* Correção 22/06: na primeira versão deste texto, o Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano Ambiental (CMDUA) estava com a sigla antiga, de quando era Conselho Municipal do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano (CMPDDU).
Vamos sobreviver ao novo coronavírus, mas a democracia participativa pode morrer. Esse é o alerta de Laura Elisa Machado, que muito já sacolejou dentro de ônibus para ir do bairro Costa e Silva até a Casa do Gaúcho, no Centro Histórico, ajudar a escolher as prioridades para Porto Alegre. Neste ano, porém, ela não deve sair de casa para votar. “Provavelmente não teremos plenárias”, afirma.
Ironicamente, a derrocada do Orçamento Participativo acontece logo no momento em que os porto-alegrenses mostram seu poder de mobilização para enfrentar a pandemia, organizando-se para ajudar os vizinhos, os negócios do bairro ou moradores de rua. “Essa energia criativa e solidária que foi se formando nas janelas, nos pátios, nos terraços, agora tem que ser aproveitada e mobilizada para o espaço público, para dar vida de novo às cidades”, afirma o sociólogo português Nelson Dias, que estuda OPs ao redor do mundo.
Mas, quando Nelson Marchezan Júnior (PSDB) tomou posse, em 2017, o OP já não vinha bem das pernas. Segundo a prefeitura, na época havia 2.395 demandas aprovadas pela população, mas nunca levadas a cabo – a mais antiga havia sido feita em 1994. Com esse argumento, o Executivo propôs que, pela primeira vez na história, não se votassem novos pedidos naquele ano. A sugestão era fazer uma revisão das demandas antigas, para ver o que ainda fazia sentido para as comunidades, e foi acatada pelo Conselho do Orçamento Participativo (COP), órgão máximo do OP. “Foi o maior erro que cometemos, por ter sido dentro da administração atual. Houve uma diminuição da participação, que já não era tão expressiva. Ficamos fragilizados”, reconhece Machado, que é conselheira pela região Eixo Baltazar e membro da coordenação do COP. Segundo a prefeitura, 731 demandas foram descartadas após a reavaliação das comunidades.
Alegando falta de recursos, a prefeitura também vetou novas demandas em 2018. Em 2019, que marcou as três décadas de criação do OP, as votações foram retomadas. Mas, quando a prefeitura apresentou o plano de investimentos para 2020 – documento que reúne as iniciativas aprovadas e o respectivo orçamento –, veio uma nova frustração. “Uma mixaria”, resume Machado, referindo-se aos R$ 149 mil destinados à sua região. No total, a prefeitura prometeu R$ 17,8 milhões para o OP. Segundo a atual administração, em 2016, as demandas somavam R$ 80 milhões, mas menos de 0,4% disso (R$ 300 mil) foi executado.
Entre 2013 e 2017, o valor orçado foi de R$ 494,3 milhões, e menos de 1% foi efetivamente realizado. Segundo a Secretaria Municipal de Relações Institucionais (confira a íntegra da resposta aqui), o governo decidiu enfrentar o problema dos orçamentos fictícios “e tratar a população com o respeito que ela merece”. Ainda segundo a pasta, em 2018 foram aplicados R$ 33,4 milhões para atender demandas antigas do OP, valor que caiu para R$ 21,8 milhões em 2019. A Secretaria desconversou ao ser questionada se alguma parte do orçamento previsto para 2020 já foi aplicada, e respondeu apenas que “a pandemia afetou a execução de muitas obras e serviços”.
Sobre o OP deste ano, a prefeitura diz que não há como saber se será possível realizar as assembleias na data prevista, em novembro. O Executivo afirma que avalia diariamente a evolução da Covid-19 e que a possibilidade de assembleias virtuais dependeria de uma avaliação junto ao Conselho do OP.
“Há muitas formas de se matar o processo. Basta não lhe dar importância”, afirma Dias, autor do Atlas Mundial dos Orçamentos Participativos, que rastreou 11 mil iniciativas de OP ao redor do mundo. Apesar de Porto Alegre ter sido a pioneira, há tempos não é inspiração para outros lugares: “Porto Alegre deixou de ser modelo pela crise que tem vivido ao longo dos últimos anos”, afirma o sociólogo.
Do começo utópico à prática
Para Luciano Joel Fedozzi, que coordenou a equipe responsável por promover a primeira edição do OP, em 1989, é uma contradição o que acontece na Capital e no Brasil. “O país que criou o OP está vendo seu desaparecimento, enquanto há um aumento exponencial no mundo”, desabafa. Hoje professor do Programa de Pós Graduação em Sociologia da UFRGS e pesquisador do Observatório das Metrópoles, Fedozzi olha para aquele período – durante a administração de Olívio Dutra (PT) – de forma mais acadêmica, e menos apaixonada. “O ideário da época era meio utópico e a prática foi nos ensinando como fazer”, conta.
