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Coluna

Os pressupostos em que se baseia a noção reacionária de “família tradicional”

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A ideologia moralista e a política sexual do fascismo também se apoiam em uma oposição artificial entre a moralidade sexual repressiva e a libertinagem e perversidade sexuais - Reprodução
A família patriarcal possibilita entregar a liberdade nas mãos de um líder-pai que reprime

Para Wilhelm Reich, em Psicologia de Massas do Fascismo, a sociedade autoritária se reproduz na estrutura biopsicológica das massas com o auxílio indispensável da família patriarcal. Não à toa, esse modelo familiar é defendido tão avidamente no contexto da política cultural dos regimes reacionários.

A família patriarcal, a partir das práticas de obediência e repressão da autonomia e da sexualidade, molda determinadas características subjetivas nas pessoas, principalmente a dependência e o desamparo afetivos, que conferem aos indivíduos a predisposição e a permeabilidade ao reacionarismo e aos rígidos códigos moralistas, e a possibilidade de entregarem sua liberdade nas mãos de um líder-pai que reprime, mas comanda.

A repressão sexual, que se apresenta no desenvolvimento de cada pessoa em primeiro lugar no interior das famílias, tendo sido identificada por Reich como fonte de comportamentos destrutivos e antissociais, também se reflete na maneira como as pessoas se comportam social e politicamente.

Reich observou que a supressão e repressão sexuais faziam as massas intimidadas e acríticas. As energias congeladas nas defesas caracteriais, na couraça, estavam indisponíveis para a crítica social racional. A preocupação das massas com problemas emocionais e sexuais levavam à apatia política.

A falta de clareza sobre questões sexuais e, pior, mentiras a respeito da vida amorosa e sexual, debilitavam a capacidade de as pessoas verem através da trapaça política. Para ele, se as pessoas estivessem mais em contato com seus desejos sexuais, teriam seu caminho pavimentado pelo contato com questões sociais mais amplas.

Escrevendo e pensando em todas essas questões no calor da ascensão do nazismo na Alemanha, e sentindo a necessidade urgente de ajudar a parar a escalada de destruição que marcou esse processo social e político, Reich se perguntava sobre como a Economia Sexual poderia, com mais eficácia, conter a política cultural e sexual reacionária. Aqui, cabe um pequeno esclarecimento: “Economia Sexual” foi o nome dado por Reich à área de conhecimento desenvolvida por ele e seus colaboradores, a partir do estudo interdisciplinar da distorção do funcionamento biossexual e emocional dos seres humanos, suas causas e consequências individuais e sociais, psíquicas e biológicas.

Para fazer frente à política cultural e sexual perpetrada pela reação política, seria necessário, para Reich, conhecermos os pressupostos discursivos e simbólicos, de amplo efeito emocional, em que se baseia a defesa da instituição familiar autoritária. Mas, antes de apresentar alguns deles, considero importante fazer uma breve distinção entre o que considero uma concepção funcional e uma concepção moralista e patriarcal de família.

De um ponto de vista funcional (como sinônimo de saudável, daquilo que funciona biológica e emocionalmente), a família seria um grupo de pessoas, geralmente, mas não necessariamente com parentesco consanguíneo, ligadas por um forte vínculo de afeto amoroso, que confere a esse grupo a capacidade de gerar naturalmente para seus membros as sensações de suporte, lealdade, generosidade e pertencimento. Por outro lado, de um ponto de vista moralista, a família seria uma instituição organizada rigidamente em torno das figuras poderosas dos genitores, principalmente do pai, aos quais os filhos devem obediência. A coesão familiar ocorreria em torno das ideias de ordem, controle, correção e autoridade, como um Estado em miniatura.

Para Reich, esse segundo tipo de família – que ele chama família autoritária – estaria estruturado, também, em torno do vínculo de dependência econômica das mulheres e dos filhos em relação ao pai e em torno da repressão sexual. Essa afirmação faz sentido se observarmos, por exemplo, que o tema da sexualidade é muito comumente velado, escondido, temido e até mesmo punido no interior de muitas famílias. Segundo ele, essa espécie de ligação familiar marcada pela dependência só pode ser suportada por seus membros na medida em que a consciência de serem seres sexuais seja abafada, principalmente nas mulheres e nas crianças.

