Estima-se que vivam no estado do Rio Grande do Sul 18,5 mil indígenas das etnias Guarani, Mbya Guarani, Kaingang e mistos. Comunidades que muitas vezes vivem em áreas degradadas, em acampamentos às margens de rodovias ou áreas devolutas sem as mínimas condições ambientais, saneamento básico, infraestrutura e terra para subsistência. A pandemia causada pelo novo coronavírus chegou a essas comunidades e agravou esse cenário.
Até o momento, de acordo com dados da Secretária Estadual da Saúde (SES), foram confirmados 282 casos de indígenas contaminados por covid-19, e quatro óbitos. A primeira morte indígena do RS foi a do o cacique Lourenço Amantino, 62 anos, no dia 22 de junho, do acampamento Novo Xingu, no município de Constantina. A região Sul do Brasil já registra oito óbitos entre indígenas, sendo quatro no RS e quatro em Santa Catarina.
Contaminação em frigoríficos
Segundo o Distrito Sanitário Especiais Indígenas (DSEI) do interior sul, na região Sul há 411 casos confirmados. No RS, dos 282 casos confirmados pela SES, muitos deles aconteceram em frigoríficos. “Temos enfrentando algumas situações mais complicadas na região Oeste de Santa Catarina e Norte do RS, onde estão concentrados muitos frigoríficos, indústrias. Boa parte dos nossos indígenas está trabalhando nesses locais”, aponta Marciano Rodrigues, do povo Guarani e da coordenação da Articulação dos Povos Indígenas da Região Sul (Arpinsul). Para combater os efeitos da pandemia e auxiliar as comunidades indígenas foi constituída a Frente Indígena e Indigenista de Prevenção e Combate ao Coronavírus Região Sul.
De acordo com Marciano, a Frente fez uma articulação junto ao Ministério Público prevendo que o contágio poderia acontecer nesses locais. “Pedimos que os indígenas fossem dispensados, sem prejuízo, para que se tivesse esse cuidado para que não afetasse as comunidades da região, mas foi o que aconteceu. Demorou para que fosse tomada providência, os frigoríficos não queriam dispensar, fizeram pressão para cima dos indígenas e só pararam quando alguns deles contraíram o vírus e levaram para suas aldeias. Uma situação difícil que se alastrou com muita rapidez dentro das comunidades, em especial em Chapecó, terra indígena que foi mais atingida , onde vivem cerca de 5 mil indígenas”, relata.
Dos estados da região Sul, o Paraná é o que apresenta melhores resultados, não constando nenhum óbito até o momento. O motivo, aponta Marciano, está nas medidas tomadas imediatamente após a constatação de casos confirmados. “O movimento indígena tem trabalhado constantemente para atender à demanda diante dessa pandemia e temos cobrado das instituições públicas e do governo as devidas providências”, afirma.
Situação dos indígenas no RS
No início de abril, o Brasil de Fato RS fez uma reportagem relatando a situação vivida pelos indígenas no estado. De lá para cá, casos foram surgindo, assim como os óbitos. De acordo com o indigenista e coordenador do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) Sul, Roberto Liebgott, a situação dos povos indígenas na região Sul tem se agravado por três fatores principais: aumento do número de pessoas contaminadas; carência de recursos ligados à saúde (médicos, enfermeiros), falta de equipamentos e de transporte para os doentes; e a política indigenista genocida do governo Jair Bolsonaro.
De acordo com Roberto, houve muitos de indígenas confirmados com coronavírus na região da grande Porto Alegre. Entre os Kaingang houve casos na Lomba do Pinheiro, em Porto Alegre, e nos municípios de São Leopoldo, Montenegro e Bento Gonçalves. Todos estão se recuperando. O coordenador chama atenção para situação de vulnerabilidade vivida pelas comunidades, especialmente agora no inverno. “Falta saneamento básico, há também uma severa restrição alimentar por conta que eles não podem comercializar seus produtos, e assim obter recursos para seu sustendo, daí estão dependentes de doações de cestas básicas”, expõe.
