Ao lembrar e celebrar, neste 25 de julho, o dia dedicado aos que produzem o alimento que chega em nossas mesas, os milhões de camponesas e camponeses de todo o Brasil, nestes tempos de pandemia, fome, desrespeito por quem trabalha, ameaças a direitos e às liberdades, muitas ideias e recordações nos vem ao coração e à mente.
Produzir alimentos não é simplesmente uma profissão. É uma missão. Produzir alimentos saudáveis não é simplesmente uma técnica. É uma arte. Produzir alimentos respeitando e interagindo com o meio ambiente, não é simplesmente uma ciência. É uma sabedoria.
Conviver com as intempéries do tempo e começar sempre de novo não é simplesmente uma teimosia. É cultivar esperança. Gostar de conviver com a natureza e produzir em harmonia com ela não é simplesmente ser agroecologista. É amor à vida.
Quem enfrenta chuva, frio, seca, incertezas, incompreensões, preconceitos, desprezos, governos ruins e governos ausentes, e assim mesmo resiste e persiste, para cuidar da terra e produzir alimentos, é mais que um simples ser humano. É um ser lutador.
Cultivar hábitos comunitários e costumes coletivos não é só tradição cultural. É crer na solidariedade. Admirar a lua, contemplar as estrelas, ouvir com gosto o cantar dos pássaros, deleitar-se ao som da viola, é mais que artista. É poesia ao natural.
Preservar e cuidar sementes crioulas, raças caipiras e mudas nativas, em ambiente adverso e difícil, pressões e combates de todos os lados, é mais que um capricho preservacionista. É a dura luta para manter puras algumas fontes, sem as quais, não se terá meios para resgatar a alimentação saudável.
Tudo isto e muito mais, são e fazem os heróis e heroínas sem medalhas que se espalham pelos campos e pequenas cidades deste imenso Brasil, estendendo à mesa do povo Brasileiro mais de 70% do entra em sua boca para alimentar o seu corpo.
Lembro dois fatos que muito me impressionaram ao longo de minha trajetória pessoal. Um faz tempo. Outro foi há poucos dias.
Convidado pelas educadoras, fui a uma escola do campo no município de Júlio de Castilhos, no Assentamento Ramada. Interagindo com as crianças, perguntei:
- Quem domesticou plantas da natureza transformando elas em alimentos para nosso uso?
Um intrépido menino levantou o dedo e respondeu:
- Foi o cientista.
A resposta me tomou de surpresa. Não esperava. Fiquei confuso. Meu cérebro girou a mil.
O primeiro pensamento. “Há uma concepção difusa na mídia e na escola que tudo nasce em laboratório, da mão de algum cientista”.
Mas me veio um segundo pensamento e expressei diante de incrédulas crianças.
- Sim, foi um cientista. Mais correto, uma cientista. Só que este cientista não está num laboratório com roupa branca e óculos redondo caído em cima do nariz. Você conhece este cientista. Mora perto de você. É teu pai e tua mãe. Tem mãos calejadas. Tira leite. Planta feijão. Te abraça, te beija.
E expliquei, com curiosas perguntas:
- De onde veio o trigo?
- Camponesas negras da África, nas margens do Rio Nilo, domesticaram o trigo.
- De onde veio o milho?
- Indígenas do México, milhares de anos atrás, fizeram do milho um alimento para todos nós.
- E a mandioca? E a batata?
- Mandioca vem dos índios do Brasil. Batata vem dos índios dos Andes, Bolívia e Peru.
- E a salsa, frei?
- A maioria dos temperos e das hortaliças foram agricultoras e agricultores que cultivaram pela primeira vez ao redor do Mar Mediterrâneo.
E assim fomos, alegremente, vendo o quanto estes/as cientistas fizeram ao longo da história humana, começando com as mulheres observando como nasciam e cresciam as sementes jogadas em seus pátios, muito nos antigamente.
O outro fato. Visito o camponês João Maria, no Assentamento Jaguarão, no limite entre os municípios de Hulha Negra e Aceguá, onde colhia milho crioulo para sementes. João Maria é histórico lutador do MST. Muito lutou para chegar ao lote onde mora e continua militante e dirigente do Movimento.
A estiagem foi bruta na região este ano e a maioria das sementes se perderam ou renderam pouco. Mas ele plantou numa várzea e mesmo com pouca chuva, havia o que colher.
- Oh, João Maria... Como você conseguiu produzir milho com esta baita seca?
A resposta me arrepiou.
- Frei, eu planto com capricho. Só planto semente pura. Quando termino de plantar, atiro meu chapéu no chão, me ajoelho, olho prá cima e digo: “Meu Deus, eu fiz a minha parte, plantei, vou cuidar, agora me dê o que eu mereço”. E atirou seu inseparável boné do MST no chão da terra, refazendo seu gesto.
A fé, em suas vária formas e expressões, é companheira inseparável destes resistentes, heroínas e heróis, cientistas da natureza, tão necessários à toda a humanidade, nestes tempos bicudos em que vivemos. Talvez por isto tenham tanta fibra, tanta esperança, tanta força mística, tanta beleza poética em seu viver, mesmo enfrentando tantas injustiças.
Por isto que, Quem alimenta o Brasil, tem o direito de EXIGIR RESPEITO.
*Frade Franciscano, militante do MPA, autor de “Trincheiras da Resistência Campoesa”.
Edição: Marcos Corbari