Vários ajustes foram feitos até se chegar ao modelo de hoje. Ao longo do ano, são realizadas as reuniões preparatórias e depois as assembleias, onde as comunidades definem as prioridades para cada uma das 17 regiões e seis áreas temáticas (educação esporte e lazer, mobilidade urbana, habitação, desenvolvimento econômico, cultura e saúde). Os projetos escolhidos passam por uma análise técnica da prefeitura, e só depois são liberados os recursos. Ao menos, é assim que deveria ser.
Segundo Fedozzi, os problemas foram se acumulando ao longo dos anos, entre eles a diminuição das verbas, a redução da transparência sobre o processo e a forte instrumentalização partidária. O resultado é a inoperância do que já foi uma ferramenta poderosa de redução das desigualdades regionais, diz o pesquisador. Ele lembra do caso emblemático de 1992, na Vila Planetário, quando, em vez de desalojar as famílias que viviam em terrenos públicos às margens do Arroio Dilúvio, no bairro Santana, a prefeitura construiu moradias populares. A ação teve participação decisiva do OP, que apoiou a população do local.
Para Fedozzi, aquele OP não existe mais, e só não foi aniquilado de vez pelo seu poder simbólico. “Não se pode terminar com o OP porque isso teria um custo político local e mundial, pois Porto Alegre é conhecida mundialmente como a capital do OP. Mas ele foi sendo escanteado”.
Nelson Dias concorda que o modelo de OP dos anos 1990 ficou no passado, e acredita que a única maneira de salvá-lo é reinventando-o a partir de duas premissas. A primeira é que o COP deixe de ter poder decisório, para assumir um papel de monitoramento. “O COP se transformou sobretudo em um espaço de conflito e disputa de poder. Uma das grandes obsessões das administrações de Porto Alegre ao longo dos anos tem sido colocar suas lideranças no COP para ter controle sobre as prioridades.”, afirma. A segunda é a definição de um orçamento prévio para cada região, para não criar nas comunidades expectativas que não serão cumpridas. Atualmente, primeiro são feitas as demandas, e só depois o governo diz o que vai ou não poder pagar.
O ex-governador Olívio Dutra (PT), principal responsável pela criação do OP, foi além em entrevista que deu em 2015 à jornalista Naira Hofmeister. Disse que o OP falhou ao se restringir à discussão das despesas do orçamento público, sem pensar nas receitas. “A cidadania tem que saber por que tem renúncia fiscal, favores tributários para determinados setores, enorme possibilidade de sonegação. […] Não se pode discutir a receita com os setores empresariais, os muito ricos, e a despesa com os pobres. Isso está mal”, disse o ex-governador na entrevista publicada pela Revista Caros Amigos.
Seis conselhos municipais estão desativados
Enquanto o OP agoniza em Porto Alegre, em Portugal os cidadãos já planejam como serão as reuniões comunitárias no pós-Covid: os encontros terão de sair das escolas e ginásios e migrar para áreas externas, com distanciamento entre as cadeiras. “Temos que adequar os processos de participação às novas normas de segurança sanitárias, para que elas nunca sejam utilizadas como desculpa para que estes processos não sejam retomados”, afirma Dias.
Não é só em Portugal. Em outros países europeus, os cidadãos também assumem protagonismo no pós-pandemia. Na França, ganha força o movimento #NousLesPremiers (“nós primeiro”, do francês), que propõe o envolvimento direto dos habitantes na reconstrução da sociedade e da economia. Já a Espanha debate a criação de um novo Pacto de Moncloa – em referência ao acordo assinado em 1977, após a ditadura de Franco –, prevendo a criação de painéis para as pessoas opinarem sobre a reconstrução do país. Na Itália, a população tem se insurgido contra as comissões nomeadas unilateralmente pelo governo para comandar a retomada da vida nas cidades no pós-pandemia, majoritariamente masculinas e que excluem especialistas em participação cidadã.
Segundo Daniely Votto, consultora com experiência internacional na área de OP, esses gestores se deram conta de que não podem prescindir da população. “Porque sozinhos não teriam resolvido nada durante a pandemia”, explica.
Em Porto Alegre e outras partes do Brasil, a pandemia também despertou nossa capacidade de mobilização. A união de esforços deu origem, por exemplo, à Moeda do Bem, uma plataforma onde é possível fazer doações para as famílias da periferia da Capital. Até mesmo a proposta de auxílio emergencial de R$ 600 para a população de baixa renda – uma das principais ações do governo federal durante a crise do coronavírus – partiu de um grande movimento da sociedade civil.
