Rio Grande do Sul

OPINIÃO

Artigo | Dia da Mulher Negra Latino-americana e Caribenha

Conheça a história de oito mulheres negras que abriram caminho para que tantas outras possam realizar seus sonhos

Brasil de Fato | Porto Alegre |
A data no país foi regulamentada pela presidenta Dilma como o Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra - Preprodução Prefeitura de São Francisco do Conde

Meu choro não é nada além de carnaval
É lágrima de samba na ponta dos pés
A multidão avança como vendaval
Me joga na avenida que não sei qualé
Pirata e super homem cantam o calor
Um peixe amarelo beija minha mão
As asas de um anjo soltas pelo chão
Na chuva de confetes deixo a minha dor
Na avenida, deixei lá
A pele preta e a minha voz
Na avenida, deixei lá
A minha fala, minha opinião
A minha casa, minha solidão
Joguei do alto do terceiro andar
Quebrei a cara e me livrei do resto dessa vida
Na avenida
Dura até o fim
Mulher do fim do mundo
Eu sou e vou até o fim cantar

(Trecho da música Mulher do Fim do Mundo, de Elza Soares)

Em 1992, foi organizado o primeiro Encontro de Mulheres Negras Latinas e Caribenhas, em Santo Domingos, na República Dominicana, em que discutiram sobre machismo, racismo e formas de combatê-los. Daí surgiu uma rede de mulheres que permanece unida até hoje. Do encontro, nasceu também o Dia da Mulher Negra Latina e Caribenha, lembrado todo 25 de julho, data que foi reconhecida pela ONU ainda em 1992.

Assim como o Dia Internacional da Mulher (comemorado em 8 de março), o 25 de Julho não tem como objetivo festejar. A ideia é fortalecer as organizações voltadas às mulheres negras e reforçar seus laços, trazendo maior visibilidade para sua luta e pressionando o poder público. Por isso, no Brasil, no Caribe e na América Latina em geral, diversos eventos de protesto e luta são planejados para marcar a data.

A data no país foi regulamentada a partir da Lei nº 12.987/2014, sancionada pela presidenta Dilma Rousseff, como o Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra. Tereza de Benguela foi uma líder quilombola que viveu durante o século 18. Com a morte do companheiro, Tereza se tornou a rainha do quilombo, e, sob sua liderança, a comunidade negra e indígena resistiu à escravidão por duas décadas, sobrevivendo até 1770, quando o quilombo foi destruído pelas forças de Luiz Pinto de Souza Coutinho e a população (79 negros e 30 índios), morta ou aprisionada.

Uma das maneiras de marcar a data, permitindo reflexões acerca das opressões sofridas pelas mulheres negras latino-americanas e caribenhas é dar visibilidade às histórias de vidas de outras mulheres que como Tereza, foram e são importantes para a nossa história. E que com trabalhos impecáveis e perseverança deixaram um legado que cabe a nós reverenciarmos e visibilizarmos, como forma de homenagear. Entre elas, Lélia Gonzalez, Carolina Maria de Jesus, Elza Soares, Benedita da Silva, Ruth de Souza, Conceição Evaristo, Antonieta de Barros e Enedina Marques entre tantas outras.


Lélia deu origem ao conceito de Amefricanidade, enfocando a questão do negro da diáspora / Reprodução

Lélia Gonzalez foi filósofa, antropóloga, professora, escritora, intelectual, militante do movimento negro e feminista. Em sua trajetória – encerrada há 25 anos –, teoria e prática estiveram organicamente conectadas. “A gente não nasce negro, a gente se torna negro. É uma conquista dura, cruel e que se desenvolve pela vida da gente afora. Aí entra a questão da identidade que você vai construindo. Essa identidade negra não é uma coisa pronta, acabada. Então, para mim, uma pessoa negra que tem consciência de sua negritude está na luta contra o racismo. As outras são mulatas, marrons, pardos etc.” Esse trecho está num depoimento de Lélia de Almeida Gonzalez, publicado em 1988.


