Mariani Ferreira faz filme de quilombo, de resistência! Mas não só! Vidas negras importam!
Nos últimos dias só se fala dela: Mariani Ferreira, jornalista, roteirista, diretora e produtora executiva de cinema, gaúcha e porto-alegrense que foi vítima de racismo em uma live da APTC - que participou no último dia 5 de julho na presença de outros grandes nomes do cinema gaúcho.
A fala mais emblemática do racismo da live foi esta, entre risos, silêncios e cumplicidades racistas: “Você tá falando com uma Adami, um Gerbase, um Schunemann, uma Tomasi…não adianta a gente fazer um filme da senzala.”
Mas não é sobre os racistas que quero falar. Mariani merece mais. Vou falar da luta antirracista dela em um contexto do cinema que invisibiliza as mulheres, sobretudo as mulheres negras.
No dia que começou a circular o tal vídeo da APTC eu logo me manifestei sem titubear que se tratava de racismo e procurei a Mariani para externar meu apoio e a minha luta. Em minutos ela respondeu.
Meu primeiro contato com a Mariani se deu em 2016 quando ela me procurou para apresentar o longa-metragem que ela era a produtora executiva e roteirista juntamente com a Camila de Moraes: O Caso do Homem Errado, que fala do jovem negro operário Júlio Cesar "confundido" com bandido e, por isso, morto pela Brigada Militar em 1987.
Nós do Instituto Fidedigna apoiamos o filme e eu fui convidada, acho que a única branca do filme, a fazer uma análise sociológica do genocídio dos jovens negros, aproximadamente 45 mil mortos anualmente no Brasil.
Nosso primeiro encontro presencial aconteceu na padaria da República em Porto Alegre. Lembro que elas contaram do filme com muita paixão e estava claro que o objetivo delas era denunciar a persistente violência policial contra as juventudes negras e trazer alguma reparação e reconhecimento ao movimento negro e à viúva do Júlio Cesar que lutaram bravamente e conseguiram elucidar o crime com apoio do jornalista Fábio Bernardi da ZH.
Fiquei muito impactada e sensibilizada com a história do filme que se cruzava com a história delas. Topei na hora participar! Eu vi o potencial do filme na potência do olhar delas! Mariani tem o olhar de uma filha de Oxum – amorosa! Identifico-me!
E muito lindo o que esse filme alcançou. Em 2017 ele estreou no Festival de Gramado e foi uns dos indicados a representar o país no Oscar daquele ano. Seria muito esperar que a violência policial do país que tem a polícia mais violenta e que mais morre do mundo fosse exibido para o mundo todo, além do mais é só a segunda vez que uma mulher negra assinava um longa-metragem no nosso país. Seria demais esperar esta revolução as vésperas da eleição de um fascista no poder federal que assina hoje como o segundo presidente mundial com mais mortes e contágio por covid-19 – quase 70 mil vidas perdidas até ontem no país que governa e que estimula o não uso de máscara e a aglomeração e considera legítimo a morte de milhares em nome da economia. A história e o cinema vão cobrar essa conta, Bolsonaro´s!
Em algum momento do nosso primeiro encontro, talvez elas não lembrem, já que expressões racistas aparecem as pampas, eu soltei um "eu me encrespei" para contar algum percalço que tive para encontrá-las. De cara percebi que a minha expressão era racista. Fiquei envergonhada. Mas ter identificado isso, na presença da Camila e da Mariani, mudou a minha vida e até hoje lembro desse fato.
Graças ao trabalho delas meu pai e minha avó foram no Cine Bancários em março de 2018 para assistir o lançamento do filme O Caso do Homem Errado e pela primeira eram a minoria (como brancos) na sala de cinema. Meu pai chorou muito e foi Camila que me contou. Meu pai lembrava da história e foi sensibilizado pela luta antirracista ao assistir o filme e pela luta dos que estavam naquele espaço assistindo o filme com ele. Foi a última vez que meu pai pisou em um cinema. Mas fico muito feliz dele ter ido naquele dia, quem sabe somente para me prestigiar, contudo ele conheceu a potência do cinema e encontrou sentido nas minhas insistências cotidianas contra as suas expressões atravessadas de racismo estrutural. Meu pai tinha cristalizado a ideia de que negro era "preguiçoso" – embora isso não fosse explícito – mas estava longe de ser antirracista. Mas isso estava mudando, uma pena ele ter falecido tão cedo aos 65 anos. Há três meses meu pai morreu por insuficiência aguda respiratória no meio da pandemia e sem teste de covid-19. Queria ter refletido mais com ele sobre racismo e certamente teria ligado para ele para contar que a Mariani, do Caso do Homem Errado, sofreu racismo e possivelmente meu pai lembraria que foi através do filme dela que ele sentiu a injustiça de perto por um negro ser julgado, condenado e executado pela cor da sua pele. E eu leria esse artigo para ele por telefone.
Mariani além de roteirista de um projeto de ação e aventura da Rede Globo e ter vários filmes no currículo como o Necrópolis que está no Netflix é o meu bom exemplo de ontem, hoje e de sempre.
Mariani Ferreira faz filme de quilombo, de resistência! Mas não só – ela faz um cinema contemporâneo e tensiona para que negros não sirvam só como “token” – apareçam só para dizer que estão ali em posições de destaque quando isso não reflete na realidade em relação à igualdade racial nesse segmento como um todo! Segundo a Ancine, nenhum dos 142 longas-metragens brasileiros produzidos em 2016 foi assinado por uma mulher negra. Isso precisa mudar! Vidas negras importam! Força, Mariani! Sigo na expectativa que as principais lideranças políticas da cidade se manifestem – não é para fazer linchamento virtual é para trazer reparação e para que isso nunca mais aconteça! Isso diz muito da Porto Alegre que vamos eleger e construir! E que ela tenha uma política de década antirracista!
Edição: Katia Marko