muitos pensam. O ano de 2020 não tem sido fácil para os libaneses, pois desde 2018 o país tem passado por uma grave crise do governo, acusado de corrupção.

No último dia 4 de agosto, a cidade de Beirute foi assolada pela explosão que até agora se contabilizou com mais de 135 mortos e 5000 feridos, além dos 300 mil desabrigados. Esta explosão comprometeu o funcionamento do porto de Beirute, principal economia do país, onde se tinha a entrada de insumos hospitalares e suprimentos na capital.

Como agravamento dessa situação, o país já estava enfrentando uma crise interna. Esta explosão ocasionou um prejuízo enorme. Além disso tudo, os hospitais já sofriam com a superlotação ocasionada pela covid-19, e agora há grandes dificuldades de ajudar essas pessoas.

Atualmente o país possui tensões em relação as suas fronteiras com Israel e o aumento da quantidade de sírios refugiados. Cerca de 1/3 da população libanesa vive abaixo da linha de pobreza, resultado de 25% de desemprego e por último a queda do valor da moeda de 80%.

Essa situação foi agravada desde 2019, quando o governo do ex-primeiro ministro Saad Hariri (filho de Rafiq) quis criar tributos sobre vários serviços, principalmente na rede de telefonia. Já em 2020, tivemos uma nova eleição para primeiro-ministro, Hassan Diab eleito no meio do caos tentou melhorar a infraestrutura do governo, no entanto, até agora não obteve grande êxito.

Hoje, o Líbano precisa de sua ajuda, pois precisamos reconstruir a pérola do Oriente que já não brilha mais como no passado.

*Historiador, com nacionalidade libanesa

Edição: Katia Marko