Escritora morreu aos 62 anos, em 1977, de insuficiência respiratória / Reprodução

Carolina Maria de Jesus foi uma autora brasileira, considerada uma das primeiras e mais destacadas escritoras negras do país. Ela é autora do livro best seller autobiográfico “Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada”. Com o sucesso das vendas, Carolina deixa a favela e pouco depois compra uma casa no Alto de Santana. Recebe homenagem da Academia Paulista de Letras e da Academia de Letras da Faculdade de Direito de São Paulo. Em 1961, a autora viaja para a Argentina onde é agraciada com a “Orden Caballero Del Tornillo”. Nos anos seguintes, Carolina publica: “Casa de Alvenaria: Diário de uma Ex-favelada” (1961); “Pedaços da Fome” (1963) e “Provérbios” (1965).


Elza mostra caminhos para a afirmação de uma identidade brasileira, formada por mil nações / Divulgação

Elza Soares é uma mulher de fibra. Com uma história de luta contra o preconceito, consagrou-se como uma das maiores intérpretes da música mundial. Pouco mais de um mês após completar seus 80 anos, a cantora ainda vibra por testemunhar cada conquista de espaço pelas minorias. “Enfrentei muito o preconceito. Fui a primeira negra a cantar em boates onde negros não tinham acesso, o meu canto me ajudou a me posicionar e me colocar em um lugar onde podia brigar por igualdade”, lembra. A persistência da cantora, que já foi faxineira e empregada doméstica, foi a solução que a levou para chegar ao topo da carreira. “Não sei fazer outra coisa além de cantar… sei cozinhar, mas não posso assumir a cozinha por conta do meu problema de coluna… É no palco que sou feliz”, diz.


Benedita foi a 59ª governadora do Rio de Janeiro e atualmente é deputada federal / Reprodução

Benedita Sousa da Silva Sampaio é uma servidora pública, professora, auxiliar de enfermagem, assistente social e uma política brasileira. Foi a 59ª governadora do Rio de Janeiro e atualmente é deputada federal. Preta e nascida na favela carioca, de pai pedreiro e mãe lavadeira, a deputada federal Benedita da Silva (PT), diz, aos 78 anos, que nunca sentiu medo pela sua raça como nos dias de hoje. E decreta que o 13 de maio, data em que a princesa Isabel assinou a abolição da escravatura, não se celebra: “O extermínio da população negra continua”. Evangélica e mãe de dois, Benedita diz que ora todos os dias para que esse quadro não piore já que, na avaliação dela, o Brasil vive “um retrocesso inigualável”, com “gestores machistas” e “governantes e executivos que querem que a gente morra”. Benedita foi a primeira mulher negra em muitos locais de destaque: na Câmara dos Vereadores do Rio, onde chegou em 1982 sob o slogan “negra, mulher e favelada”; no Senado, em 1994, e no governo do Rio (2002-2003), quando substituiu Anthony Garotinho, que se afastou para concorrer à presidência. “Somos ainda poucas mulheres lutando como um lobo contra o canhão”, ela diz: “No dia em que Marielle [Franco, vereadora carioca assassinada em 2018] morreu, ela falava que a primeira vereadora negra, da favela, fui eu e que levou 10 anos para outra entrar, a Jurema Batista. E dizia: ‘Agora estou aqui, precisamos mudar essa história’. Fico arrepiada porque é meu sonho ver a mulherada preta ocupando esses espaços. Está faltando oportunidade.”


Ruth foi a primeira atriz negra a se apresentar no Theatro Municipal do Rio de Janeiro / Globo / João Cotta

Ruth de Souza nasceu em 12 de maio de 1921, no bairro do Engenho de Dentro, na Zona Norte do Rio de Janeiro. Ela foi a primeira atriz negra a se apresentar no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. E fez história no dia 8 de maio de 1945, ao se apresentar em “O Imperador Jones”, de Eugene O’Neil, numa montagem do Teatro Experimental do Negro, grupo fundado por Abdias Nascimento e Agnaldo Camargo. E seu feito ajudou a abrir caminho para o artista negro no Brasil. Morreu em 28 de julho de 2019 aos 98 anos. No ano passado, 2019, foi homenageada pela escola de samba Acadêmicos de Santa Cruz durante desfile da Série A do carnaval do Rio. Seu último trabalho, na TV Globo, foi na minissérie “Se eu fechar os olhos agora”, também em 2019.


