Rio Grande do Sul

PANDEMIA

Live denúncia traz mais informações sobre o surto nos hospitais psiquiátricos

Fórum Gaúcho de Saúde Mental e entidades contestam retorno do estado sobre surto e cobram transparência

Brasil de Fato | Porto Alegre |
BdFRS e Rede Soberania abriram espaço para denúncias nos hospitais Psiquiátrico São Pedro e Colônia Itapuã - Reprodução

Após os relatos de trabalhadores da saúde mental sobre um surto de covid-19 no Hospital Psiquiátrico São Pedro e no Hospital Colônia Itapuã e sobre falta de medidas efetivas para evitar a contaminação de pacientes e dos profissionais, o Brasil de Fato RS e a Rede Soberania promoveram uma live, na segunda-feira (27), em parceria com o Fórum Gaúcho de Saúde Mental (FGSM), para trazer mais detalhes sobre o tema.

Integrantes do Fórum e representantes de entidades da sociedade civil organizada trouxeram novas denúncias e confrontaram a posição da Secretaria Estadual da Saúde (SES). Em nota, a pasta contrariou as acusações, afirmando que a situação está sob controle, que testes estariam sendo realizados em pacientes e trabalhadores, EPIs estariam sendo distribuídos e protocolos estariam sendo cumpridos.

Ambos os hospitais são administrados pelo governo estadual e já registraram óbitos de moradores, além de dezenas de contaminados. Conforme os participantes da live, o surto de covid-19 é resultado de uma política de abandono dessas instituições, que há anos passam por um processo de desmonte, agravado pelo descumprimento da lei da reforma psiquiátrica. A reforma prevê uma mudança no cuidado a pessoas com transtornos mentais, redirecionando os investimentos para o atendimento em liberdade, com garantia dos direitos humanos.

Mais denúncias

Integrante do FGSM, o ex-coordenador da Desinstitucionalização Hospital São Pedro (2011 a 2014) Rafael Wolski abriu a live destacando que o Fórum de solidariza com as vítimas e que, desde março, tem solicitado informações sobre protocolos e providências quanto a moradores e trabalhadores do Hospital Psiquiátrico São Pedro. “Mas a resposta da SES era que estava tudo bem, situação sob controle. Depois, com as denúncias, vimos que não era verdade”, criticou.

Ele ressaltou que o Fórum segue recebendo denúncias. “Hoje mesmo (segunda-feira) a gente recebeu algumas denúncias sobre essa precariedade, alguns trabalhadores dizem que da semana passada para cá foram realizados testes e tem uma estimativa de 80% dos moradores terem confirmado covid”, revelou. Entre as mais sérias estão “algumas que remetem ao tempo medieval”. O relato é que usuários do Hospital Colônia Itapuã que morreram de covid estariam sendo enterrados no próprio hospital.

Rafael reforçou também as denúncias feitas pelos servidores ao Brasil de Fato, contrariando as informações da nota da SES. Segundo trabalhadores, faltam equipamentos de segurança individual (inclusive alguns compraram o EPI do próprio bolso), faltam testes para trabalhadores e usuários que tiveram contato com pessoas positivadas, são precárias as condições de estrutura com impossibilidade de fazer isolamento, faltam funcionários e não há reposição de afastados. “Essa catástrofe dos usuários mal cuidados e mal tratados, que não podem muitas vezes nem virar estatística, isso se refere a uma falta de política clara de desinstitucionalização nos hospitais psiquiátricos”.

Quadro “assustador e inaceitável”

O presidente do Conselho Estadual de Saúde (CES/RS), Claudio Augustin, avaliou que “o quadro é assustador, inaceitável que o Hospital Psiquiátrico São Pedro e o Colônia Itapuã passem por um surto de covid”. Conforme contou, o CES tem atuado desde o início da pandemia, cobrando o governo do estado e debatido a necessidade de isolamento social, de testes, EPIs e garantia da vida das pessoas.

“Quando tivemos acesso a essa denúncia, a gente considerou algo bastante grave, uma denúncia de surto em dois locais que teriam que ter um cuidado todo especial”, disse Claudio. Ele recordou que o Hospital Colônia Itapuã é um local isolado, sem circulação de pessoas, exceto moradores e servidores. “Ou seja, nada justifica um surto desta natureza. O que justifica é a falta de cuidados. Pelas informações que temos, tem 24 pacientes infectados, dos 30 servidores 15 estão afastados e 8 positivados, é um número altíssimo”.

Sobre o Hospital Psiquiátrico São Pedro, ele afirmou que o número de contaminados também é inaceitável. “Existem protocolos e esses, bem ou mal, deve ser executados. Temos denúncia de falta de teste, falta de EPI, falta de condições de higienização necessária. Para ter esse nível de contaminação, é porque falta cuidado. Temos entrada de pessoas sendo baixadas sem os devidos testes e precauções para evitar a contaminação. Dizem que não foi ninguém que veio de fora, então foi alguém la de dentro. Há necessidade de ter rigor no controle da circulação”, avaliou.

Conforme Claudio, o CES/RS vai apresentar denúncia ao Ministério Público Estadual e às comissões de Direitos Humanos e de Saúde da Assembleia Legislativa. “A SES vai ter que dar respostas concretas de porque surgiu esse surto e quais as ações efetivas que foram tomadas para evitar maior contaminação. É necessária uma ampla investigação sobre tudo o que aconteceu lá dentro, que haja transparência e rigor”.

Falta de planejamento de vida

Também integrante do FGSM, a psicóloga e ex-coordenadora do projeto São Pedro Cidadão, Fátima Fischer, fez um apelo ao governo do estado e à prefeitura para que medidas sejam tomadas. “Quem não faz um planejamento dirigido a essa população desassistida, anônima, abandonada e excluída, não é sério na sua gestão. Uma das medidas que deveriam ter sido tomadas era planejar assistência ao quadro esperado que se apresentaria nas instituições totais, como presídios, hospícios.”

