Rio Grande do Sul

DEBATE

A luta de ontem, hoje e amanhã para superar o racismo na imprensa brasileira

Jornalistas negras de referência falam dos desafios para acabar com as diversas formas de matar o povo negro brasileiro

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Participaram Vera Daisy Barcellos e Jeanice Ramos, do Sindjors, e Cecília Bizerra Sousa, da Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial do DF - Reprodução

A luta contra o racismo que permeia as estruturas da sociedade brasileira também tem na imprensa um campo de batalha. Apesar de hoje existirem espaços conquistados com muita resistência, como blogs e portais que são protagonizados por negros e negras, nas redações dos jornais, rádios e televisões são uma minoria. E nas reportagens impressas, digitais e audiovisuais aparecem muito mais nas páginas policiais do que na posição de entrevistados nas diferentes editorias.

Presidenta do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors), Vera Daisy Barcellos, hoje com 71 anos de idade e 50 de profissão e militância, conta que por 16 anos trabalhou na cobertura esportiva na RBS, quando ficou conhecida como a primeira jornalista negra na editoria. “Era a única negra na redação de um dos principais veículos do estado, saí dessa redação em 1992. Percorremos várias redações ao longo da minha militância como sindicalista, continuo chegando nas redações e não me enxergando. Sempre somos um ou então nenhum ou nenhuma nas redações. Isso revela o quanto se tem pela frente de trabalho, a luta é intensa porque enquanto nós formos uma ou um dentro de uma redação, a nossa tarefa e militância ainda não cumpriu totalmente seu papel.”

Vera Daisy foi uma das convidadas do debate sobre imprensa e racismo promovido pelo Brasil de Fato RS e pela Rede Soberania, na manhã desta sexta-feira (19), que contou ainda com a presença de Jeanice Ramos, jornalista e coordenadora do Núcleo de Jornalistas Afro Brasileiros do Sindjors, e de Cecília Bizerra Sousa, jornalista e integrante da Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial do Distrito Federal (Cojira-DF). Mediadas pela editora do BdFRS Katia Marko, por mais de uma hora e meia essas três mulheres negras trouxeram o testemunho dos anos de luta que permitiram alguns avanços e refletiram sobre o que ainda precisa ser conquistado.

“Nas páginas dos jornais nós também não nos achamos, não somos fonte de informação. Só tem um lugar onde nossa imagem vai aparecer, quando é dado grandes espaços nas páginas policiais”, analisa Vera Daisy. Ela destaca que, apesar do racismo ser intenso e estruturante na sociedade brasileira, existem muitas pessoas negras capazes de serem fontes, como advogados, economistas e médicos.

Revista Tição, um marco do jornalismo negro


Três edições da Revista Tição / Foto: Jones Lopes da Silva/Divulgação

Jeanice recordou a experiência da Revista Tição, que circulou no final dos anos 1970, experiência em que ela e um grupo de mais de 50 profissionais de jornalismo e outras áreas, tendo Vera Daisy como editora, abordava a questão do racismo. “Foi um marco, a Vera e eu participamos, na época éramos jovens jornalistas que trabalhavam na área, mas não tinha um veículo. A gente tinha a intenção de criar um veículo e o Tição teve repercussão nacional e também fora do Brasil, o que mostrou o interesse que tem a causa negra.”

Sobre essa experiência, Vera Daisy concorda que foi um marco, mas ressalta que não foi o primeiro. E constata que “é de uma atualidade e ao mesmo tempo reveladora, que de 1978 para cá o racismo ainda é determinante para onde fica e onde está a população negra brasileira”. Ela recorda também que era 1978, ainda na ditadura, e ela era quem levava os textos para apresentação à censura, no DOPs, o que era aterrorizante. “Toda vez que ia apresentar, eu saia com uma preocupação que nunca compartilhei, eu nunca tinha certeza se voltaria. Convivi com isso durante muito tempo”, releva.

Emocionada, hoje ela consegue olhar para sua trajetória e reconhecer sua importância, numa sociedade racista que leva o povo negro e não se valorizar. “Minha vida é marcada por fatores de significativa importância e só agora começo a perceber algo que carrego, enquanto negros e negras, a nossa desvalorização, isso nos foi colocado. Não falo de jovens mulheres, como a Cecília, mas nós que estávamos atrás, a gente carregava uma história que tudo que fizemos até agora não era importante. Tem um significado muito importante que eu comecei a perceber na medida que estava amadurecendo”, afirma, salientando a importância de hoje estar na presidência do sindicato, justamente “no momento mais cruel em que nosso país está passando, e olha que já vi momentos cruéis, a ditadura foi terrível, mas essa pandemia está sendo terrível para mim”.