Em um gesto de resistência, Conceição registrou sua candidatura à cadeira de número sete da Academia Brasileira de Letrass / Foto: Júlia Dolce

Conceição Evaristo, escritora negra que decidiu desafiar a Academia Brasileira de Letras, instituição que elegeu em 29 de agosto de 2018 Cacá Diegues para a cadeira número 7. Cacá vai substituir o cineasta Nelson Pereira do Santos e derrotou outros dez candidatos, entre eles Conceição Evaristo, a escritora negra que decidiu desafiar a instituição. Aos 71 anos, a mineira optou por uma espécie de anticandidatura e causou incômodo ao dispensar a bajulação habitual para ganhar votos dos imortais que frequentam o “clube de amigos”. Sua derrota era esperada: Evaristo entrou na disputa para expor a falta de representatividade negra e feminina na centenária academia. Recebeu apenas um voto. Cacá, 22, e Pedro Corrêa do Lago, neto de Oswaldo Aranha, outros 11 votos. A candidatura da autora, que publicou seis livros ao longo da carreira e já venceu o Jabuti, o mais tradicional prêmio da literatura brasileira, surgiu após uma provocação da jornalista carioca Flávia Oliveira. “Eu voto em Nei Lopes ou Martinho da Vila. Sem falar na Conceição Evaristo. ‘Tá’ faltando preto na Casa de Machado de Assis”, declarou ao colunista Ancelmo Gois no jornal O Globo em 25 de abril do mesmo ano, ao lembrar o espaço vago na academia.


Antonieta foi a primeira deputada estadual negra do país / Reprodução

Antonieta de Barros nasceu em Florianópolis, Santa Catarina, em 11 de julho de 1901. De família muito pobre, ainda criança ficou órfã de pai, sendo criada pela mãe. Ingressou com 17 anos na Escola Normal Catarinense, concluindo o curso em 1921. Professora de Português e Literatura, Antonieta exerceu o magistério durante toda a sua vida, inclusive em cargos de direção. Foi professora do atual Instituto de Educação entre os anos de 1933 e 1951, assumindo sua direção de 1944 a 1951, quando se aposentou.

Antonieta notabilizou-se por ter sido a primeira deputada estadual negra do país e primeira deputada mulher do estado de Santa Catarina. Eleita em 1934 pelo Partido Liberal Catarinense, foi constituinte em 1935, cabendo-lhe relatar os capítulos Educação e Cultura e Funcionalismo. Atuou na Assembleia Legislativa catarinense até 1937, quando teve início a ditadura do Estado Novo. Com o fim do regime ditatorial, ela se candidatou pelo Partido Social Democrático e foi eleita novamente, em 1947, desta vez como suplente. Na ocasião, continuou lutando pela valorização do magistério: exigiu concurso para o provimento dos cargos do magistério, sugeriu formas de escolhas de diretoras e defendeu a concessão de bolsas para cursos superiores a alunos carentes.

Além da militância política, Antonieta participou ativamente da vida cultural de seu estado. Fundou e dirigiu o jornal A Semana entre os anos de 1922 e 1927. Neste período, por meio de suas crônicas, ela veiculava suas ideias, principalmente aquelas ligadas às questões da educação, dos desmandos políticos, da condição feminina e do preconceito racial. Dirigiu também a revista quinzenal Vida Ilhoa, em 1930, e escreveu vários artigos para jornais locais. Com o pseudônimo de Maria da Ilha, ela escreveria o livro “Farrapos de Ideias”, em 1937. Ao longo de sua vida, Antonieta atuou como professora, jornalista e escritora. Como tal, destacou-se, entre outros aspectos, pela coragem de expressar suas ideias dentro de um contexto histórico que não permitia às mulheres a livre expressão; por ter conquistado um espaço na imprensa e por meio dele opinar sobre as mais diversas questões; e principalmente por ter lutado pelos menos favorecidos, visando sempre a educação da população mais carente. Antonieta faleceu no dia 18 de março de 1952.


