Mais cooperação e menos competição. Esse pode ser o lema da nova normalidade. Quando a pandemia passar, poderemos viver a utopia do bem comum. Ressignificar esse conceito como um horizonte para o qual nos aproximamos enquanto caminhamos, a cada dia e mais, escolhendo, conscientemente, a cooperação como caminho.
A pandemia vai passar e o que aprendermos nesse período será decisivo para a retomada. A crise, ao mesmo tempo em que fortaleceu a ideia da humanidade como comunidade, expôs as vísceras da sociedade capitalista que alimenta a desigualdade como óleo para a engrenagem. No capitalismo, a exclusão de muitos determina o bem-estar de poucos.
Nós podemos confrontar esse modelo desde já. Romper a lógica da exploração significa proporcionar o bem-estar de muitos e isso é a essência do cooperativismo. Analisar os movimentos deste setor na pandemia pode nos fornecer elementos fundamentais para escrever o roteiro da nova normalidade.
A RedeCoop, que reúne 12 mil agricultores familiares de 44 cooperativas em 31 municípios gaúchos, foi a primeira rede no estado a repensar a própria logística para manter o fornecimento de alimentos durante o isolamento social. Acostumada a entregar 60 toneladas por semana para compras públicas, como a merenda escolar, a RedeCoop viu sua logística estacionar quando as escolas fecharam. Imediatamente, a rede se articulou a outras entidades e começou a liberar os estoques por meio de cestas básicas para pessoas em situação de vulnerabilidade. Em pouco mais de três meses, foram distribuídas 98 toneladas de alimentos para 5,2 mil famílias.
A experiência das cestas representa um dos pilares do cooperativismo, a solidariedade, bem como relações de produção e consumo mais justas. Sabemos que quando a cooperação é estimulada, incentivada por políticas públicas, o resultado é ainda mais positivo porque ajuda a ampliar a escala e o raio de ação, portanto, sua abrangência.
A agricultura familiar é responsável, hoje, por 70% dos alimentos consumidos, diariamente nas refeições dos brasileiros. Arroz, feijão, leite, farinhas, hortifrutigrangeiros e produtos agroindustrializados alimentam também mais de 47 milhões de estudantes da rede pública de ensino, além de hospitais públicos, bandejões de instituições federais de ensino, quartéis das forças armadas e instituições filantrópicas que recebem produtos do banco de alimentos.
Essa oferta é possível porque, nos últimos 20 anos, o Brasil fortaleceu as políticas públicas para o campo, criando incentivos à produção de alimentos que deram garantias aos produtores familiares, como é o caso do PRONAF (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar). O número de financiamentos cresceu exponencialmente nesse período, com juros subsidiados que permitiram financiar o desenvolvimento do setor. O aumento da produção de alimentos, a qualificação da Assistência Técnica e os programas de compras públicas, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), são o tripé que dá sustentação ao setor.
A agricultura familiar chegou nesse ponto também porque as famílias escolheram se organizar em associações e cooperativas, e com o incentivo das políticas públicas e a demanda crescente, puderam planejar o aumento da produção para atender o mercado institucional e o mercado privado.
Enquanto ação coletiva, o cooperativismo já provou ser uma ferramenta de transformação da sociedade, conscientemente justa e solidária, no sentido oposto ao individualismo. A cada época, esses ideais se reconfiguram e se adaptam às dinâmicas econômicas e sociais para superar e exclusão. Foi assim na sua origem moderna, quando em 1844 um grupo de trabalhadores ingleses criou um armazém para reduzir o custo dos alimentos. A Sociedade dos Probos de Rochdale foi uma resposta a consequências da Revolução Industrial: desemprego, baixos salários, péssimas condições de trabalho, jornadas desumanas, exploração de mão de obra de crianças e jovens, miséria.
No Brasil, experiências de produção, crédito e de consumo criaram, por meio de uma gestão participativa, mecanismos para ampliar o alcance do bem-estar. Um exemplo disso é a produção e o consumo de alimentos livres de agrotóxicos. Neste caso, o cooperativismo é um conector entre consumidores e produtores conscientes de que o alimento é mais do que uma mercadoria, ele é uma expressão do bem viver. Outro exemplo, são as tecnologias que foram sendo incorporadas ao exercício da cooperação. Hoje, a tecnologia ajuda a manter os associados informados, qualifica a logística e ainda serve como ferramenta de comunicação com o consumidor. O cooperativismo utiliza a tecnologia para melhorar as relações, em contraponto, ao uso dessas ferramentas para precarizar o trabalho.
Novamente, o cooperativismo se apresenta como uma solução coletiva para a crise, uma opção sólida para reconfigurar a normalidade. Nada mais será igual, e isso significa também não cometermos os mesmos erros. Temos a oportunidade de recriar estruturas e convívios que nos permitam viver mais felizes entre nós e com o meio ambiente. Incluindo a todos, mulheres e homens, idosos, jovens e crianças. Esse mesmo ideal serve para abandonarmos relações de abuso e exploração no trabalho e em casa, expormos o desequilíbrio na divisão do trabalho doméstico, no cuidado com os filhos e doentes, reinventarmos nossa relação com a natureza, com as cidades e com a comida. Mais cooperação e menos competição. Esse pode ser o lema da nova normalidade.
* Charles Lima é presidente da RedeCoop e Manoela Frade é jornalista
Edição: Marcelo Ferreira