A privatização da Companhia Estadual de Energia Elétrica (CEEE), grupo que hoje possui uma empresa operando no ramo de geração e transmissão e outra na distribuição de energia elétrica, tem recebido espaço significativo na imprensa em matérias que normalmente ressaltam as dificuldades financeiras da empresa de distribuição e trazem a visão dos dois últimos governadores de que a privatização é a única solução possível para o problema criado por eles mesmos: a gestão errada da empresa cujas diretorias deixaram de tomar as ações efetivas para vencer a crise.
Para evitar um debate mais aprofundado, o Governo do Estado, utilizando sua maioria na Assembleia Legislativa, retirou da população a possibilidade de manifestação plebiscitária, o que estava garantido na Constituição Estadual, sobre o destino deste patrimônio dos gaúchos que ao longo de décadas viabilizou o desenvolvimento econômico do Estado.
Algumas questões poderiam ser colocadas no debate que antecederia o plebiscito. Sabe-se que o investimento em energia elétrica tem retorno a longo prazo e não deve ser avaliado exclusivamente pelo resultado financeiro da empresa, mas sim pelo desenvolvimento global da comunidade a que se destina pois viabiliza novos negócios. Sem empresas estatais como o Governo levará energia elétrica às regiões mais pobres, para que possam ser gerados emprego e renda aos seus habitantes? Não será o investidor privado que fará, focado no seu lucro imediato. Temos exemplos claros disto. A linha de transmissão para o sul do estado conectando os parques eólicos e viabilizando uma energia de menos impacto ambiental e o desenvolvimento daquela região foi construída pela CEEE e Eletrosul, duas estatais, depois que nenhum investidor privado mostrou interesse nos leilões. Agora depois de construída, sem os riscos da construção, certamente haverá compradores. Podemos citar ainda as vilas com população de baixa renda na região metropolitana e a região do litoral onde são requeridos grandes investimentos para disponibilizar energia para 8 finais de semana no ano, ficando parte da estrutura ociosa no restante do tempo, mas que viabiliza uma intensa atividade econômica. O novo dono privado fará o que hoje a CEEE faz?
Para viabilizar a privatização da CEEE, o Governo do Estado executa outras ações, além de acabar com o plebiscito. Contratou o BNDES para modelar os leilões, e comunicou ao mercado a intenção de separar a empresa CEEE-GT em empresas exclusivas de Geração e Transmissão. A intenção é vender separadamente as três empresas, começando pela Distribuidora ainda este ano.
Existe, porém, um entrave significativo para que este objetivo seja atingido. A dívida de cerca de 1,3 bilhão de reais com o fundo de pensão dos eletricitários, a Fundação CEEE, que embora seja de longo prazo, possui garantias contidas nos contratos que podem inviabilizar a venda das estatais. Tais garantias foram exigidas pela Fundação, atendendo a legislação, como contrapartida às diversas renegociações de compromissos devidos pela CEEE ocorridas ao longo dos anos, quando a Fundação foi parceira decisiva no equacionamento dos problemas financeiros da estatal.
A solidariedade entre as duas empresas existentes, CEEE-D e CEEE-GT (que deve ser separada em G e T), em honrar os compromissos com a Fundação CEEE pode inviabilizar a ideia de vender separadamente os ativos dos três segmentos (geração, transmissão e distribuição) uma vez que o valor da dívida teria que aparecer como passivo nos três leilões. Além disto, o direito da Fundação acessar as contas bancárias da CEEE para quitar compromissos atrasados e a obrigatoriedade da quitação à vista de toda a dívida quando a empresa deixar de ser estatal devem afugentar possíveis compradores.
Tal situação deve gerar uma grande pressão sobre os gestores da Fundação para que aceitem uma alteração nos contratos, abrindo mão das garantias existentes. Isto não deve acontecer, pois caracterizaria improbidade administrativa, com sérias consequências para os dirigentes.
Ao contrário do que muitas vezes é divulgado, a constituição de um fundo de pensão não deve ser considerada uma benesse. Alimentado por contribuições iguais de empresa e empregados, o montante acumulado gera poupança interna, constituindo-se importante ferramenta de investimentos na economia nacional, a exemplo do que ocorre nos países mais desenvolvidos do mundo onde os fundos de pensão são responsáveis por parcelas significativas nos investimentos e consequente desenvolvimento daquelas economias.
A Fundação CEEE é uma empresa privada, regida pela exigente legislação de previdência complementar e fiscalizada por diversos órgãos estaduais e federais. Foi constituída há 40 anos, inicialmente para administrar o plano de pensão dos empregados da CEEE. Atualmente administra vários planos de benefícios, patrocinados por empresas estatais e privadas ou instituídos por entidades de classe. No ranking nacional está entre as 20 maiores entidades fechadas de previdência complementar e é a maior do Rio Grande do Sul. Administra um patrimônio de cerca de 7 bilhões de reais, investidos nos diversos setores da economia nacional, e paga mensalmente mais de 50 milhões de reais em aposentarias que abastecem diretamente a economia do nosso Estado.
Assim, além de toda a preocupação que devemos ter com a privatização da CEEE, precisamos estar atentos aos desdobramentos desta negociação pois a sociedade gaúcha pode ser duplamente prejudicada com a inviabilização do mais importante fundo de pensão do Estado.
* Sandro Rocha Peres é engenheiro eletricista aposentado da CEEE, ex-conselheiro deliberativo da Fundação CEEE
Edição: Marcelo Ferreira