Pensemos no Brasil, no interior do Brasil, nos confins do Brasil.
No processo de urbanização, com desmatamento das matas, buscávamos fugir do encontro com alguns animais que representavam perigo à vida, e que ainda representam por nos tornarem presas ao invés de predadores. A onça-pintada talvez seja o maior exemplo. Mas com certeza são as cobras que mais tememos desde sempre, até porque existem mais cobras do que onças. Além disso, não foram muitas pessoas que voltaram de um encontro com uma onça. Já com a cobra, é possível chegar até um hospital. E por isso há a hipótese de que estórias sigam sendo contadas.
Verdade que nem todos que não chegam aos hospitais morrem. Contudo, apesar de não existirem muitos recursos em alguns confins, os saberes populares sempre foram e seguem sendo aplicados. Uma parte deles, fruto dos conhecimentos dos povos regionais. Outros, das experiências individuais. E assim, acabaram sendo construídas lendas em torno da situação... A primeira delas, bom, a primeira é a de que temos cobras no Brasil... Será que temos? Não seriam serpentes? Enfim, coisas de um Brasil ainda desconhecido por muitos.
Mas apesar do medo das gentes, sabe-se que a maior parte das serpentes não têm capacidade de inocular o veneno... Mordem... Mas, não inoculam o veneno. E os venenos, quando entram em contato com o corpo, podem levar a consequências diferentes. Podem entrar nos músculos e paralisar, podem intoxicar e causar insuficiência renal ou, em casos mais severos, podem levar à morte.
No Brasil, existem várias serpentes e a maior diferença entre elas está na capacidade de inocular o veneno. Na maioria das vezes em que uma pessoa é picada ou mordida por uma serpente, se não há inoculação do veneno - ou quando a inoculação é mínima - nada acontece. Simplesmente porque, fisiologicamente, não havia como acontecer nada mesmo.
E por que isso é importante neste momento?
Porque o desconhecimento gerou, Brasil afora, uma infinidade de lendas a respeito do que poderia ser feito para salvar a vida de uma pessoa depois de uma picada de “cobra”. Havia quem indicasse passar estrume de vacas sobre a ferida. Havia quem dissesse para pendurar a cobra de cabeça para baixo. Ouvia-se até que seria oportuno matar a cobra e pedir para que a sogra bebesse cachaça com um pedaço da defunta “cobra”. Às vezes as soluções caseiras funcionavam, para o espanto de todos. Mas, na verdade, possivelmente era porque a cobra/serpente não havia tido a capacidade de inocular o veneno.
E o que isso tudo tem a ver com a Covid-19?
Pensemos: se uma pessoa em cada nove pode ter um quadro grave, há um número grande de pessoas que são infectadas, mas não ficam gravemente doentes. Então abre-se espaço para inúmeras elucubrações de terapias “alternativas” que nada tem de terapêuticas e tampouco de alternativas. Cloroquinas, Ivermectinas, Itazoxanidas ocupam o imaginário popular como tábuas de salvação. E apesar de serem remédios que se encontram em farmácia, neste contexto, não passam de crendices... Soluções milagrosas e midiáticas oferecidas ao povo como forma de ajudar a lidar com a morte que pode chegar de forma iminente por simplesmente não ter para onde correr. Assim como a sogra e a cachaça.
E podemos ir além. As cobras, assim como os vírus, chegam mais facilmente até nós quando as florestas são desmatadas, quando garimpeiros e grileiros saqueiam os recursos naturais que são de todos e que permitem o equilíbrio na Terra. Chegam porque seguimos não dando botas para que o cabloco possa se proteger, porque seguimos desrespeitando a sabedoria dos Povos da Floresta, e os expondo a novas doenças.
Não sinalizamos e nem evitamos lugares repletos de serpentes. E o pior, não entendemos que o urgente não é criar soluções mágicas, mas sim garantir a todos a chance de chegar ao hospital ou a um serviço de saúde onde possam receber os cuidados necessários, amparados pela ciência, e assegurados como um direito. Em vez disso, continuamos inventando estórias para que possamos suportar o peso de delegar a cada um a responsabilidade de fazer alguma coisa quando a morte chegar. E naturalizamos que os verdadeiros responsáveis, irresponsáveis propagadores de soluções mágicas e de indiferença, nada façam.
* Aline Blaya Martins é professora e coordenadora do Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva da UFRGS
* Maurício Almeida Stédile é médico emergencista e mestrando do Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva da UFRGS
Edição: Marcelo Ferreira