Uma luta do passado, presente e futuro

Cecília avalia que graças a trajetória de mulheres como Vera e Jeanice é que hoje se colheram alguns avanços na questão racial e que a realidade do racismo não será superada enquanto o problema não for identificado e enfrentado de frente pela sociedade brasileira. “Essa ligação de passado, presente e futuro está o tempo todo entre nós. Graças a quem esteve fazendo esse caminho no passado, estamos colhendo os frutos hoje, a luta não foi em vão. Existem avanços que a gente está colhendo graças à luta e coragem de vocês, dessa jovem negra que ia no passado entregar os textos mesmo com toda apreensão. Essa coragem reflete em nós que estamos pensando comunicação, nessas jovens iniciativas como o Portal Alma Preta, a Revista Alternativa, a Ponte Jornalismo, vários veículos de mídia negra que realizam um trabalho importante graças ao trabalho de vocês no passado.”

Ao falar dos racismos explícitos na imprensa, Cecília trouxe o recente caso do programa Globo News em Pauta, em que a emissora foi obrigada a fazer uma ação de reparação após chamar sete jornalistas brancos para falar sobre os protestos pela morte de George Floyd nos Estados Unidos. Após duras críticas na internet, no dia seguinte a emissora trouxe seis jornalistas e um âncora negros para falar de suas experiências.

“A gente pensa nessa história que não é concessão, é conquista de anos”, afirma. “Não é que a gente não queira que jornalistas brancos não falem sobre racismo, até porque esse é um problema criado pelos brancos, então tem que ser solucionado junto, mas não sem nós, que foi o que aconteceu no Em Pauta.” Ela ressalta ainda o racismo na mídia com a exposição dos corpos negros, exemplificando com o caso da morte do menino Miguel Otávio. “Existe uma disparidade na projeção da imagem da patroa, que foi muito protegida, a própria mãe dele disse isso, o rosto negro está nos jornais exposto a essa desumanização.”

Retornar para as comunidades

Vera Daisy assinala que o povo negro tem sua força em sua ancestralidade, que resistiu a 300 anos de tentativas de silenciamento e eugenia no Brasil. “A gente sempre tem que trazer a história junto porque ela é marcante, a forma com que fomos extirpados do continente africano.” Para ela, e tarefa dos homens e mulheres jovens é fazer a grande transformação que o país precisa, e para isso é necessário que se retorne para as comunidades.

“Não podemos ficar nos centros das cidades, temos que estar nas comunidades dialogando. Não temos mais tempo, temos que retornar às comunidades, lá é onde estão nossas caras pretas, lá que polícia está matando, acertando com balas a população negra das favelas e periferias. Não adianta ficar em nossos pequenos núcleos, temos que alargar nossa militância. Há uma grande tentativa de extermínio da população negra e as notícias que estão chegando mostram isso. Um adolescente de 14 anos levar um tiro nas costas e ter sua casa com 70 furos de bala, isso é um massacre. Vemos em Porto Alegre, no Rio de Janeiro, na Bahia, em todo o país essa tentativa de nos assassinar mais uma vez. Mas não vão conseguir, vamos lá embaixo e voltamos fortalecidos”, afirma Vera Daisy.

Na sua avaliação, é necessário recomeçar um trabalho interno e não baixar a guarda nunca. “Há três ou quatro anos atrás baixamos a guarda e deixamos que outro segmento tomasse conta das nossas comunidades. Temos que retomar o lugar que era nosso, mas de uma outra forma para que a gente mude o cenário enquanto população negra nesse país”.

Cecília destaca ainda que existem muitas formas de se matar o povo negro e que a invisibilização é uma delas. Ou ainda o último ato de Abraham Weintraub no governo Bolsonaro, que revogou a portaria de cotas para negros e indígenas na pós-graduação. “O que o ex-ministro da deseducação fez foi uma forma de nos matar simbolicamente, a queda dele estava dada e ele quis causar em cima dos corpos negros e indígenas. Não tem outro nome, é massacre e genocídio.”

O debate encerrou com as convidadas destacando a importância de se discutir com profundidade também a questão da mulher negra no Brasil, o que ficou para uma próxima oportunidade de debate. A última fala ficou a cargo de Cecília, que sentiu o chamamento à responsabilidade. “É tarefa da juventude seguir e não deixar a peteca cair, a gente está onde está porque vocês não deixaram a peteca cair e temos a tarefa enquanto juventude de seguir para quem sabe daqui a 50 anos a gente esteja num cenário de mais igualdade, o horizonte está ali e estamos perseguindo ele”, conclui.

Assista ao debate completo:

* Colaboração de Fabiana Reinholz

Edição: Katia Marko