Rio Grande do Sul

Coluna

Sim, é preciso ser antirracista!

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O Rio Grande do Sul também é de Oliveira Silveira - Tânia Meinerz/Divulgação
Não queremos pedidos de desculpas. Exigimos ações concretas. Reparação, já!

Recentemente participei do primeiro episódio da Feira Brasileira de Opinião na Pandemia, organizada pelo Instituto Augusto Boal. A I Feira Paulista de Opinião foi criada e organizada por artistas de diferentes linguagens e tinha como objetivo que estes mesmos artistas respondessem a pergunta: O que pensa você sobre o Brasil de Hoje?

Bem, eu que venho mantendo essa coluna no aqui no Brasil de Fato RS, pretendia falar sobre esse movimento, sobre a sua atualidade e ousar responder essa pergunta. Mas a luta antirracista falou mais alto e diante das manifestações racistas da live da APTC- RS, na última sexta-feira (3), que escancarou nosso racismo estrutural, convido a ocupar esse espaço a minha companheira de teatro e militância, Silvia Abreu.

Porque, sim, é preciso ser antirracista!

Parem de nos humilhar!                                                                                                                

Nos últimos meses, a pauta racial virou “moda”. Como nunca antes em nossas vidas, tivemos o tema das relações étnico-raciais a ditar a agenda dos meios de comunicação no mundo e também nas redes sociais. Parecia que o assassinato brutal de George Floyd por um policial branco norte-americano seria o que de mais grave nossa civilizada sociedade poderia produzir em termos de racismo e preconceito, sob a forma da violência policial. Mas não paramos por ali. Na sequência, tivemos, no Brasil, o assassinato de João Pedro Mattos, de 14 anos, durante operação policial em São Gonçalo, em sua própria casa, na periferia do Rio de Janeiro, alvejada por mais de 70 tiros. E ainda não refeitos (as) da indignação, nos deparamos com Miguel Otávio, o menino negro, de 5 anos, que morreu ao cair de um prédio de luxo no Recife, enquanto estava “aos cuidados” da patroa, branca. Culposo o crime, disse a Justiça, pois ela não teve intenção de matar. Mas quem, em sã consciência, deixa uma criança, quase um bebê, sozinho, em um elevador, sem que tenha, inconscientemente a intenção de “eliminar” aquele estorvo humano?  

Enquanto a violência policial nos causava esgares com seu cortejo de horrores contra a população negra, achávamos que estaríamos a salvo, pois, felizmente, temos a arte e ela pode nos redimir. E eis que uma live da Associação Profissional dos Técnicos Cinematográficos do Rio Grande do Sul (APTC-RS), realizada na última sexta-feira (3), com os profissionais envolvidos no longa-metragem “Inverno (1983)”, dirigido por Carlos Gerbase, nos tomou de sobressalto e indignação. Durante a transmissão, a cineasta Luciana Tomasi recorre à sua ascendência francesa para justificar o fato de que ela e seus colegas de cinema, de sobrenomes europeus, não poderiam fazer um filme de “senzala” ("Tu tá falando com um Schünemann, com uma Tomasi, uma Adami, um Gerbase... Não adianta a gente tentar fazer um filme da senzala, entende?”), no que foi secundada por risinhos de parte dos integrantes. A fala colonizada retumbou como um soco no estômago da cineasta Mariani Ferreira, única negra presente ao debate, e de parte da audiência que assistia ao debate. Mariani, ainda nocauteada pela flagrante fala racista, consegue reagir, afirmando que Porto Alegre também é dos Oliveira Silveira, numa referência ao poeta gaúcho Oliveira Silveira, um dos idealizadores do 20 de Novembro, o Dia da Consciência Negra.  Não vou me deter, aqui, aos desdobramentos do caso, que envolveu, ainda, retirada do filme da plataforma, sua repostagem devido ao clamor popular e pedido de desculpas de parte de Gerbase, em nome de sua esposa, seguido de amplas discussões nas redes sociais.

Ainda que para muitos estas narrativas soem como novidade, não o são para a população negra, que vive, há séculos, esta situação de exclusão e violência. Todos estes episódios evidenciam o racismo estrutural e sistêmico da nossa sociedade. Em que pese a escravidão ter sido abolida há décadas, suas representações ainda constituem e estão presentes nas relações sociais, na forma de sentir e olhar, demonstradas nas falas e no tratamento dirigidos à população negra. Existe um discurso contumaz que parece querer nos condenar àquele passado colonial, como se nós, herdeiros de um povo escravizado, devêssemos nos envergonhar do jugo que nos foi imposto e não aqueles que nos escravizaram. Inverte-se a escala de valores, a fim de que interesses e privilégios sejam mantidos. A instituição do racismo sedimenta cada discurso e prática que teima em nos colocar em um lugar de exclusão.

Não queremos pedidos de desculpas. Exigimos ações concretas. Reparação, já! Não pedimos esmolas. Não queremos blackface. Exigimos equidade e direito de acesso aos meios de produção, autonomia para contar a nossa própria história, sem intermediários. Queremos fazer a nossa própria narrativa e não precisamos que falem por nós. A igualdade entre diferentes jamais será alcançada sem um olhar honesto sobre as desigualdades sociais. Sem políticas públicas que se comprometam com a justa repartição do bolo, não conseguiremos avançar em direção a uma sociedade justa e plena de seus direitos. O racismo é um impedimento ao desenvolvimento econômico brasileiro. Mas para superá-lo, é preciso que alguns repensem seus privilégios. É necessário ter empatia com a causa racial.  Por estar na base de nossa sociedade, o combate ao racismo e a todas as formas de desigualdade é um compromisso de toda a sociedade, independente de etnia. Sem isso, não avançaremos como humanidade.

Texto de Silvia Abreu que é jornalista, produtora cultural, professora do Curso Superior de Produção Cênica da Faculdade Monteiro Lobato e integrante da MOVE – Rede de Artistas de Teatro de Porto Alegre; do Coletivo Nimba de Mulheres Negras e Diretora de Comunicação da Frente Negra Gaúcha.

Edição: Katia Marko