Apesar das estatísticas oficiais da Secretaria de Segurança Pública do Rio Grande do Sul (SSP/RS) indicarem uma queda de 45% no número de feminicídios em maio no estado, a violência doméstica segue assombrando a população feminina gaúcha, especialmente na pandemia do novo coronavírus. Comparando os registros oficiais dos cinco primeiros meses de 2020 com igual período do ano passado, os assassinatos de mulheres motivados por questões de gênero tiveram um aumento de 34,4% no Rio Grande do Sul desde janeiro – 11 vidas perdidas a mais que em 2019, no mesmo período.
E se considerarmos que outros indicadores, como tentativas de feminicídios, ameaças e lesões corporais, tiveram redução, é possível dizer que os gaúchos foram mais eficientes na arte de matar suas mulheres durante a quarentena. É um fato.
A epidemia de feminicídios, porém, atinge todas as classes, mulheres de todas as idades, em todas as regiões do país. Em São Paulo, segundo o Fórum Brasileiro da Segurança Pública, a alta nos feminicídios foi de 46% em março de 2020, no início da quarentena. Outros indicadores reforçam a tendência: aumento nas prisões em flagrante em casos de violência doméstica e de medidas protetivas determinadas pela Justiça.
Em todo o país, o índice, segundo a mesma fonte, foi de 22%. Isso se não considerarmos a subnotificação, que constitui uma outra pandemia na visão da advogada especialista em casos de violência contra mulheres Gabriela Souza. “Se eu falar que esses números das tabelas oficiais representam 20% do total de ocorrências, estarei sendo otimista”, lamentou a advogada.
A subnotificação é ainda maior durante a quarentena, segundo ela, porque a rede de apoio está fechada, o que dificulta a tentativa de registrar os casos de agressão. A advogada refuta a tese otimista da SSP com duas frases: “Nunca trabalhei tanto na vida. A força das agressões se tornou muito mais letal”.
O risco mora dentro de casa
Apesar da queda dos feminicídios em maio, o acumulado de 2020, de janeiro a maio, chegou a 43 assassinatos contra 32 no mesmo período de 2019 (veja quadro). O destaque deste ano foram os meses de março e abril, justamente quando a quarentena se intensificou – apenas em março foram 12 feminicídios. O único registro de redução ocorreu em maio, quando foram registrados seis casos contra 11 em abril.
“É um dado totalmente fora da curva porque todos os fatores de risco aumentaram com o isolamento: há mais desemprego, mais convívio familiar, maior consumo de bebidas alcoólicas e drogas e, em função da quarentena, uma dificuldade maior das redes de proteção serem acionadas”, explica Gabriela.
Não por acaso nenhuma das vítimas dos casos de maio, segundo a SSP, tinham qualquer registro de ocorrência anterior contra os agressores. Dos seis feminicídios registrados, em cinco as mulheres tinham relação íntima com o matador.
Mas o governo gaúcho, ao contrário do que apontam as profissionais que atuam na rede de apoio às mulheres no estado, prefere se deter nas políticas de prevenção ao invés de combater a violência com medidas mais duras contra os agressores. A queda nos indicadores em maio foi atribuída a uma ampla divulgação dos canais de denúncia a partir da campanha Rompa o silêncio.
“A campanha procura fomentar que não apenas as mulheres, mas também as pessoas que estão na sua volta, como vizinhos, amigos ou familiares, assumam o dever moral de comunicar às instituições ao tomarem conhecimento de qualquer situação de violência doméstica. É preciso romper o silêncio e denunciar”, disse a major Karine Brum, coordenadora das Patrulhas Maria da Penha da Brigada Militar.
Segundo ela, o resultado mais visível é que as denúncias pelo WhatsApp (+55 51 98444-0606) da Polícia Civil cresceram de 13 nos primeiros quatro meses do ano para 19 apenas nas duas primeiras semanas de maio. Também houve, no fim de abril, uma operação em 62 cidades gaúchas que efetuou sete prisões por descumprimento de medidas protetivas e vistorias em 527 domicílios de mulheres que denunciaram risco de violência.
As instituições de apoio, entretanto, reclamam que a estrutura de atendimento e ajuda foi sucateada nos últimos anos no estado. O orçamento de 2020 para fortalecimento e manutenção da rede de enfrentamento à violência e proteção de mulheres e meninas (Rede Lilás) da Secretaria de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos foi reduzido a R$ 20 mil. Em 2014, quando ainda existia uma Secretaria de Política para as Mulheres no estado, o orçamento da rubrica chegou a R$ 10,07 milhões.
Últimos governos retiraram dinheiro do combate à violência
“Os últimos governos tiraram quase todo o dinheiro que podiam das mulheres. Para termos uma ideia da gravidade da situação, o Departamento Estadual de Políticas para as Mulheres sequer abriu este ano”, disse a coordenadora da Força-tarefa Interinstitucional de Combate aos Feminicídios da Assembleia Legislativa, Ariane Leitão.
