Enquanto muitos estão em isolamento social, afastados dos seus locais de trabalho ou de atividades externas por conta da pandemia do novo coronavírus, eles circulam pelas ruas realizando ainda mais entregas, seja de moto, carro ou bicicleta. A maioria dos entregadores de aplicativos tem jornadas de trabalho exaustivas, sem finais de semana, se arriscando no trânsito, sujeitos a todas as intempéries, expostos ao vírus, sem direitos nem proteção. Enquanto isso, empresas como Rappi, UberEats, Loggi e Ifood seguem enriquecendo.
Na era dos trabalhos informais, coletivos como os Entregadores Antifascistas, Coletivo Independente de Trabalhadores de Aplicativo (C.I.T.APP) e Treta no Trampo reacenderam o debate sobre a precarização do trabalho e organizaram uma greve nacional para esta quarta-feira, 1º de julho. A mobilização ganhou força nas redes, com entregadores compartilhando depoimentos, e alcançou países como Argentina, Equador, Chile e Máxico, onde a categoria também promete aderir ao movimento.
Em Porto Alegre, uma manifestação está marcada para ocorrer nesta quarta, às 10h30, em frente ao MC'Donalds da Andradas, na praça da Alfândega, com todas as medidas de segurança sanitárias possíveis. Por meio das redes sociais, os entregadores estão usando a #ApoieoBrequedosApps para orientar a população sobre como se solidarizar ao movimento por condições mais dignas de trabalho. Nesta tarde, a hashtag #BrequeDosApps está em em quarto lugar nos assuntos mais comentados no Twitter Brasil.
“As principais reivindicações do breque do dia primeiro são o aumento das taxas por km, não tem condições nós estarmos recebendo R$ 3,50 em várias entregas com a Uber, por exemplo. Aumento do valor mínimo, uma espécie de garantia de que mesmo nos dias ruins tu tire a grana suficiente pra pagar o gás, porque as vezes tiramos do bolso pra trabalhar”, declara Gabriel, integrante do C.I.T.APP que trabalha com sua bicicleta em Porto Alegre desde janeiro, após se formar em História e ficar desempregado.
Além disso, segundo ele, que prefere não ter o sobrenome identificado por receio de represálias, tem a busca de alguns direitos mínimos e o fim dos bloqueios injustos nos apps. “Tem muita gente sendo bloqueada sem explicação, nunca escutam o nosso lado porque sabem que tem muita gente na fila atualmente. E pedimos auxílios como de alimentação, roubo e o fim do sistema de pontuação”, afirma, exemplificando com a metodologia da Rappi, que “obriga a galera a trampar muito de sexta a domingo pra acumular pontos, senão o cara não consegue corrida na próxima semana e fica restrito as piores áreas”.
Mais trabalho e menos renda na pandemia
Não se sabe muito bem o número exato de entregadores por aplicativos, uma porque as empresas não fornecem números, nem cruzam os dados para saber quantos entregadores trabalham para mais de uma empresa. Em 2019, cerca de 4 milhões tinham a entrega por apps como principal fonte de renda no país, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE).
Em entrevista à agência Reuters, o vice-presidente do iFood, Diego Barreto, disse que o número de cadastros na plataforma mais que dobrou em março, quando começaram as medidas de isolamento no Brasil. Foram 175 mil inscrições de candidatos interessados em atuar como entregadores da plataforma, diante de 85 mil em fevereiro. Controlado pelo grupo brasileiro Movile, o iFood em abril tinha 140 mil entregadores cadastrados no país, além de 200 mil terceirizados que atendem diretamente restaurantes.
A colombiana Rappi também informou uma alta de cerca 30% em todas as entregas na América Latina nos dois primeiros meses deste ano, comparado com os dois últimos meses de 2019. Até o início de março, tinha cerca de 200 mil entregadores no continente.
Constata-se que durante a pandemia o trabalho aumentou e o rendimento diminuiu. O estudo intitulado “Condições de trabalho de entregadores via plataforma digital durante a Covid-19”, divulgado pelo Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (Cesit), confirma a situação desses trabalhadores que arriscam sua saúde e a de suas famílias no desempenho de um serviço essencial para a população brasileira ao contribuírem para a implementação e a manutenção do isolamento social no contexto da pandemia.
“O tempo de trabalho dos entregadores continuou elevado durante a pandemia da covid-19. A indicação de 56,7% trabalhar mais de nove horas diárias, combinado ao fato de 8,1% desempenhar atividades de entrega em seis dias ou mais por semana, aponta para uma elevada carga horária. Os longos tempos de trabalho, entretanto, tiveram repercussão inversa na remuneração, indicada pela redução de trabalhadores nas faixas remuneratórias mais altas”, consta a pesquisa.
