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Artigo | Agroecologia, Agapan, Juarez, Bolsonaro e Edgar Morin em tempo de pandemia

Alimentar Eros ou Tânatos é a opção que se coloca para a consciência e ação de cada um de nós

Porto Alegre | BdF RS |
Equipe do MST de Ribeirão Preto (SP) carregando o caminhão com alimentos de doação - Divulgação MST

Participei na terça-feira (14) do programa AGAPAN 50 ANOS, quando ex-presidentes da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural contaram histórias da entidade. Os interessados podem acessar no Site, YouTube ou Facebook.

Interessante como nestas conversas a memória nos traz elementos esquecidos, ou até ali não bem compreendidos, em sua relevância. É o que pretendo compartilhar neste texto.

A Agapan há 50 anos trabalha em defesa da vida. O termo agroecologia é bem mais recente que isso. A ABA - Associação Brasileira de Agroecologia foi criada em 2004. Tem apenas 16 anos e é uma das organizações que mais cresce no país. Faz congressos com 5 mil pessoas e chegou numa ocasião a reunir 10 mil pessoas. Nestes congressos são apresentados 1 mil, 1,2 mil trabalhos científicos, relatos de casos e experiências de base agroecológica. Isso sugere que a agroecologia é talvez a área que mais cresce em termos de produção científica e de acolhimento pelos jovens, no país. E a Agapan é uma das organizações mais antigas do país, talvez da América Latina, atuando neste campo.

Ambas, ou melhor todos eles, as entidades e os conceitos relacionados à agroecologia se baseiam em princípios, o que coloca separação importante com relação a outros campos de conhecimento. Na agroecologia não existem teoremas, postulados, receitas, regras fechadas. Existem apenas orientações fundantes, princípios gerais que orientam no sentido da compreensão e da interpretação de mecanismos e sistemas operantes na natureza. Princípios pautados pelo respeito à diversidade e aos ciclos operantes em cada ecossistema.

A vida do solo, o fluxo das águas, o planeta em si, visto como um todo que se repete nos grandes e nos pequenos fenômenos. O ciclo das águas, em rios aéreos, superficiais e subterrâneos, como o fluxo do sangue nos animais e da seiva nas plantas. Numa perspectiva de que tudo é interligado... Raízes que se tocam fazendo que a floresta seja um todo, onde todas as plantas são igualmente importantes, não importando sua expressão em porte ou em número, ou o estrato ocupado. As plantas captam a luz, os insetos fazem a polinização, os animais carregam as sementes, fungos e bactérias fazem a reciclagem, tudo mediado pelo fluxo das águas. No subterrâneo ou na cobertura dos campos, savanas e florestas. Tudo se diferencia e se organiza em fluxos de ligação e parceria, que os princípios da agroecologia ajudam a entender.

Pois bem, o que me parece digno de comentar é que esta diversidade com equidade de importância relativa tem sido negada ao conhecimento humano, em vários campos da chamada ciência tradicional. Aparentemente o que é valorizado e interpretado como relevante, em termos de avanço científico no campo da economia, da engenharia genética, do urbanismo, da sociologia, opera a favor da homogeneização de uso e da diferenciação de direitos, rumo à apropriação individual de benefícios.

Nesta perspectiva, o que vale é a diferenciação, a patente, o direito de impedir o acesso dos outros. Com isso, temos uma ciência a serviço da globalização do individualismo. Exatamente o contrário do que os princípios da agroecologia supõem.

Apoiados naquela visão desagregadora, existem cientistas, formadores de opinião, lideranças que dizem que as crises resultam da escassa capacidade de resposta dos “mal-formados”, dos “improdutivos”. Crianças e velhos seriam um peso, pobres famintos e desvalidos seriam culpados pela degradação ambiental, criminalidade, aquecimento global e tudo o mais. Como se, matando os pobres, estes e outros problemas se resolvessem por si.

