Rio Grande do Sul

Coluna

O fascismo como solução neurótica (parte 1)

Imagem de perfil do Colunistaesd
Uma criança que pode crescer em contato com suas emoções e impulsos biológicos é capaz de aprender espontaneamente os limites porque nela está preservada a função de contato - Newton Medeiros
A distorção da função biológica do contato é o primeiro elemento da neurose

Vimos nesta coluna que, ao longo processo de desenvolvimento biológico, psíquico, emocional e sexual dos indivíduos no seio das famílias patriarcais, desde seu nascimento até a idade adulta, é comum ocorrer o que chamamos de repressão sexual. Em um sentido amplo, podemos entender que a repressão da sexualidade é todo o movimento de bloqueio e interrupção do caminho natural e espontâneo de um impulso biológico. A possibilidade de expressão e descarga desses impulsos, que é sentida psiquicamente como prazer e alívio, é o que garantiria a regulação emocional saudável.

Entretanto, nossa sociedade estabelece uma divisão e uma oposição artificiais entre repressão e licenciosidade. Desse modo, tendemos a conhecer apenas, na educação, o caminho da repressão, da ordem e do ajustamento. Tendemos a temer a possibilidade de livre expressão dos impulsos biológicos porque a interpretamos como a realização ilimitada e até desrespeitosa de qualquer impulso, sem considerar as circunstâncias. Isso é um dos mitos que sustentam ideologicamente a necessidade da repressão.

O caminho da autorregulação emocional, ao contrário, busca alternativas para a realização dos impulsos que não sejam nocivas nem para o indivíduo e nem para aqueles ao seu redor. Faz parte da autorregulação biológica saudável – segundo observado por Wilhelm Reich nos pacientes que recuperavam sua capacidade de autorregulação – a preocupação e o vínculo afetivo com os demais. Isso dá à noção de liberdade dos impulsos a necessidade espontânea do limite: realizar o impulso sem ferir aqueles que nos rodeiam. Isso demanda que nossos impulsos se adaptem. E eles se adaptam, porque nossa natureza orgânica é dotada de plasticidade. Acontece que nosso funcionamento orgânico e emocional está tão distorcido que essa possibilidade não é sequer considerada: a liberdade como um estado orientado pelo senso de cuidado, responsabilidade e lucidez a respeito de si mesmo e dos outros.

A repressão dos impulsos biológicos distorce aquilo que Reich conceituou como “contato”. Contato é a sensação de ligação e conexão consigo e com o mundo. É também a capacidade de perceber e se conectar energeticamente com o momento presente e com todos os seus elementos (o eu, o outro, o ambiente, as coisas). O contato torna possível que interpretemos as emoções das pessoas e possamos saber se estão bem ou não sem a necessidade de palavras. O contato conosco mesmos torna possível a nós perceber de forma integrada o que estamos sentindo, nossos impulsos, nossos pensamentos, nossas reações ao ambiente, etc. O contato é o que nos permite cuidar de nós mesmos, dos outros e do planeta. Ele nos dá a sensação de ser parte desse mundo, de estarmos conectados. A distorção da função biológica do contato é o primeiro elemento da neurose. Quando precisamos tornar nossos impulsos, pensamentos e ações inconscientes para melhor reprimi-los, temos que desorganizar nosso contato. Do contrário, a neurose não seria possível.

Uma criança que pode crescer em contato com suas emoções e impulsos biológicos é capaz de aprender espontaneamente os limites porque nela está preservada a função de contato. Ela se sente parte do mundo e, se está saudável, não faria algo para ferir as relações e os entes que a nutrem.

Quando distorcemos nossas funções vitais perdemos também a capacidade de confiar em nosso organismo, em nossa percepção, em nossa capacidade de sustentar nossa existência. Essa perda de confiança está baseada em nossas próprias sensações orgânicas de insegurança e falta de clareza, que já são, elas mesmas, produto da distorção. Assim, nos sentimos impelidos a educar e adaptar as crianças a esse mundo, porque não podemos enxergar nelas a capacidade de contato, a lucidez e a plasticidade de seus organismos.

Na esteira desse processo, os mecanismos orgânicos de descarga dos impulsos e regulação emocional – o choro, o grito, o orgasmo, correr, pular, gargalhar, explorar o ambiente e o próprio corpo – foram suprimidos, tratados como feios, sujos, irritantes, inadequados. Para lidar com essas forças internas, agora proibidas, as crianças aprendem com os adultos mecanismos comportamentais, cognitivos, somáticos que tendem a desviar neuroticamente esses impulsos. Essas ferramentas ajudam a consumir energia dos impulsos e, ao mesmo tempo, suprimir de nossa consciência o conflito entre impulso e repressão. Assim se desenvolvem os mecanismos defensivos, isto é, que tem a função de defender o indivíduo de suas próprias forças internas que estão proibidas pelo contexto social.

Lançar mão de mecanismos neuróticos de contenção leva à perda de autonomia e à perda de autoconfiança. Isso porque nossas maiores ferramentas de solução de conflitos, de exploração do mundo e de construção de estruturas – nossos corpos – foram distorcidas, desautorizadas, negligenciadas. Se não podemos mais confiar em nosso maior instrumento de contato com a realidade (porque ele de fato está desorganizado), passamos a depender de fórmulas externas, de líderes e de figuras que nos indiquem sempre o caminho.

Acontece que a solução neurótica é sempre paliativa. Ela gera também uma fixação do indivíduo em seus conflitos geradores das distorções biológicas: o impulso que não pode ser visto ou realizado permanece vivo no organismo, o que torna necessário que o indivíduo lance mão constantemente dos mecanismos defensivos. E quando esses mecanismos defensivos falham por algum motivo, aparecem fortes sintomas na forma de doenças emocionais, ou mesmo físicas.

Os mecanismos de defesa carregam em seu cerne, de forma complexa, o impulso biológico inicial, a emoção gerada pela sua distorção, o conteúdo psíquico do impulso e a própria noção de que estamos suprimindo algum impulso. Essa é a sofisticada e poderosa organização do mecanismo neurótico. Uma de suas principais forças se encontra na resistência individual a interromper esse ciclo, porque essa interrupção significaria, para cada pessoa, entrar em contato com os impulsos e as reações emocionais intensas que estão sendo contidas... e isso dá muito medo!

Assim, podemos dizer que uma solução neurótica é aquela que gera, sustenta ou mantém intacto esse arranjo de repressão dos impulsos e sua distorção, com todas as implicações corporais, psíquicas e sociais que isso tem.

O fascismo, tema desta série de artigos, é tão sedutor justamente por se tratar de um movimento social e político que se alimenta das neuroses das massas, que utiliza e amplifica os mecanismos neuróticos de distorção dos impulsos biológicos das pessoas. A força de que ele se alimenta é a força dos impulsos biológicos humanos em estado de distorção. CONTINUA

Descrição da imagem: trata-se de uma fotografia em preto e branco que mostra duas crianças caminhando abraçadas por uma estrada de terra, margeada por grama e vegetação.

 

Edição: Katia Marko