Embora reconheça a dedicação dos profissionais da saúde, Roberto afirma que há carência de profissionais da área para atender às comunidades, assim como a faltam equipamentos e veículos para transportar os doentes das comunidades. São relatos ouvidos pelo coordenador. “A infraestrutura para atendimento em saúde é absolutamente precária. Isso compromete não só o enfrentamento à covid como toda a assistência relativa aos outros aspectos da saúde, porque, embora tenha a pandemia que tanto preocupa, há as outras doenças que permanecem e estão causando muita preocupação nas comunidades e lideranças indígenas”, aponta.
A realidade dos indígenas no estado também foi abordada pelo Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros, Indígenas e Africanos da UFRGS (NEAB), na última sexta-feira (10), na live intitulada Vidas Indígenas importam. O encontro virtual teve a participação de Iracema Gãh Téh Nascimento (Pajé-Kuya Kaingang), José Cirilo Morinico (Cacique Tekoa Anhetengua), Paulo Morinico (Professor Tekoa Jatai’ty), Santiago Franco (Cacique Tekoa Yvy Poty), com medicação de Douglas Jacinto (antropólogo kaingang).
"Não é uma gripezinha"
“Quando os brancos chegaram no Brasil, trouxeram epidemia para tirar o território do povo originário, trouxeram a doença, e agora de novo, trouxeram esse vírus da Europa. Com essa pandemia nos preocupamos muito, não é uma gripezinha, é uma pandemia que vai matando. Nossa luta hoje é ampliar terra para a população indígena, porque se tiver a quarentena como a gente vai fugir, ter um lugarzinho para ficar na quarentena, com 10, 15 hectares, na beira da estrada, como você vai enfrentar essa pandemia que está vindo da Europa”, questiona Cirilo, destacando também a necessidade de se ter o reconhecimento de uma saúde e educação diferenciada.
“Temos uma cultura diferente, a gente não se acostuma a viver separado, ou comer sozinho ou estar sozinho, o povo indígena convive junto. Essa doença tira nossa vida cotidiana, a gente fica preocupado com isso. Estamos lutando para não perder nossos familiares. A questão da terra é muito importante, ter uma área boa para que se tiver quarentena poder caçar e pescar. Hoje não tem isso porque vivemos perto da cidade, mas se tivermos uma terra demarcada podemos fazer isso, temos que fazer retomada, queremos uma área com mata, rio. A doença está no ar, no vento e isso preocupa muito”, reflete.
"A mãe está falando, as árvores estão gritando"
Para Iracema, é preciso pensar na destruição, desmatamento e poluição que está acontecendo, e parar de agredir a natureza. “Nós já sabíamos que tudo isso acontecer, somos mensageiros, a mãe está falando, as árvores estão gritando, mas o que permaneceu foi o sistema. Estamos na luta sempre, 520 anos estamos resistindo, escutando a voz da terra, das árvores. Não é por acaso que veio essa doença, para fazer as pessoas conviverem mais em casa, com sua família, pensar como era antes. A natureza é uma mãe amorosa, sábia e paciente, mas devagar ela está dando laço em nós”, afirma.
“Quando eu falo por mim não falo só pelo meu povo Kaingang, mas pelo povo brasileiro que nasceu nessa mãe terra. Espero, minha esperança é que nessa doença, nessa pandemia, que se pense na vida, no viver. Vamos parar de agredir a natureza, vamos fazer por ela, para ela nos perdoar e para não acontecer mais o que está acontecendo”, complementa Iracema que também destaca a paralisação das demarcações (desde o governo de Temer nenhuma demarcação foi feita) e da ineficácia do atual governo.
Santiago chama atenção para a falta de saneamento em sua comunidade. “Aqui não tem saneamento, não tem banheiro para comunidade. A moradia é outro problema, na minha casa moram cinco famílias, em outra casa três famílias juntas, mais de 15, 20 pessoas. Como vai ser essa quarentena, separar famílias? Juruá (homem branco) tem condição de separar família, o Guarani não tem isso. Juruá também está sofrendo. Essa doença não escolhe a pessoa. Temos que olhar com respeito e amor a pessoa. Nós indígenas somos trabalhadores também, contribuinte como o povo branco".
Ataques do governo Bolsonaro
Além da subnotificação dos casos na população indígena que continuam acontecendo, uma vez que a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) aponta 10.130 casos, e 209 mortes, outro aspecto de preocupação é a política indigenista do atual governo.
