Por que grande parte da população não enxerga as mentiras fantásticas e a manipulação midiática?
Por que grande parte da população não enxerga as mentiras fantásticas, a manipulação midiática e as manobras políticas que sustentam o autoritarismo? Para Wilhelm Reich, em Psicologia de Massas do Fascismo, quando a propaganda política reacionária obtém sucesso, devemos buscar os motivos disso na própria estrutura psíquica e emocional das massas. O que se passa com as pessoas que as torna capazes de agir contra seus próprios interesses vitais?
Grande parte da predisposição a absorver a ideologia e a forma de funcionamento político e social características do fascismo – e, ouso dizer, do autoritarismo em geral – tem relação com o que Reich chama de contágio místico.
Não é incomum que regimes autoritários discursem em nome da religião ou que tentem fundamentar moralmente o poder estatal com base em doutrinas religiosas, muitas vezes fazendo alianças com setores institucionalizados de alguma igreja. Se repararmos bem, geralmente, quando ocorre essa “parceria”, temos como protagonista alguma religião patriarcal, isto é, alguma religião cuja estrutura hierárquica está fundamentada na autoridade do “Pai”.
As relações entre o fascismo e o misticismo religioso são notáveis. Os comícios nazistas, por exemplo, exploravam processos de êxtase e adoração de símbolos como maneiras de oferecer aos participantes experiências de fusão mística com a ideia de Nação. Neste artigo, meu objetivo será apresentar o funcionamento do misticismo do ponto de vista de sua economia energética, segundo descrito por Reich. Acredito que isso nos possibilitará entender sua enorme força social e a colaboração das tendências ao misticismo patriarcal, cultural e milenarmente estabelecidas, para a aceitação de discursos reacionários. É importante termos em mente que Reich estabeleceu sua análise na década de 1930, a partir da observação da doutrina católica institucionalizada pela Igreja e de suas relações com o nazismo alemão.
O grande êxito do misticismo religioso, para Reich, se deve ao fato de ele estar baseado no “pecado original” como ato sexual realizado por prazer. Nesse sentido, a função reacionária do misticismo se fundamenta na relação deste último com a repressão da sexualidade.
Na transição ao patriarcado, os cultos religiosos institucionalizados se separam da sexualidade, passando a condená-la. Ao mesmo tempo, a expressão sexual natural, agora moralmente questionada e regulada pelas leis do casamento indissolúvel, da finalidade procriadora e da castidade santa, se distorce, dando lugar às perversões, ao ódio e à brutalidade sexuais. Assim se produz uma cisão: o ato sexual se separa das ideias de saúde, vitalidade, felicidade, comunhão. Estas últimas se associam à moralidade casta. Já a sexualidade fica relegada ao reino do diabo.
Reich afirma que a experiência mística de êxtase produz efeitos de excitação vegetativa semelhantes aos provocados pela relação sexual saudável. Desta forma, no momento histórico em que a sexualidade deixa de estar unida à religião, esta última se transforma em um substituto para a sexualidade. A grande contradição do misticismo religioso assim concebido é a de que ele se torna antissexual no discurso e, na prática, um substituto energético para as experiências sexuais. O êxtase religioso é promovido por energias sexuais das quais foi retirado o conteúdo sexual. Seu poder de penetração e fixação nas estruturas psíquicas provém da intensa mobilização energética sexual inconsciente que provoca. No entanto, apesar de mobilizar e até mesmo aliviar a tensão sexual, a experiência mística não promove uma descarga adequada (orgástica) dessa tensão.
Desta forma, no processo místico, as pessoas permanecem sujeitas a fortes estados de tensão sexual. Ao mesmo tempo estão profundamente absorvidas por concepções que negam a sexualidade. Esse excesso de excitação não descarregada promove fantasias e desejos sexuais inconscientes e se torna a base para o medo de punição pelo pecado. Este último, ao mesmo tempo, impede que as pessoas experimentem a satisfação sexual natural. Quanto maior a excitação, maior o medo de punição, e maior o fervor religioso como tentativa de se purificar e se limpar do mal (sexualidade).