Mas enquanto a população mostra sua força, os canais institucionais de participação estão se fechando na capital gaúcha – e não estamos falando apenas do OP. Os Conselhos Municipais, definidos por lei como “órgãos de participação direta da comunidade na Administração Pública”, também vivem dias difíceis. São 28 entidades desse tipo em Porto Alegre e que tratam dos mais variados temas: desde saúde, educação e meio ambiente até direitos do povo negro, das pessoas com deficiência e da mulher. Mas seis deles não estão em funcionamento, segundo Mirtha da Rosa Zenker, coordenadora do Fórum Municipal dos Conselhos da Cidade (FMCC). São eles os conselhos de Desporto, Turismo, Juventude, Segurança Alimentar, Agricultura e Abastecimento e Saneamento Básico, área essencial à saúde pública.
Alguns conselhos têm papel apenas de fiscalizar e aconselhar o Executivo – como o Conselho Municipal do Idoso – enquanto outros têm poder para vetar ou aprovar projetos importantes para a cidade. O Conselho Municipal de Educação, por exemplo, determinou em 2018 que todas as escolas municipais dedicassem pelo menos 40 horas por ano ao tema da educação para direitos humanos. “Mesmo que seja preciso candidatar-se a uma vaga para ser conselheiro, nada impede que o cidadão comum participe das reuniões. É uma forma eficiente de participar”, afirma Votto.
Mas, para funcionar, um conselho precisa de um movimento conjunto de todas as instâncias que o compõem – administração municipal, organizações da sociedade civil, entidades de moradores e de classe. “Até hoje tem alguns conselhos com os quais a gente não consegue contato”, relata Zenker. Ela afirma que o FMCC vem tentando reativar aqueles que estão parados, mas que isso só é possível em áreas onde há forte mobilização social. “Tem algumas áreas com uma base civil mais organizada, como é o caso do Conselho Municipal do Livro e Leitura, que a sociedade civil se mobilizou e fez pressão para que entrasse em funcionamento. Mas na área do saneamento, por exemplo, isso não acontece”, conta.
Não são apenas setores da sociedade civil que têm deixado de se engajar, mas também do Executivo. Segundo Zenker, muitas vezes os representantes da administração municipal não dão o suporte necessário para os trâmites burocráticos da eleição de novos conselheiros, e nem mesmo participam das reuniões.
Logo que assumiu o governo, em 2017, o prefeito Marchezan apresentou um projeto de lei que alterava a Lei Orgânica do Município no trecho que diz respeito aos conselhos municipais. Retirava-se a necessidade de que as normas de cada conselho fossem fixadas em lei complementar. A mudança remetia os conselhos à lei ordinária, o que, na visão dos conselheiros, era uma estratégia para facilitar a intervenção do Executivo – seria necessária maioria simples na Câmara de Vereadores para aprovar qualquer alteração.
O projeto não foi adiante, mas, no final do ano passado, a prefeitura voltou à carga. Desta vez, com sucesso. Os vereadores aprovaram um projeto de lei que permitiu à administração municipal o saque de cerca de R$ 65 milhões de 11 fundos municipais, espécies de contas bancárias geridas pelos conselhos. Esse dinheiro, que antes só podia ser investido em áreas específicas, como cultura ou meio ambiente, foi transferido para um novo fundo, controlado apenas pelo Executivo.
O enfraquecimento desses espaços de participação cidadã passa também por dificuldades logísticas. Um exemplo é a Casa dos Conselhos, que apesar do nome tem seu andar principal cedido a outra entidade. O local, inaugurado em 2014 na Avenida João Pessoa, perto do Parque da Redenção, atendeu a uma reivindicação antiga dos conselheiros, que não tinham onde se reunir. Mas quem ocupa o primeiro andar – onde ficam os telefones, impressoras e computadores – é a equipe do Centro de Relações Institucionais e Participativas do Centro, uma espécie de subprefeitura, enquanto os conselheiros só podem usar o auditório, no segundo andar. “O local não tem climatização adequada e nos dias quentes é quase impossível realizar reuniões ali. Também não tem equipamentos adequados de áudio e vídeo”, conta Zenker. No ano passado, o FMCC enviou um questionário aos 28 conselhos, que foi respondido por 19 deles. Destes, oito disseram não ter um espaço e equipamentos adequados para suas atividades.