“A mercê da sua própria sorte”
Tirza Ferreira, que faz parte do Entregadores Antifascistas em Porto Alegre, foi uma que iniciou o trabalho de entregadora durante a pandemia para contribuir nas finanças da família. Estudante de Pedagogia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), onde é coordenadora-geral do DCE, ela não teve sua bolsa de estudos renovada e, com a mãe desempregada, comprou uma bicicleta especificamente para o trabalho. Atualmente, faz de cinco a seis dias por semana, evitando a noite porque tem “muito medo, por ser mulher”. Para ela, é um completo absurdo a ideia de empreendedorismo vinculada a esse tipo de trabalho, “que na prática só significa estar à mercê da sua própria sorte”.
“Me sinto muito exposta”, releva ao falar do dia a dia de entregas durante a pandemia. “Na verdade, é péssimo porque é muito difícil pedalar de máscara. Acaba que eu encosto na máscara durante o pedal sem querer, ou tenho que tirar pra conseguir respirar, então eu sinto que basicamente não consigo seguir as recomendações.” Para ela, o álcool em gel também não ajuda muito porque acaba que as mãos sujam. Mas nem isso as empresas disponibilizam aos seus empregados.
Segundo Tirza, o grupo Entregadores Antifascistas tem debatido a fundo o que significa a precarização dos apps e as causas do inchaço na pandemia. “Isso afeta todo mundo! Quem já trabalhava agora recebe menos pedido e quem entrou agora é porque tá sem recursos na pandemia”, constata. Na sua avaliação, “a luta precisa ser antifascista pelo crescimento que têm rolado dessa ideologia liberal. O governo Bolsonaro é agente direto dessa precarização aos trabalhadores, muito ilustrada na vida dos entregadores de apps. Nossa luta é pra construir alternativas populares pra uma categoria, alternativas anticapitalistas”.
Não ganham nem a "bag"
Mestranda em Sociologia da UFRGS, Agnes Silva trabalhou com entregas de bicicleta no segundo semestre de 2019 e pesquisa o tema. “Comecei a estudar os apps depois de passar o primeiro ano do mestrado sem emprego e bolsa. Comecei com as tele-entregas de bike e depois passei a fazer faxinas também por meio dos aplicativos. Dessa forma comecei a estudar como a organização do trabalho nos aplicativos impacta nas estratégias competitivas dessas empresas.”
Ela também relata a perigosa exposição dos entregadores durante a pandemia, além da diminuição do valor pago e o fato de arcarem com os custos de manutenção do veículo e gasolina. Além disso, as entregas têm tempo específico imposto pelo app e isso pode ocasionar em mais acidentes de trânsito. “Os entregadores não têm nenhum subsídio para os custos com o trabalho, não ganham nem a “bag” que faz o transporte dos alimentos. Eu mesma já recebi avaliações negativas por carregar o alimento em uma mochila e assim que consegui dinheiro comprei a minha bag (usada) por R$ 80,00. O preço de uma nova pode chegar a R$ 150,00. Os entregadores que ganham o equipamento de forma gratuita geralmente são os ligados a operadoras de logísticas (OL)”.
Não pode ficar doente
Diego Camboim trabalha com aplicativo em sua moto há quatro anos, desde que a Rappi chegou no Brasil. Iniciou fazendo uma jornada das 8h da manhã até a meia-noite, mas hoje vai das 8h da manhã até umas 19h, conforme a demanda e a necessidade. “Hoje, trabalhando 8 horas por dia, de segunda a sexta, separado, pago pensão, custo de vida médio, sofro para manter as contas em dia. A fatura de cartão muitas vezes eu pago o mínimo, muitas vezes tenho que passar o meu cartão na maquininha para dar um complemento no mês. Não tem como sustentar uma família, mulher e criança, trabalhando 8h por dia.”
Sem mínimos direitos e proteção, ele afirma que a realidade do motoboy não permite ficar doente. “Se tu ficar doente a tua família não come, tu não come, não paga as contas. Tem dois anos e meio que eu não sei o que é pegar uma gripe, uma dor de barriga e ficar em cima de uma cama em casa.” Ele ressalta que os entregadores estão todos os dias em cima da moto, mas ninguém reconhece. “E no meio da pandemia é tu acreditar que não vai te infectar e se tu te infectar... Eu consegui fazer o seguro em um banco contra acidentes pessoais, se eu sofrer acidente na moto, tenho uma cobertura. Tem gente que não tem seguro, nada, tem gente que quebra a perna e vai trabalhar.”
