“Hasta que el pueblo las canta
las coplas coplas no son
y cuando las canta el pueblo
ya nadie sabe el autor
procura tú que tus coplas
vayan al pueblo a parar
aunque dejen de ser tuyas
para ser de los demás
que al volcar el corazón
en el alma popular
lo que se pierde de fama
se gana de eternidad”.
Houve uma espécie de ironia conciliadora, quando quis recorrer a essas coplas de Manuel Machado para encimar esta lembrança.
Busquei-as digitando “Antonio Machado”. Então, o mais velho dos irmãos, o verdadeiro autor, afinal, viu confirmado o que aí diz: tenho seus versos na cabeça, mas confundi a autoria. Sim, porque, ainda que o principal objeto dessa reflexão eterna seja a glória do anonimato, também existem as trocas de autor e seus distintos motivos. E não quero misturar à evocação que faço aqui o mais feio deles; a apropriação mal-intencionada.
Há outros, bons ou belos. Foi o caso, nesta minha confusão fraterna.
Sou brasileiro e músico e ouço desde bem antes da tristeza daquele janeiro de 1982 as pessoas pedirem “aquela da Elis Regina”. Não era para mim, o pedido; sou intérprete do cancioneiro popular platino e chileno. Então, quantas vezes canto alguma “da Mercedes Sosa”. Nenhuma das duas é compositora; ambas são exemplares em colocar a arte da interpretação no centro da questão da autoria. Posso citar canções de ambas que, ainda que assinadas por meus prediletos criadores, não são de ninguém, mais do que delas.
Haydée Mercedes Sosa nasceu em 1935, na data pátria argentina, no Tucumán onde se declarara a Independência... e, ainda, com todos esses simbolismos, vejo-me impelido a molestar tantos amigos argentinos, depondo sobre o que vi – sua importância brasileira; sobre o que sinto – sua relevância latino-americana; sobre o que sei – seu alcance mundial. Desfrutem, claro, do justo orgulho de pertencer à pátria que a amamentou – mas Mercedes Sosa não é um fato nacional, como um papa não poderia ser.
Haydée Mercedes Sosa contou, divertida, que seu pai, ao registrar a criança nascida naquele 9 de julho, há 85 anos, decidiu trair o combinado: que o primeiro nome da filha seria Marta. E fez lavrar o oficial e afrancesado substitutivo.
Em casa, nunca valeu. Era Marta. Até falecer, em 2009, gostou de ser Marta e Marta sentiu-se.
Mas aos 15 anos, em uma participação por travessura em um concurso de rádio, foi Gladys Osorio. A ideia era enganar pelo tempo possível seu pai, que não aprovava a vida de cantora. Não durou muito a farsa, claro; quebrou-se o primeiro impacto da ousadia, convenceu-se Don Ernesto, meio a contragosto... e começou o caminho da cantora da América Latina.
É trabalhoso, mas não difícil, recuperar os dados dessa enorme trajetória. As dezenas de álbuns desde “La voz de la Zafra”, de 1959, até “'Y Seguí Cantando'. Canciones censuradas e inéditas”, póstumo, de 2011; a participação ao lado do então marido Oscar Matus e Armando Tejada Gómez, entre outros artistas, na criação do criterioso e engajado Movimiento del Nuevo Cancionero, em 1963; o triunfo em Cosquín, em 1965, com o apadrinhamento de Jorge Cafrune; a filiação política, a perseguição, o exílio em 1979; o retorno triunfal em 1982, ainda antes do final da ditadura; o reconhecimento planetário.
Prazeroso trabalho a encetar, de levantamento de reportagens, resenhas, infinidade de material disponível. Não é o que me dispus a fazer aqui e que retomo. Falava de autorias e anonimatos, de criadores e intérpretes. Falava do sentido brasileiro, americano e mundial da mulher de muitos nomes, que completaria neste 9 de julho 85 anos.