Segundo Roberto, essa política é absolutamente focada em uma perspectiva de desterritorialização dos indígenas. “A maioria das comunidades não tem terra para nelas viverem, vivem em situação de precariedade, em áreas degradadas, pequenos espaços concedidos. Há falta de uma política fundiária, que agrava ainda mais a situação. Há necessidade que sejam retomadas as demarcações de terras, de assegurar que esses povos possam viver nessas terras e usufruir delas para delas obter seus sustento e dar continuidade ao seu modo de ser e viver dentro dos seus territórios”, afirma.
No último dia 8 de julho, o presidente Jair Bolsonaro sancionou, com 16 vetos, a lei que cria o Plano Emergencial para Enfrentamento à covid-19 nos territórios indígenas, que estabelece medidas para prevenir a disseminação da doença entre povos tradicionais. Entre os trechos vetados pelo presidente, estão a obrigação do governo de oferecer acesso a água potável e garantir a distribuição de produtos de higiene e limpeza. Bolsonaro também vetou a elaboração de ações específicas para ampliar os leitos hospitalares, a liberação de verba emergencial para a saúde indígena, projetos de instalação de internet nas aldeias, distribuição de cestas básicas e o acesso facilitado ao auxílio emergencial. Recentemente, o vice-presidente Mourão assinou embaixo do veto presidencial, chegando a afirmar que indígenas não precisam de água potável porque "se abastecem dos rios".
Em nota, o CIMI afirma que os vetos presidenciais reafirmam o preconceito, o ódio e a violência do atual governo em relação aos povos indígenas, quilombolas e populações tradicionais, negando mais uma vez o que preconiza a Carta Magna do Brasil em seus princípios fundamentais. Diz o artigo 3º, inciso IV: "entre os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, está: promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, de raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação".
“O presidente também desrespeita o Congresso Nacional ao vetar uma lei já aprovada quase por unanimidade, inclusive por partidos de sua base de sustentação. Essa postura presidencial demonstra total insensibilidade à situação de vulnerabilidade de milhares de famílias indígenas, quilombolas e das comunidades tradicionais em todo o território nacional, nesta grave crise condenadas à morte”, destaca o texto do CIMI.
Na avaliação de Roberto, a perspectiva estatal do governo Bolsonaro é de caráter genocida no que se refere aos povos indígenas. “Ele retoma conceitos genocidas da ditadura militar, e tenta implementar no seu governo, com essa concepção, que os povos indígenas não terão perspectiva de futuro, ao contrário, vão enfrentar grandes desafios, sofrimento. Agora é um período que se deve resistir à essas perspectivas genocidas para depois reconstruir a política dentro de uma perspectiva que respeite o pluralismo cultural, as organizações sociais, os povos, suas culturas, e fundamentalmente que se demarque as terras e nelas seja garantido o usufruto exclusivo dos povos indígenas”, conclui.
Conforme pontua Marciano, os povos indígenas sempre enfrentaram desafios com o atual presidente, contudo, no contexto atual, eles são potencializados. “Nunca imaginamos que seria tão forte a desatenção em relação aos povos indígenas, esses tantos vetos de algumas coisas que são tanto emergenciais, mas que também são direitos fundamentais. Isso é uma coisa que nos causou impacto grande e já está havendo uma grande mobilização, não só nota de repúdio, como também por caminhos jurídicos para ver o que pode ser feito”, frisa.
Redes de apoio e solidariedade
Enquanto as políticas do governo são de desatenção desassistência às comunidades indígenas, os movimentos sociais e organizações mobilizam forças para prestar auxílio. Uma das primeiras ações foi feita pela Ocupação Baronesa, Centro de Referência Afro-indígena do RS, que tem um posto de coleta de alimentos e materiais para as mulheres do coletivo de artesãs em Porto Alegre, além de guardar alguns dos artesanatos. A entidade criou a Rede Indígena Porto Alegre, que está com um financiamento coletivo online para ajudar à comunidade indígena e ajudar no reparo aos danos do telhado do Centro Referencial, causados pelo temporal do início de julho.
Além da Baronesa, o Fora da Asa também está promovendo ações para colaborar com os povos indígenas, através de uma vaquina virtual e através do através da página do Facebook Kunha Rembiap ou do WhatsApp (51) 99575-9320.
Também a Frente Indígena está com uma ação de arrecadação que pode ser conferida na imagem abaixo.
Edição: Marcelo Ferreira