Para ele, que até pouco tempo não conhecia o grupo Entregadores Antifascistas e afirma não ter uma posição formada sobre os rumos do atual governo, critica o fato das empresas ativarem qualquer pessoa. “Tu podes ser açougueiro, padeiro, qualquer tipo de pessoa, eles estão ativando como entregador e a nossa reivindicação é que eles não ativem quem não for qualificado. O que é uma pessoa qualificada? É aquele que tem um EAR (Exerce Atividade Remunerada) na carteira, cara que paga o imposto para trabalhar de motofretista, que tem curso, que tem a moto equipada para isso esse é o principal problema.”
Caminho para conscientização
“Temos que fazer um trabalho de conscientização da categoria, de forma lenta, um trabalho de curto, médio e longo prazo de conscientização para que eles enxergam a realidade. Esses que procuram manifestação já enxergaram e eu acredito que essa greve vai contribuir com essa conscientização”, afirma o presidente do Sindimoto/RS, Valter Ferreira.
Segundo ele, o sindicato apoia todo ato organizado pelos trabalhadores, independentes de serem sindicalizados, associados ou não, desde que tenha coerência e objetivo. “É o caso da paralisação prevista para o dia primeiro. Vai ser uma porteira aberta, se isso realmente acontecer teremos muitas mudanças porque, pelo Sindimoto/RS, eu tenho tentado, já chamei a categoria por várias vezes para que nós pudéssemos através de um movimento grevista fazer com que as empresas de aplicativo os valorizassem, os respeitassem mais.”
“Esse iFood, Loggi, e tantos outros, eles não têm responsabilidade social. Eles não forneceram nada. Enquanto que as empresas regulares fornecem equipamento de segurança, álcool em gel. Nós conquistamos aqui, como fez o sindicato de São Paulo, conseguimos doação de álcool em gel para ajudar a categoria”, afirma. Ele destaca ainda que as empresas regulares pagam uma série de impostos, mas os apps levam o dinheiro para fora do Brasil e não recolhem um centavo de imposto. “Não tem um retorno social. O que é engraçado é que o governo tributa tudo, então porque os apps não são tributados? Os caras ganham 100% limpo, ainda fazem o que querem, e os nossos governantes e a nossa justiça não enxergam isso.”
Mito do empreendedorismo
Na avaliação de Gabriel, o discurso do empreendedorismo é um mito. “Se a gente fosse empreendedor de nós mesmos, a gente podia definir que horas trabalha e como, mas isso é uma mentira. A gente tá totalmente sujeito a demanda deles, se tu não cumpri o que a plataforma espera de ti, tu tá ferrado.” Segundo ele, não existe clareza nem mesmo em relação à determinação dos pedidos. “A verdade é que esse papo é pras empresas não terem que arcar com os direitos trabalhistas, por isso ficam dizendo que a gente é parceiro. Parceiro é meu colega entregador, a plataforma é a minha exploradora”, critica.
Segundo ele, a organização entre os entregadores em Porto Alegre é recente. “Até onde eu sei, nenhuma organização formal é mais forte politicamente. Tá chegando agora com o C.I.T.APP, que eu faço parte, e com alguns grupos que vêm surgindo. Acho que o lugar que a galera mais troca ideia sobre os problemas, além dos grupos, é no meio tempo de espera entre pedidos na frente dos restaurantes, geralmente é ali que a galera consegue ter um tempo pra troca um ódio pelas empresas.”
Tirza concorda: “O empreendedorismo é só uma ilusão liberal que vem junto de um pacote da precarização do trabalho informal. Então os grandes empresários jogam essas ideias pra gente se sentir responsável por questões que deveriam ser dever do Estado, como nossa própria saúde”. Segundo ela, o que mais dá suporte é o trabalho realizado com um grupo de mulheres autônomas de Porto Alegre. “Eu tô com os dois joelhos machucados e tendo que trabalhar mesmo assim, e uma dessas mulheres pras quais eu faço tele, a Taís, da Fisalis, me ajudou passando um valor muito massa pra eu cuidar do joelho”, conta.