Apesar das dificuldades, Zenker afirma que alguns conselhos seguem ativos durante a pandemia. “Muitos estão trabalhando muito mais agora, como a assistência social e a educação. Estão em pleno funcionamento, realizando plenárias online e com uma ouvidoria para acolher as demandas da população e direcioná-las ao Ministério Público ou ao governo”, explica.
Os maus presságios do Plano Diretor
Ninguém sabe, por enquanto, como será o novo normal da boemia, das lagarteadas no parque, das pedaladas na orla, dos dates e dos shows. Mas Porto Alegre tem, na revisão do Plano Diretor, uma excelente oportunidade para repensar tudo isso. O processo acontece a cada 10 anos, e está em elaboração justamente agora. O plano é o documento que regula o uso da cidade – como a altura dos prédios e a distribuição das áreas verdes – e uma ferramenta essencial para pensarmos que Porto Alegre queremos daqui para frente.
Como o próprio nome indica, participar desse processo é uma das principais funções do Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano Ambiental (CMDUA). Criado em 1939, sob a ditadura do Estado Novo, ele foi o primeiro conselho municipal da história de Porto Alegre – e democratizou-se em 1999, com inclusão de representantes das regiões do OP. Mas justamente agora, quando essa participação é mais importante, entidades civis denunciam ao Ministério Público Estadual (MPE) atitudes arbitrárias do Executivo. Segundo essas associações, as equipes da prefeitura seguiram dando andamento aos trabalhos de revisão do Plano Diretor, internamente, mesmo depois da determinação do MPE para que o processo fosse paralisado durante a pandemia.
Em nota, a Secretaria Municipal do Meio Ambiente e da Sustentabilidade (SMAMS), órgão da prefeitura que está à frente da revisão do Plano Diretor, afirmou que as ações que são de atribuição exclusiva do Executivo seguirão ocorrendo, e que se tratam de atividades “preparatórias e internas”.
O descontentamento do CMDUA vinha desde dezembro, quando o órgão não foi consultado sobre a assinatura de um acordo de cooperação técnica internacional entre o Executivo, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e a Agência Brasileira de Cooperação (ABC), para apoio à revisão do Plano Diretor. “Só ficamos sabendo desse contrato quando recebemos o convite nos chamando para a cerimônia de assinatura. Sendo que, por lei, é função do Conselho coordenar revisões e alterações em planos diretores”, lembra Rafael Passos, presidente do Instituto dos Arquitetos (IAB-RS) e conselheiro do CMDUA.
Segundo Passos, ele e outros conselheiros são acusados por seus pares de serem contra o desenvolvimento e a geração de empregos, ao imporem resistência à construção de grandes obras na Capital. Entre elas estão os espigões projetados para a orla do Guaíba, área de importância vital na retomada da vida pós-Covid. “Mas a gente sabe que estes grandes projetos não têm tanta capacidade de gerar empregos quanto um somatório de pequenos projetos. Por outro lado, esses empreendimentos têm alto impacto e demandam uma infraestrutura que a cidade às vezes não tem”.
Passos dá como exemplo a erupção de novos condomínios na Zona Sul, sem que a rede de água tenha sido preparada. Hoje, os moradores da Lomba do Pinheiro sofrem frequentemente com desabastecimento. “Os grandes empreendimentos que vinham sendo aprovados pelo Conselho contribuíram para esse problema”, afirma Passos, que acredita que o mesmo tipo de situação poderá se repetir em breve no Quarto Distrito.
Enquanto as ferramentas tradicionais de democracia participativa amargam um de seus piores momentos na história de Porto Alegre, a população busca outras formas de organização. Uma delas são os coletivos, um conjunto de pessoas e entidades, sem hierarquia ou identidade jurídica, que se reúnem para pensar a cidade, como o grupo A Cidade que Queremos, que trata de temas ligados ao direito à cidade, ou o POA Inquieta, que busca desenvolver a economia criativa na Capital.
Mas, apesar de participar de coletivos e achar que eles vieram para ficar, a consultora Daniely Votto faz uma ressalva sobre seu alcance democrático. “Normalmente as pessoas que participam desses grupos têm alto poder aquisitivo, são brancas e de nível universitário”, explica. Para a consultora, as pessoas não podem esquecer das vias tradicionais de participação popular, através dos conselhos e da cobrança aos vereadores. “Não podemos deixar que algumas entidades e lideranças se apoderem dos sistemas de participação. Nada vai dar resultado se a gente não investir tempo nisso”.
O raciocínio é o mesmo de Zenker, que sente uma certa apatia em grande parte dos porto-alegrenses. “Estamos deixando estes espaços legítimos, que deveriam ser democráticos, serem assumidos pelo governo. Estamos pecando por omissão”.
Edição: Matinal News