Segundo ela, a redução drástica dos recursos públicos para a rede de proteção pode ser vinculada diretamente ao aumento nos casos de violência e feminicídios. “A redução demonstra a invisibilidade da população feminina para as políticas de Estado, embora sejamos a maioria. E é claro que causa impacto em relação ao aumento da vulnerabilidade e, consequentemente, das mortes violentas”, completou.
Na quarentena, mais ainda. “Temos observado que o isolamento aumentou a tensão familiar e, paralelamente, também a ausência do Estado. Junte a isso o machismo estrutural da nossa sociedade, que serve como uma argamassa, e temos aí a construção de uma parede de violência e agressões contra as mulheres”, afirmou Ariane.
Dos R$ 3 milhões de emendas apresentadas por parlamentares para dotar a área de mais recursos, apenas R$ 250 mil de um projeto da deputada Luciana Genro foram acolhidos pelo governo estadual. O projeto destina o valor para a compra de vagas em instituições que possam acolher as mulheres vítimas de violência e seus filhos.
Aumento da violência no isolamento social
“A violência doméstica aumentou muito com o isolamento social, pois as mulheres que antes já eram agredidas passaram a viver confinadas com seus agressores. A falta de vagas na rede de acolhimento, que já era um problema, se tornou ainda mais grave”, disse a deputada.
Na Casa Referência Mulheres Mirabal, em Porto Alegre, a demanda aumentou durante a quarentena e trouxe um problema a mais para a administração do espaço: a necessidade de isolamento das vítimas e de seus filhos em caso de abrigamento. Uma das coordenadoras da Casa, Nana Sanches, diz que a estratégia foi priorizar os acolhimentos – medida de apoio jurídico ou psicológico que, no entanto, não protege a mulher de eventuais agressões.
“Registramos um aumento muito grande nos casos de mulheres que precisam de orientação sobre o que fazer diante da iminência de serem agredidas. Em outras instituições também houve registro de aumento da demanda por ajuda”, disse. Por questões de segurança, os locais de abrigamento e apoio não revelam dados sobre quantidade de mulheres nessa situação.
Segundo dados do relatório preliminar 2020 da Força-tarefa da Assembleia, existem apenas 14 casas-abrigo em todo o estado para acolher mulheres agredidas e seus filhos. O número de vagas oscila muito, pois depende dos recursos disponíveis para manutenção. Mas parece evidente que se trata de uma estrutura incapaz de atender a demanda: apenas nos cinco primeiros meses deste ano foram 8,5 mil casos de lesão corporal contra mulheres no Rio Grande do Sul – média de 55 por dia, mais de duas agressões por hora.
“Estamos muito ocupados”
Isso sem falar no assédio moral, na ofensa, nas agressões verbais que, na maioria das vezes, nem sai de casa. Como no caso da estudante de pós-graduação que a reportagem do Extra Classe entrevistou no início de junho. Sem querer se identificar, com medo de represálias, ela registrou dez boletins de ocorrência (B.O.) contra o ex-companheiro num intervalo de dois anos. Difamada entre os amigos pelo agressor, seguida e ameaçada, além de ofendida em público, a mulher já obteve três medidas protetivas, sem muito resultado.
“Parece que se não deu tiro, facada ou soco não é grave. Não adianta nem pedir ajuda”, contou. Antes de obter a terceira medida protetiva, no dia 14 de abril, a estudante foi à Delegacia Especial de Atendimento à Mulher (Deam) em Porto Alegre e não conseguiu registrar a ocorrência. “Quando perceberam que não havia marca de agressões físicas, disseram para fazer B.O. on-line, pois estavam muito ocupados”, disse à reportagem.
A mulher, que vive num condomínio confortável no centro da capital, conta que após a separação, há cerca de dois anos, passou a ser seguida constantemente pelo ex-marido, teve sua vida pessoal devassada, deixou de frequentar locais públicos e também de se relacionar pelas redes sociais com amigos e amigas. Além disso, planeja deixar a cidade para se ver “livre do pesadelo”. Ela critica o sistema oficial de proteção e diz que foi salva pela Força-tarefa da Assembleia Legislativa.
“Minha vida foi arrancada de mim completamente. Vivo assustada, com medo, olhando para os lados. Meu agressor furou constantemente as medidas protetivas, mas nunca foi importunado por isso. Ele perseguiu irmãos, cunhados, meus pais. Espero que receba uma pena bem dura pelo que fez, mas como não me esfaqueou, nem me desfigurou a socos, vai ter que pagar só umas cestas básicas”, lamentou.
Edição: Extra Classe