Nasci em 1966, no sul do Brasil. É mais fácil ao ouvido o castelhano platino, quando se é rio-grandense, claro; alguns formatos musicais também se assemelham. Mais do que isso; somos, nós mesmos, da bacia do Prata, desenhados que somos, em grande parte, pelo rio Uruguai.
Mas há, ressalvadas essas especificidades regionais, um tratamento brasileiro mais ou menos semelhante no trato das coisas “latino-americanas”. E o primeiro, o mais sintomático traço dessa interação nacional com o restante do continente é essa expressão e a lamentável forma com que é usada. Não causa nenhum espanto a locução “fulano toca música brasileira; aquele outro, música latino-americana.” O Brasil de imediato se arranca, se extrai do continente. Latino-americano passa a significar hispano-americano e não há como não ver corroborados todos os argumentos de um país voltado para o oceano e as metrópoles, divorciado das necessárias utopias de Patria Grande…
Se nos anos 50 “Latino” é Caribe, tropical; sensual-bailável-ritmado-caliente, orquestra, maraca, manga bufante, bolero, cha-cha-cha, ajudem aí -, na dura década de setenta e no movimento de reconquista democrática da década seguinte, no Brasil, “latino-americano” passa a significar a canção e a poesia de luta, de identidade, de defesa do americanismo, dos povos originários, dos trabalhadores, das tradições populares.
Começa uma atitude que busca redimir aquela posição suficiente, alijada dos processos continentais; assume-se uma resposta em bloco aos movimentos ditatoriais que, afinal, também em bloco se instalaram.
O resultado, hoje, é que um intérprete (como eu próprio, que me tornei músico e adolescente nos anos 80) não causará nenhuma estranheza a um auditório brasileiro se apresentar um repertório com temas de raiz folclórica de um punhado de regiões argentinas bem definidas, ao lado de temas urbanos uruguaios, exemplares da Nova Canção Chilena, temas líricos e comprometidos da Trova Cubana, talvez eventualmente um rock-canção portenho e mesmo um tango.
A canção hispano-americana (ainda chamada por aquele nome equivocado) nos foi apresentada assim. E sem nenhum esquecimento a tantos outros nomes, na pontualidade de seus trabalhos, foi por Mercedes Sosa que nos foi apresentada. Ouvi na Argentina comentários como “prefiro aquela outra cantora” ou boatos quaisquer sobre atitudes pessoais da tucumana – e sempre disse “vocês precisam saber o que essa mulher é no meu país”. E o que é? É Victor Jara; Alfredo Zitarrosa; Atahualpa Yupanqui; Violeta Parra; Silvio Rodríguez; Aníbal Sampayo; Tejada Gómez; Charly García; Milanés...
Arrependo-me imediatamente de haver começado a lista impossível. Aqui não falo de suas parcerias com nomes brasileiros, de suas fraterno-sororidades com Beth Carvalho, Chico, Milton, Luiz Carlos Borges, Raul Ellwanger, Sérgio Rojas... Falo da América Espanhola improvável que nos entregou. Falo do impossível que seria ver nexo entre essas sonoridades todas, encontrá-las juntas no rádio, no disco, se não fosse por uma militância absolutamente única de intérprete criadora.
Falo de La Negra. Haydée; um dia, Gladys; intimamente Marta, que não registra nenhum de seus nomes sob nenhuma canção e outorgou eternidades de anonimato a centenas de autores, de uma forma similar à de Machado e reafirmada toda a vez que alguém sente necessidade de escutar ou cantar um tema que nos identifique e assinale nossa dignidade americana; um que nos recorde nossa história, nossa ancestralidade mestiça, indígena e negra; que nos encoraje na singeleza do combate diário ou na grandiosidade das maiores lutas coletivas - uma canção de Mercedes Sosa.
* Demétrio Xavier é músico e comunicador
Edição: Marcelo Ferreira