O modo como a ministra Damares Alves processa os impulsos retrógrados do capitão Bolsonaro (referidos, em parte, aos anos de chumbo no Brasil, em parte, à Idade Média profunda) é se deixando infantilizar. Como nos mostra um vídeo divulgado há pouco, ela faz aflorar em si – em seu próprio corpo – uma criança mítica, cuja gestualidade, cujo vocabulário e cuja mistura de espontaneidade e empolgação incontidas parecem suspensos no tempo, congelados num espaço onde pode sentir-se a salvo, pois nos provoca, desde lá, a impressão de que é, de fato, uma criança que nos fala.
Menina travessa incorporada numa mulher madura, Damares Alves lucra duplamente: primeiro, porque se mostra inimputável, entregue em sua aparente inocência, protegida atrás da imaturidade que encena, da suposta pureza pré-cultural de que lança mão; segundo, porque assim se iguala ao público ao qual se dirige, tornando-se uma espécie de “pequena rainha” entre milhões de baixinhos e “pequenos heróis” – “príncipes” e “princesas”, como ela prefere chamar, convidados de honra para passar uma tarde num Palácio, no cume de um planalto.
Na história do país, nunca foram registrados tantos óbitos quanto em maio de 2020. Estamos próximos da trágica marca de 60.000 vítimas fatais de covid-19. E o que faz o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos no auge da pandemia? Como a ministra mobiliza sua própria pasta? Como se permite ver? Quais políticas públicas são implementadas para reagir à crise sanitária? Organiza um concurso de máscaras infantis, é claro – uma ação recreativa que colocará em risco a saúde do vencedor, caso necessite se deslocar até Brasília para retirar o prêmio. E mobiliza, para isso, a pesada máquina do estado, o dinheiro público, os veículos de comunicação e produção de conteúdos.
O ex-ministro da Educação Abe Weintraub havia fundamentado seus ataques retóricos à diplomacia internacional nos gibis da Turma da Mônica. Damares Alves é uma abstração tragicômica semelhante: um personagem extraído de um cartoon. Ou melhor: é a figura perfeita de uma sitcom latino-americana. Nela, existe alguma coisa de Tom & Jerry, de Mazzaropi, dos dramalhões filmados no México. É como se fosse a conjunção entre Regina Duarte, agora a eterna ex-namoradinha do Brasil, e Chiquinha, a filha de Seu Madruga, do Chaves.
Carro-chefe do Sistema Brasileiro de Televisão (SBT), o programa do Chaves, aliás, é povoado quase integralmente por crianças interpretadas por adultos envelhecidos. Quando o último episódio foi ao ar, em 1995, Roberto Bolaños, que havia idealizado a atração e era o ator que interpretava o protagonista, já havia completado 70 anos.
Damares Alves, no vídeo que agora veio a público, sob a trilha sonora de um desenho animado – a melodia é leve, descontraída e assobiável –, desempenha bastante bem esse papel: a ministra governada por um princípio de irrealidade, aderida por completo ao mundo infantil e ao conto de fadas que simula. Damares Alves é uma das melhores imagens do SBT na política.
* Fabrício Silveira é professor universitário
Edição: Ayrton Centeno