Está em germinação a Nó – Micro rede de Espaços de (R)Existência de Porto Alegre
Entre as muitas reflexões que esse momento tem exigido de todas nós, uma questão que está intrinsicamente ligada à minha trajetória como mulher, artista e gestora Cultural é a relação que tenho com o teatro e com o espaço onde ele se dá. Fui uma jovem instigada e como ainda hoje, pobre. Fazer teatro dependia de ter grana para pagar cursos ou ainda a necessidade de vencer o temido vestibular, para entrar para o curso de Arte Dramática da UFRGS.
Estudei durante o primeiro grau numa escola que foi deixando de ser um grupo escolar. Ela só mantinha ensino da primeira à quarta série, e isso foi mudando junto comigo. Passei pra quinta série e criaram a primeira turma e assim consequentemente com as demais séries até o fim do primeiro grau. O vestibular nunca estava no horizonte das alunas da minha escola. Todos tínhamos que sair dali e pegar o primeiro emprego que surgisse. Eu comecei a trabalhar com 14 anos, era “diversos” numa rede de supermercados da cidade. Para esclarecer “diversos” era a função de quem fazia de tudo, como trabalhar no caixa, empacotar, embalar pra presente, suprir prateleiras e etc. Quiçá venha daí meu espírito de “mulher trabalhadeira”.
Passei ainda rapidamente por uma outra escola onde cumpri o ensino do 8º ano, mesmo período em que ganhei bolsa pra um curso de modelo e, como não tinha o menor desejo de fazê-lo, me ofereceram uma vaga no curso de teatro. Depois, por empenho da Néia (minha irmã/mãe), consegui uma vaga para fazer o segundo grau no Julinho. E lá logo me meti numa Oficina de Teatro, o que me encorajou a tentar o bacharelado no DAD. Como tudo ao redor esperava, não passei. E não teria avançado na aprendizagem e formação teatral se não tivesse cruzado o caminho com a Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz e entrado pela primeira vez na Terreira da Tribo para assistir um ensaio de Dr. Fausto, uma verdadeira missa, um rito no seu sentido mais profundo.
A certeza que nada era mais importante que estar ali, junto com essa Tribo, me fez grudar no grupo e fazer muitas, diria mesmo todas as oficinas oferecidas. Adivinhem, elas eram abertas e gratuitas!!! Condição fundamental pra uma pessoa como eu, mulher, pobre, da Vila João Pessoa, conseguir aprofundar os conhecimentos sobre teatro.
Eu comecei a frequentar esse lugar – a TERREIRA DA TRIBO – uma casa aberta e libertária, que sempre me convocava à ação, mas sem nunca descuidar da reflexão. Eu fui aprendendo de tudo, o tempo todo e com todo mundo. Mistura de auto-gestão e escambo. Quem queria aprender, assumia a responsabilidade de fazer o que queria e logo a terreira (toda a gente que são sua cabeça, pés e braços) iria prover o necessário para que cada um encontrasse seu espaço, crescendo e aprendendo.
Com o tempo e a politização eu fui entendendo que além de ter entrado em estado permanente de laboratório de aprendizagem como atriz, eu ia me tornando cidadã, a única capaz de se tornar uma ATUADORA (refogadinho feito da mistura dos ingredientes – atriz + ativista política). Uma Escola pra Paulo Freire e Darci Ribeiro nenhum botar defeito.
Essa Terreira, é L U G A R, com letras maiúsculas e grifo, tem identidade, é tecida de referências e relações H U M A N A S, também com maiúsculas e grifo. Está na contramão do status quo, e dos não-lugares. Espaços feios, sem referência, que são iguais entre si e mais parecem lugar nenhum.
A Terreira se tornou em 2000 Escola de Teatro Popular, fazendo jus a trajetória desse espaço que desde 1984 oferece oficinas de iniciação e investigação teatral de forma sistemática e independente. A Escola de Teatro, que regularmente atende um público diverso, plural e heterogêneo, ao longo desses 36 anos não estabeleceu uma relação mercadológica com a aprendizagem. Deixando um rastro solidário e um testemunho de amor ao outro na sua dimensão mais diversa.
Lugares estão espalhados por todo esse país, em geral geridos por coletivos de trabalho continuado ou grupos longevos. Em Porto Alegre, o AFROSUL – Odomodê vem desempenhando papel fundamental na divulgação e compartilhamento de elementos da cultura e identidade negra do Rio Grande do Sul.
O setentão Clube de Cultura, para alegria dos canhotos, segue de pé e proporcionando alegres e esperançosos encontros entre “as gentes” que acreditam no homem e possibilidade de um mundo que supere a luta de classes. Um espaço que reuniu a esquerda porto-alegrense em diferentes momentos da nossa história e que segue, ainda hoje, testemunha dos nossos sonhos.
Tem ainda o Meme, o mais jovem entre os espaços aqui citados, que tem desempenhado um papel fundamental no fomento ao auto cultivo, vital em dias como esses que estamos vivendo. Um espaço que promove amizades sinceras. Para citar apenas alguns dos tantos espaços que formam essa rota de espaços/fluxos que oxigenam diariamente a vida na cidade e seguem reforçando a minha cidadania e a tantas e tantos mais.
Provocados pela companheira Carmen Nunez, mulher a esquerda e frequentadora atenta destes espaços Culturais emblemáticos da cidade, começamos a estabelecer um calendário de reflexões coletivas, para entender o que mais podemos trocar e desenvolver juntos. Está em germinação a Nó – Micro rede de Espaços de (R)Existência de Porto Alegre e conta com: Clube de Cultura, Meme Santa Estação, Afrosul – Odomodê e Terreira da Tribo.
Oxalá a Lei Aldir Blanc garanta a existência desses e de outros espaços fundamentais, que promovem dia a dia a comunhão, o crescimento coletivo, a aprendizagem solidária e os sonhos que valem a pena.
Evoé!
Obs: Deixo abaixo o link da live “Espaços independentes e Cultura de (R)Existência”, realizada pelo Brasil de Fato RS em parceria com a Rede Soberania.
Edição: Katia Marko