Enedina se formou em engenharia numa turma formada por homens brancos nos anos 40 / Reprodução

Enedina Marques, pertencente a duas minorias marginalizadas da população brasileira, foi a primeira mulher a se formar em engenharia no estado do Paraná e a primeira engenheira negra do Brasil. Apesar dos preconceitos de uma sociedade pós-abolição, Enedina se impunha e se fez uma profissional respeitada em um mercado dominado por homens brancos. Filha de um casal de negros provenientes do êxodo rural após a abolição da escravatura, em 1888, a família chegou em Curitiba em busca de melhores condições de vida. Durante sua infância, Enedina ajudava sua mãe nas tarefas domésticas na casa do militar e intelectual republicano Domingos Nascimento em troca de instrução educacional. Alfabetizada aos 12 anos, ingressou no Instituto de Educação do Paraná em 1926, sempre trabalhando como doméstica e babá em casas da elite curitibana para custear seus estudos. Seis anos depois, recebeu seu diploma de professora. Até 1935, Enedina lecionou em várias escolas públicas no interior do Estado, inclusive no grupo escolar São Matheus – atual colégio São Mateus.

Mas Enedina tinha um sonho maior: queria se tornar engenheira civil. Decidiu então retornar a Curitiba, apesar das muitas dificuldades, e se graduou no curso de Engenharia Civil na Universidade do Paraná – atual Universidade Federal do Paraná – aos 32 anos de idade. Disciplinada e inteligente, enfrentou todos os obstáculos que uma sociedade no início do século XX apresentava (e ainda apresenta) a uma mulher negra e pobre. Nessa época, era destinado às mulheres, principalmente, o papel de dona de casa. Já no mercado de trabalho, as opções eram limitadas ao cargo de professora ou empregada de fábrica, sempre com salários menores do que os recebidos pelos homens no mesmo papel – soa familiar? Única mulher de sua turma, Enedina viveu uma sociedade pós-abolição, que não instituiu políticas públicas e nem ofertou oportunidades educacionais e profissionais com expectativas de ascensão social à população negra, escravizada durante séculos. Diante desta realidade, enfrentou também preconceito pela sua cor, vivendo em uma região cuja população apresenta descendência europeia e é majoritariamente branca.

Em 1946, foi exonerada da Escola da Linha de Tiro e se tornou a auxiliar de engenharia na Secretaria de Estado de Viação e Obras Públicas do Paraná. No ano seguinte foi deslocada para trabalhar no Departamento Estadual de Águas e Energia Elétrica, após ser descoberta pelo então governador Moisés Lupion. Como engenheira, participou de diversas obras importantes no Estado, como a Usina Capivari-Cachoeira (atual Usina Governador Pedro Viriato Parigot de Souza, maior central hidrelétrica subterrânea do sul do país) e a construção do Colégio Estadual do Paraná.

Escolhi oito histórias de vida, oito mulheres negras, que por meio de suas vidas e realizações fizeram caminho e abriram caminho para que tantas outras mulheres negras e não negras possam realizar seus sonhos e percorrer seus próprios caminhos e, como afirma Angela Davis, continuem movendo a sociedade. Avançamos na conquista de direitos humanos, na conquista de direitos das mulheres.... Porém, muito ainda precisamos avançar... Sem deixar de celebrar cada conquista, fazer memória da vida de cada uma dessas mulheres e de todas as mulheres que nos compõe, que são conosco, nossas avós, nossas mães, nossas irmãs, filhas, vizinhas, amigas e colegas...

Em tempos de pandemia, as mulheres negras compõe a linha de frente no combate à covid-19, seja nos setores de limpeza e higienização nos ambientes hospitalares, seja como técnicas de enfermagem e enfermeiras, algumas das áreas fortemente marcadas pela presença de mulheres negras. Que esse Dia da Mulher Negra Latino-americana e Caribenha seja um dia de renovar as energias, nos reanimar nas lutas, celebrar as vitórias e cuidar de nós mesmas e daquelas que estão nas mesmas trincheiras que nós, no campo e na cidade. Como nos disse Audre Lorde, escritora caribenha-americana, feminista, mulherista, lésbica e ativista dos direitos civis, “[...] então é melhor falar tendo em mente que não esperavam que sobrevivêssemos”, em seu poema Uma ladainha pela sobrevivência.

* Michele Corrêa é feminista negra, graduanda em Filosofia na UFPel, assessora da Pastoral da Juventude (PJ) e militante do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA)

Edição: Marcelo Ferreira