E existem lideranças que por ação ou omissão contribuem pra isso. Estimulam o avanço das lavouras transgênicas, as queimadas, as inundações, a mineração e tudo que acaba fazendo doenças migrarem para as áreas urbanas, onde morrem principalmente os pobres...

Lideranças urbanas facilitando ação de jagunços para ocupação de terras indígenas, de reservas ambientais, de áreas quilombolas. Máquinas gigantes destruindo culturas, formas de vida, biomas. Envenenando o solo e as águas. Em benefício ou no interesse de alguns, contra as necessidades de todos. O oposto do preconizado nos princípios da agroecologia, que apontam no sentido da vida.

Nesta reclusão forçada, onde os que podemos, ficamos em casa, as conversas de internet ajudam a entender o que está em jogo. Ficamos em casa, pelo medo da morte. Mas também para não contribuir com a morte de tantos outros, enganados pelas falas irresponsáveis ou impossibilitados pelas condições de vida. Porque não têm casa ou porque na casa não há paz, não há espaço, não há água limpa, sabão, alimento para os filhos.

Enfim, muitos precisam sair, para existir. Vemos isso na curva das mortes, assim como vemos as ações solidárias, verdadeiramente pautadas pelos princípios da agroecologia, executadas por tantos que fazem o que o governo não faz, pelos excluídos, desde que o golpe destruiu programas de solidariedade social que faziam do Brasil um país do presente e com grande futuro.

E hoje? Hoje com a fragilização ou a anulação de ações solidárias do INCRA, da FUNAI, do Instituto Chico Mendes, da COBAL, do PAA, do Bolsa Família, do Fome Zero, do Água para Todos, vemos a sociedade tentando substituir o governo. Vemos o MST distribuindo alimentos nas vilas, pessoas repartindo o auxílio emergencial que mal dá pra um, coletas de recursos on line, comitês de combate à fome e toda uma multiplicidade de grupos de discussão e ajuda mútua, tratando de formar redes para enfrentamento e superação da crise. Só de pedidos de impeachment, até aqui ignorados pelo presidente da Câmara Federal, estas redes já produziram mais de 50.

E a atividade da Agapan?

Pois bem, a atividade da Agapan, que eu referi no início, foi uma destas atividades em rede, versando sobre as causas e as possibilidades de enfrentamento a este período triste.

Nela falamos de agroecologia e seus princípios de valorização do coletivo, com respeito a todas as formas inteligentes de interpretar a vida, em benefício da vida. Um dos elementos que surgiram na conversa foi o paralelismo entre o agricultor Juarez Pereira e o antropólogo, sociólogo e filósofo Edgar Morin.

Juarez Felipe Ferreira, produtor de arroz em Barra do Ribeiro, é um dos mais conhecidos guardiões de sementes de variedades de arroz, em nosso estado. Ele vende arroz orgânico na Feira Ecológica do Bom Fim, em Porto Alegre. Bom de conversa, atencioso, sempre comenta suas experiências e aprendizados. Num dos Congressos Brasileiros de Agroecologia ele foi painelista de encerramento e ali falou que a luta em defesa do arroz orgânico era como a luta da luz contra a escuridão. Fazia esta leitura a partir de experiência pessoal porque quase morreu intoxicado por agrotóxicos, no mesmo hospital e no mesmo dia em que sua filha nasceu. Ali tomou a decisão de optar pelo caminho da vida. E constatou que naquela atividade produtiva, para o trabalhador assim como para os que se alimentassem com aquele arroz, que ele estava acostumado a produzir, a vida estava em jogo. O Juarez sintetiza esta vivência da seguinte maneira: o arroz é a luz do sol incorporada, concentrada no grão. E a luz só faz bem. Mas o arroz do agronegócio, que ele produzia quando quase morreu intoxicado, seguindo a ciência, a técnica, envenena o solo, envenena a água, envenena o agricultor e leva adiante a carga de morte. Aquele arroz oculta no grão, junto com a luz do sol, venenos que conspiram contra a vida.

