Rio Grande do Sul

OPINIÃO

Artigo | O Desmonte da Previdência

Assim como no golpe de 1964, o conservadorismo se une para atacar direitos conquistados pela classe trabalhadora

Brasil de Fato | Porto Alegre |
"Nada de novo. A história se repete da maneira mais bizarra. A mentalidade escravista permanece." - Charge: Victor T

Antes do golpe de estado civil-militar de 1964, as contribuições sociais e trabalhistas chegavam a 85% sobre os salários. Embora os encargos sociais fossem partilhados entre patrões e empregados, toda a parte do empregador era incluída nos custos dos produtos e serviços para repassá-los aos seus consumidores, mas os empresários não gostavam de entregá-la ao sistema previdenciário, por julgá-la muito elevada, e principalmente porque desprezavam a ideia do amparo ao trabalhador, e se consideravam seus exclusivos mantenedores. Os sistemas públicos eram tratados como sendo benemerentes e precários, doados aos despossuídos.

O amparo social aos trabalhadores havia começado nos anos 1930, com a criação os IAPs, os institutos de aposentadorias e pensões, muito empíricos e segmentados por categorias profissionais. Havia o IAPI para os operários da indústria; o IAPC para os comerciários; o IAPB para os bancários, e assim por diante. Em assistência não se falava. Atendimento médico público era relegado a uns poucos hospitais públicos e às santas casas, estas supridas por eventuais doações e pelo desprendimento de profissionais da saúde que estivessem dispostos a ceder gratuitamente parte e seu tempo.

Era previsível que, com o tempo e o aprimoramento técnico dos planos de previdência, bem como o crescimento das necessidades e o clamor das populações, os modelos se uniriam e melhorariam, mesmo encontrando a resistência do empresariado.

O golpe de estado civil-militar de 1964 foi feito eminentemente para evitar os avanços sociais que se esboçavam com as reformas de base propostas pelo governo legítimo da época. Os golpistas tentavam se tornar simpáticos à população a pretexto de combater a pretensa corrupção do governo e, em especial, incutindo o temor da possibilidade iminente, mas totalmente infundada, da implantação de um regime comunista no país, aproveitando o clima de guerra fria existente entre União Soviética e Estados Unidos, e com apoio e inspiração deste.

O regime autoritário a serviço das elites econômicas tratou de anular o sistema. Em 1966 houve mudança radical no projeto trabalhista e social. Foram unificados os IAPs, criando-se o Instituto Nacional de Previdência Social – INPS, mas também o Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social – INAMPS, destinados ao atendimento da parcela contribuinte da população, ou seja, a classe trabalhadora e sua família. A reforma trabalhista acabou com alguns conceitos anteriores, como a estabilidade no emprego após dez anos de trabalho. Em substituição, estabeleceu um ilusório Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), impingido como se fosse uma solução para o futuro o trabalhador.

Tais modificações foram regadas com muita publicidade, como se fossem avanços, mas omitiam diversos recuos. Os encargos previdenciários, sociais e trabalhistas despencaram de 85% para apenas 27% sobre os salários. Mesmo assim, produziam uma descomunal receita que deveria ser destinada para formar reservas cujas aplicações seriam garantidoras adicionais da segurança e permanência do sistema previdenciário (mesmo que isso não seja da essência do modelo, já que ele é baseado na repartição de capitais e na solidariedade, e não na capitalização). Ao contrário, porém, e além da perpétua inadimplência nos recolhimentos, ou a simples sonegação, esses recursos eram sempre ostensivamente desviados para obras estranhas aos interesses sociais, e sem gerar dividendos ao próprio plano. Se tivessem sido adequadamente administrados, esses fundos poderiam ter sido benéficos para toda a sociedade, suficientes e superavitários.

Com o fim do período ditatorial, o advento de uma nova Constituição contemplou a retomada dos direitos retirados, e agregando novos, adequados à época, elevando os custos sociais e trabalhistas a no mínimo 105% sobre os salários, podendo elevar-se bastante, dependendo da atividade. E não só isso. A Constituição Federal introduziu um conceito muito mais amplo: o da Seguridade Social, abrangendo Previdência, Assistência e Saúde, com suas receitas e abrangências bem definidas. Da mesma forma, as reivindicações populares forçavam os governos conservadores da época a conceder aumentos reais do salário, mesmo que a conta-gotas. Esse valor, que já havia sido equivalente a vinte dólares norte-americanos, quando atingiu oitenta dólares foi saudado com bombásticas manchetes, como se fosse uma benesse.

A aversão ao crescimento dos direitos sociais se acentuou com a ascensão ao poder de partidos de origem popular. E mais: esses governos, ao invés de fracassarem, obtiveram o maior sucesso, tanto político como socioeconômico, reduzindo as desigualdades sociais, com positiva repercussão internacional, elevando o país à sexta posição no ranking da economia mundial, contrariando toda a expectativa oposicionista que os combatia. O salário mínimo, então, passou a ter aumentos reais, chegando a mais de trezentos dólares (sem qualquer repercussão midiática). Isso multiplicou, também, os valores nominais das contribuições sociais.

É claro que as classes patronais não engoliram esses avanços. Mesmo que os encargos em momento algum recaiam sobre eles (são sempre repassados aos consumidores) e, em boa medida, também os beneficiem, tornaram-se intoleráveis. Grandes empresas (mídias, bancos e indústrias) apropriam-se indevidamente desses valores, e não os recolhem aos órgãos gestores dos sistemas. Atualmente, a dívida anual dessas empresas é pelo menos três vezes superior ao alegado déficit da previdência no último exercício, podendo chegar a ser seis vezes maior.

Surgiram, mais uma vez, as denúncias de corrupção para desestabilizar o governo, só que agora alcançaram também muitos aliados das oposições. A intenção era retomar o poder a qualquer preço, mas os partidos tradicionais haviam sido atingidos e não conseguiam mais atrair o eleitorado. Os candidatos preferenciais se esvaziaram de votos, levando os conservadores a se aliar a qualquer outra fonte emergente simpática e submissa aos seus intentos.

Associado a isso, criaram uma crise econômica artificial, para dar voz a uma campanha de renovação, ainda que sem conteúdo ou perspectiva. Na verdade, um retrocesso. A confusão mental produzida nos eleitores os levou a alienação total, induzidos a optar por um aventureiro com um discurso de ódio e radicalismo de extrema direita, sem qualquer noção de cidadania ou qualquer compromisso com a soberania nacional, voltado para o imediatismo do empresariado patrocinador (maximização dos lucros e minimização dos custos).

Numa campanha eleitoral calcada na mentira, no engodo, na calúnia, conservadores conseguem levar seu candidato à vitória, ainda que nos parlamentos as bancadas progressistas mantivessem sua forte expressão. E a série de promessas caóticas começou a ser cumprida. Desregulamentação das relações de trabalho para, enganosamente, gerar mais empregos. Retrocesso na economia e alto custo social. Retirada de direitos conquistados e reforma imediata da Previdência, que estaria falida e precisava ser modificada. Fim dos benefícios. Nada de novo. A história se repete da maneira mais bizarra. A mentalidade escravista permanece.

 

* Paulo Sá é servidor público aposentado

 

Edição: Marcelo Ferreira