De acordo com a ideologia da família tradicional, a mulher tem uma função quase que exclusivamente procriadora. A sexualidade só é moral quando realizada em nome da reprodução e o ato sexual por prazer desonra a mulher. A função sexual desta última é rebaixada em nome de seu papel reprodutivo. Todo esse imaginário é sustentado sobre as bases do culto à maternidade como uma função imaculada.

Essa concepção a respeito das mulheres, sua defesa e implementação, seria uma das principais características da política sexual reacionária. Reich irá observar que esse culto idealizado da maternidade – que retrata as mães como não sexuais e servis, movidas pela abnegação do prazer de viver em nome do dever sagrado de criar os filhos – contrasta com a real brutalidade com que são tratadas as mães das classes trabalhadoras:

“Numa sociedade em que as mulheres têm de estar dispostas a ter filhos, sem qualquer proteção social, sem garantias quanto à educação das crianças, sem mesmo poderem determinar o número de filhos que terão, mas que mesmo assim tem de ter filhos sem se insurgirem contra isso, é realmente necessário que a maternidade seja idealizada, em oposição à função sexual da mulher” (Psicologia de Massas do Fascismo).

Reich entende esse imaginário como um meio de impedir que as mulheres adquiram consciência sexual, ultrapassem o recalcamento de sua sexualidade e vençam a ansiedade e a culpa sexuais, condição em que não seguiriam de bom grado a slogans reacionários que pretendem escravizá-las.

A ideologia moralista e a política sexual do fascismo também se apoiam em uma oposição artificial entre a moralidade sexual repressiva e a libertinagem e perversidade sexuais. É dessa forma que o discurso da moral repressiva se aproveita da ignorância da população a respeito de uma regulação sexual saudável para explorar o medo sexual em sua campanha política. Isso quer dizer que a ameaça de libertinagem, de sujeira e depravação, que extraem sua força da ignorância e da ansiedade sexual da população produzidas pela repressão, são usadas como forma de convencimento.

Aqui no Brasil, as falácias a respeito do famigerado “kit-gay” ou da assustadora “mamadeira de piroca” foram artifícios habilmente empregados pelas campanhas políticas reacionárias para gerar um clima de tensão e medo na população, que não consegue, em sua maioria, conceber uma vida sexual que não seja regulada ou pela moral repressiva ou pela libertinagem.

“A moral representa um pesado fardo, e o instinto aparece como um perigo tremendo. O ser humano que recebeu e conservou uma educação autoritária não conhece as leis da autorregulação e não tem confiança em si próprio; tem medo de sua própria sexualidade porque não aprendeu a vivê-la naturalmente. Por isso rejeita a responsabilidade pelos seus atos e tem necessidade de direção e orientação” (Psicologia de Massas do Fascismo).

É nesse sentido que Reich afirma que cabe às forças progressistas, comprometidas com a vida viva e com a regulação prazerosa, potente e saudável da sociedade, apresentar às pessoas o conhecimento claro a respeito de uma vida sexual e emocionalmente autorregulada, uma grande alternativa ao binômio repressão-perversão.

Descrição da imagem: Trata-se de uma pintura retratando uma família. Parece um retrato, em que as personagens estão de pé à frente de um fundo azul. Suas pernas não aparecem na imagem. No centro, temos o pai. Ele está vestindo um paletó preto e uma gravata vermelha. Está envolvendo com cada um de seus braços a filha mais velha, à esquerda, e a esposa, à direita. A filha usa um vestido rosa. A esposa um vestido vermelho. Os três estão sérios. O pai tem um enorme bigode. Um dos lados do bigode cobre os olhos da filha. O outro lado cobre a boca da esposa. À frente desses três, há três filhos menores. Da esquerda para a direta, um menino caçula de camisa azul, uma menina de maria chiquinha e vestido rosa com botões brancos e um menino maior, também de camisa azul. Cada um dos meninos tampa um dos ouvidos da menina. Todos os seis personagens tem a pele branca e o cabelo liso, em tons castanhos e pretos.

Edição: Katia Marko