Ele resumia: é uma luta, é difícil, mas é também uma responsabilidade. Um homem que enxerga isso tem que escolher um lado. Ou fica com a luz da vida, ou com a escuridão da morte. E aí temos uma leitura sociológica de um princípio de base agroecológica. A oposição entre apoiar a diversidade contra a singularidade pode de fato ser vista como uma opção de adesão a um dos lados, na luta do bem contra o mal.  

Um filósofo, o Juarez, de profundo alcance intelectual e de visão abrangente. Sua leitura de realidade, pautada pelos princípios da agroecologia, onde essencialmente O TODO é responsabilidade de todos e onde cada um deve fazer sua parte, a serviço da vida, ou contra ela, resultou clara, para minha releitura, no evento da Agapan.

O Juarez faz estas preleções em sua banca, na Feira Agroecológica do Bom Fim. Conversando cara a cara, um a um, com quem estiver disposto.

Pois bem, este texto tem mais um passo, como o título sugere

Semana passada escutei uma outra reunião virtual de quarentena, palestra do Edgar Morin. Milhares de pessoas assistindo ao vivo, talvez centenas de milhares, com o tempo, acessarão aquele vídeo no Youtube.

Ali o Edgar Morin dizia que os impulsos humanos, que dominam os indivíduos e as coletividades, podem ser resumidos como uma energia criativa, positiva, solidária, agregadora, a força de união, e seu oposto desagregador, egoísta, destrutivo. Eros e Tânatos, em permanente disputa. Estes impulsos pela vida e pela morte conduziriam os homens e as sociedades, ao longo da história, e neste momento o desequilíbrio parecia pender para a destruição, contra a harmonia, em todo o planeta.

Lembrem das falas do presidente e de que, apesar da resistência, este foi o período do maior número de mortes em conflitos no campo, de queimadas na Amazônia e no Cerrado, de crime duvidosos e de lucros como o comércio de armas, no Brasil. Não é sintomático? Desde a posse do Bolsonaro também foi autorizada a comercialização de 680 novos agrotóxicos, 177 só em 2020. E não temos nem um problema novo na agricultura, que ajude a entender tamanho favorecimento aos impulsos em favor da morte.

Não é evidente que a sabedoria popular, atenta à natureza, enunciada pelo Juarez, exercitada pelos grupos que distribuem alimento aos pobres, alcança e vai além da altura proposta pela elaboração intelectual complexa trabalhada por Morin?

A discussão da Agapan, como a preleção do Morin me reavivaram as lições da agroecologia e seus princípios, que eu acredito se aplicam à grande maioria dos processos e relacionamentos que articulam a humanidade e a natureza. Portanto, como tudo neste planeta está conectado, matar os pobres não resolverá o problema dos ricos.

Kota Mulangi, uma liderança do movimento negro, numa outra discussão virtual da semana passada disse: Tudo é território em disputa, o espaço, os conceitos e as formas de ser. E todos temos que fazer nossa parte, porque - ela disse com estas palavras -: não importa o tamanho da árvore. A Floresta é todas elas.

Escolher o exemplo do Juarez, e seus parceiros no campo da agroecologia, ou o do Bolsonaro, e seus acólitos, no da barbárie, alimentar Eros ou Tânatos, é a opção que se coloca para a consciência e ação de cada um de nós.

 A sociedade seguirá no rumo que escolhermos.

* Engenheiro Agronômo pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1976), tem mestrado em Economia Rural pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1990) e doutorado em Engenharia de Produção pela Universidade Federal de Santa Catarina (2000). Foi representante do Ministério do Desenvolvimento Agrário na CTNBio (2008-2014), presidente da AGAPAN (2015-2017), coordenador do GT sobre Agrotóxicos e Transgênicos e vice presidente regional da Associação Brasileira de Agroecologia (2015-2019). Faz parte da coordenação do Fórum Gaúcho de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos (2018/2020 e 2020-2022) e é colaborador da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e pela Vida, do Movimento Ciência Cidadã e da UCSNAL.

Edição: Katia Marko