Já Agnes considera que vários pontos devem ser pensados em relação ao empreendedorismo. “Primeiro que a grande maioria dos motoboys não querem ser celetistas. Eles gostam da flexibilidade de horário e dos dias de trabalho. E não gostam de serem subordinados e receberem ordens. O que eles especificam é mais comunicação e transparência dos apps, pois recebem bloqueios na plataforma e em seus cadastros e não justificam o porque disso ocorrer”, aponta.
Baixo valor das entregas
Ela ressalta que a variação do preço das entregas é muito grande. “A Uber quando está com dinâmica alta pode chegar a pagar até R$ 15,00 por rota, mas com a dinâmica baixa, as vezes não chega a R$ 5,00. O sistema de avaliações também não é transparente, ficando muitas vezes, subentendido que os entregadores são avaliados. O iFood mesmo, até pouco tempo atrás, indicava a avaliação dos entregadores no cadastro. Atualmente não tem mais acesso a essas avaliações no cadastro do entregador, mas o que eles questionam é se o sistema continua sendo feito e quais os critérios para essas avaliações. O que sabemos é que quem tem as melhores avaliações ganha mais rotas.”
“Estão diminuindo os valores e não estão nem aí para a gente”, critica Diego. Segundo ele, a Uber começou no país cobrando 25% do seu usuário e hoje está, em média, cobrando 65%. “O usuário ganha R$ 7,00 para fazer uma entrega, R$ 3,00 ficam para a Uber e ainda cobra uma taxa do restaurante que está atendendo. Assim como o iFood cobra, se tu faturou R$ 3.000,00 pela empresa, 35% desse valor é deles, se a tele é R$ 15,00, ele te paga R$7,00. Se tornou comum atualmente o aplicativo te comer 50%.”
Uma experiência transformadora
Uma experiência em Porto Alegre que vai na contramão da uberização do trabalho e mostra o poder da auto-organização é o Pedal Express. O coletivo de ciclistas existe há 10 anos, se organiza horizontalmente fazendo entregas e, ao mesmo tempo, cuidando da gestão, explica um de seus membros, o Vinicius Hax. Ele é solidário com a paralisação desta quarta e sugere a quem utiliza esses serviços que procure informações sobre tudo que está por trás do uso desses aplicativos e das situações de trabalho impostas pelos mesmos.
“A precarização do trabalho dos ciclistas e motociclistas de aplicativos é evidente. Nós apoiamos a luta desses trabalhadores e convidamos vocês a conhecerem as pautas deles e a saber o que verdadeiramente está por trás do ‘boom’ dos apps. E de que modo o desemprego e a necessidade de tirar uma renda de qualquer lugar levaram milhares de pessoas para esse trabalho informal mascarado de autônomo”, afirma. Segundo ele, a Pedal Express vem para mostrar que existem maneiras diferentes de trabalhar com entrega. “Infelizmente essa não é a realidade de muitos entregadores.”
No sentido da valorização dos trabalhadores de apps, o presidente do Sindimoto/RS deixa o recado: “Tenham consciência da importância de vocês, se vocês não tiverem consciência da importância, vocês sempre serão um nada na mão desse pessoal que paga para vocês o que querem e coloca vocês em risco de vida.”
Como apoiar a paralisação
A estimativa dos coletivos organizadores da greve é que grande parte dos entregadores de aplicativo se somem na paralisação. Mas destacam que é fundamental também que a população seja solidária ao movimento por condições mais dignas de trabalho. Confira as dicas dos motoboys:
1) Não peça comida pelos aplicativos
Os trabalhadores indicam que os usuários aproveitem o dia de paralisação para cozinhar e priorizar a comida caseira. De acordo com eles, as empresas costumam liberar cupons de desconto nos dias de mobilizações, com o objetivo de enfraquecê-las.
A campanha pede que no dia 1º de julho, as pessoas cozinhem sua própria comida e compartilhem uma foto com a #ApoioBrequedosApps. Se for mesmo necessário, a orientação é que a refeição seja comprada direto no restaurante escolhido.
2) Avalie os apps negativamente
A segunda forma de ajudar a mobilização é acessar as lojas de aplicativos do seu smartphone, como Google Play e Apple Store, e avaliar as apps das empresas de delivery com a menor nota possível. Os entregadores também sugerem postagem de comentários em apoio à paralisação nas lojas de apps para chamar atenção de outros usuários.
3) Ajude na divulgação
Os motoboys apontam que um outro modo essencial para ajudá-los é compartilhar materiais sobre a paralisação o máximo possível.
Debate online
Nesta terça-feira (30), a Rede Soberania e o Brasil de Fato RS promovem um debate virtual sobre a paralisação dos entregadores. Assista:
Edição: Katia Marko