Ela destacou que são locais historicamente com precariedade de estrutura física e dificuldade de pessoal. “A questão que nos indigna é não haver um planejamento de vida, nos parece que há um planejamento de morte”, criticou. Fátima contou que o FGSM encaminhou a denúncia para a defensoria pública e o grupo espera que a força da sociedade organizada seja capaz de pressionar o governo para que “se ofereça algum tipo de cuidado e garantia dos direitos dos nossos usuários”.

Fátima trouxe a memória de “outros tempos, de desinstitucionalização”, de uma luta pelo cuidado em liberdade, mas que agora o governo tem outras prioridades. “Temos cobrado um plano para evitar isso, que era previsto, que o estado deixasse de priorizar a privatização e pensar em investimento em outras áreas para investir num cuidado digno dentro dos hospitais fechados como o São Pedro, que não é um hospital, mas um manicômio, porque hospital produz saúde”.

Cumprimento da lei de reforma psiquiátrica

O vice-presidente do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) e membro da Associação Brasileira de Saúde Mental, Leonardo Pinho, afirmou que o CNDH, bem como o Conselho Estadual de Direitos Humanos, vão atuar firmemente para apurar essas denúncias. Ele lembrou que o RS foi vanguarda no Brasil com a criação de uma lei de desinstitucionalização, em 1992, antes mesmo da lei nacional, de 2001, mas nesse momento não cumpre a legislação. Conforme relata, em inspeção feita pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, Ministério Público Federal e conselhos profissionais, em 2018, já foram constatadas diversas irregularidades apontadas nas denúncias.

Segundo ele, os conselhos estadual e nacional de Direitos Humanos oficializaram, na segunda-feira, um ofício junto à SES, solicitando informações em dois blocos. Primeiro sobre o surto, questionando sobre EPIs disponibilizados, quadro de funcionários e substituições, se há um plano de contingência sobre covid e quando iniciou, se há fluxo com hospitais gerais para encaminhar pacientes que precisam de tratamento e se todos foram testados. “É só apresentar a lista de materiais e compras. Se foram testados, que se apresentem os testes e quando, pois tinha que ter testado desde o início e ir acompanhando, não adianta agora”.

O segundo bloco é sobre o cumprimento da lei, se existe atualmente um plano de desinstitucionalização no estado. “Já estamos em processo, com o levantamento dessas informações, pretendemos construir uma recomendação conjunta para o caso do surto, mas também para o processo de um plano de desinstitucionalização para o estado do RS”, afirmou.

Política do estado coloca vida da população em risco

A presidenta do Sindsepe/RS, Diva Costa, entende que a política que Eduardo Leite está implementando é ineficaz no controle a pandemia e assemelha-se com o que o governo federal faz. “Essa é uma grande semelhança entre a política implementada pelo Leite e pelo Bolsonaro. Eduardo Leite faz toda propaganda dessa proposta fracassada dele, que a gente tem chamado de distanciamento descontrolado, que só tem colocado a vida de toda a população em risco. A SES seguindo os passos do governador, também não implementa e não fiscaliza nem o próprio Centro Administrativo”, criticou, sinalizando que a secretaria coloca em risco a saúde dos trabalhadores e do público em geral que frequenta aquele espaço.

“No Hospital São Pedro e no Colônia Itapuã, já há algum tempo que o sindicato vem se reunindo com trabalhadores desses dois locais e nas últimas três semanas se agravou muito a situação. Essa denúncia e a cobrança do estado de que ele precisa fornecer EPI, principalmente a servidores da saúde que continuam na linha de frente, não especificamente na covid, mas que continuam fazendo atendimento como no Hospital Sanatório, no São Pedro, no Ambulatório de Dermatologia Sanitária, é uma briga que a gente está trazendo desde início da pandemia”, afirmou Diva.

Para ela, a manifestação da SES e da direção do São Pedro de que testa seus funcionários “é a maior mentira que tem, porque na quinta-feira mesmo eu recebi mensagem de uma servidora sintomática que teve contato com paciente um dia antes. O encaminhamento dado a ela foi que ela procurasse as tendas que o Marchezan mandou armar aí por Porto Alegre, para que ela fizesse o teste”. Diva contou que o sindicato fez uma denúncia no Ministério Público do Trabalho (MPT).

“O que dói é o destrato”

Militante do FGSM e da luta antimanicomial Paulo Michelon considera-se um antimanicomiólogo. Já esteve internado em hospitais psiquiátricos. Na sua avaliação, essas instituições deveriam proteger e dar amparo, mas são locais de descuidado. “Não é agora por causa da covid, que é um problema grave”, afirmou.

“O que dói é o destrato. A reforma psiquiátrica a gente tentou e fez no estado e no país como um todo, uma outra forma de tratar os pacientes e usuários, uma forma mais humanizada. Foi quando se criou o São Pedro Cidadão, várias alternativas, inclusive de usuários voltarem à sua cidade de origem, repatriar com suas famílias”, recordou.

Paulo lamentou que a reforma psiquiátrica tenha ficado no passado. “Eu conheci o Fórum em 1993 e outras pessoas depois, o Fórum foi o responsável no RS por movimentar essa reforma psiquiátrica, lutou, foi atrás, criou o serviço quando tivemos parceiros gestores no governo”. Para ele, a denúncia é urgente. “O governo tem que fazer a parte dele, ele tem que cumprir com a lei. Se cumprisse, eu duvido que esses usuários estariam lá ou que teria esse surto”.

Assista à live denúncia na íntegra:

Edição: Katia Marko