A religiosidade compulsiva (neurótica), cuja dinâmica energética foi resumida acima, subordina toda a vida humana a uma força sobrenatural e à autoridade metafísica de um Deus que exige renúncia, sacrifício e abdicação dos próprios desejos. A vida governada pela felicidade terrena – principalmente de cunho sexual – é desqualificada como se fosse desconectada de realizações “morais” ou “sublimes”.
Assim, o reacionário de todas as tendências condena o prazer sexual porque este o atrai e, ao mesmo tempo, lhe gera repugnância. Ele não consegue resolver em si próprio a contradição entre necessidades sexuais e inibições moralistas. Incapaz de obter alívio, passa a considerar as sensações sexuais como torturantes, incômodas e destrutivas. Assim podemos ver que, em certo sentido, a concepção da sexualidade como uma força “ruim” tem origem em processos físicos reais. A questão, nesse caso, é que a sensação sexual distorcida pela repressão é interpretada como se fosse “a” sensação sexual natural.
O desejo religioso é autêntico, na medida em que se trata da busca da fusão e religação com um ente maior e do qual fazemos parte. No entanto, ele se transforma em misticismo destrutivo na medida em que passa ignorar, condenar ou rejeitar a possibilidade orgânica humana de ligação com o processo geral da natureza por meio do orgasmo natural, passando a procurar a tão almejada religação por meio unicamente da adoração a instâncias metafísicas e inalcançáveis. A sensação orgástica biológica passa a ser deslocada para fora do corpo, para um “além” com o qual se entra em comunhão espiritual, ao mesmo tempo em que a comunhão orgástica é prevenida por meio de sermões de cunho moralista.
Em suma, podemos afirmar, segundo Reich, que “a excitação religiosa é uma excitação vegetativa cuja natureza sexual foi encoberta. Através da mistificação da excitação, o homem religioso nega a sua sexualidade. O êxtase religioso é um substituto da excitação vegetativa orgástica”. (Psicologia de Massas do Fascismo). O sentimento religioso é subjetivamente verdadeiro e assenta em bases fisiológicas, mas tem sua natureza sexual encoberta no contexto das religiões patriarcais e moralistas.
A operação cognitiva de dividir o mundo entre o “bem” e o “mal” também está relacionada ao misticismo e à sua procura de “limpar” o ser humano. Os indivíduos contaminados pela distorção mística de suas energias sexuais desenvolvem medo mais ou menos inconsciente da vida e daquilo que é vivo e sexual. Assim, aderem com certa facilidade a lemas vazios ou a categorias irracionais que passam a, por meio do discurso político, ser identificadas com o mal. Assim, os “comunistas”, os “judeus”, os “corruptos” se transformam em entidades mistificadas deslocadas de seu conteúdo, de sua história e de suas práticas concretas. Expurgar o mal passa a ser uma compulsão, e uma maneira indireta de lidar com o medo da própria sexualidade.
O esclarecimento racional e lúcido a respeito do funcionamento natural e biológico da sexualidade é necessário para que as fantasias a seu respeito possam ser dissolvidas e uma reconciliação orgânica e cultural com essa importante função de nosso aparelho vital possa ser operada nas próximas gerações. Quem sabe assim, enquanto sociedade, possamos abrir mão do fascismo como recurso emocional e como forma patológica de resolução do conflito sexual humano.
Descrição da imagem: trata-se de uma pintura com estética modernista que retrata 6 judeus ortodoxos, vestidos com roupas características de sua religião (túnicas e chapéus pretos, barbas longas), segurando livros sagrados e com expressões corporais e faciais de louvor. Eles são retratados como se estivessem à frente de uma parede. Alguns estão virados de frente para a parede (de costas para quem vê a imagem), e alguns aparecem de perfil. Alguns estão com os braços estendidos para o alto.
Edição: Katia Marko