“Enfrentar o fascismo sem enfrentar a pauta da luta antirracista, é uma luta fragilizada. Porque o fascismo no Brasil se sustenta a partir da brutalidade, da máquina do racismo. Tanto o antirracismo quanto o antifascismo lutam contra o patriarcado capitalista supremacista branco, que é uma característica central que temos no Brasil".
A afirmação foi feita pelo professor de Jornalismo da Unesp (Universidade Estadual de São Paulo) e militante do movimento negro Juarez Xavier em live da Rede Soberania e Brasil de Fato RS, realizada na tarde dessa quinta-feira (11). Por mais de uma hora, o professor, juntamente com Patrícia Gonçalves, bióloga e educadora, integrante da Frente Quilombola do RS e Jamaika, capoeirista e liderança comunitária do Quilombo dos Machado e também da Frente Quilombola, debateram sobre a Luta Antifascista e Antirracista e a luta de classes.
Angela Davis, professora e filósofa socialista estadunidense escreveu: "Numa sociedade racista, não basta não ser racista é preciso ser antirracista". Na avaliação de Xavier, no contexto que vivemos é preciso e urgente ir além. “Precisamos que as pessoas combatam o racismo em todas as áreas. A população branca, brasileira, democrática, tem responsabilidade na reprodução do racismo, portanto tem que fazer o enfrentamento disso”, frisou.
Em sua apresentação inicial, o professor fez um recorte histórico do racismo no país e sua relação com o fascismo. De acordo com ele, o Estado brasileiro que se desenha, a partir de 1808, é patriarcal, que não incorpora ações políticas das mulheres, em especial às mulheres negras; pró-capitalista, onde se cria a economia rentista vigente até hoje e supremacista branco. Esse DNA brasileiro, segundo ele, posteriormente será potencializado pela política fascista. Do processo de tentativa de aniquilação verbalizado por João Batista de Lacerda, no início do século XX , em um Congresso Internacional das Raças, em Londres, onde afirmou que o objetivo era em 100 anos acabar com a presença cultural e negra na sociedade brasileira. Hoje o país tem 54% da população brasileira declarada preta e parda.
“Nesse longo processo o Estado criou três tipos diferentes de manifestação de violência contra a população negra: preconceito racial, a ideia de menor valia da população negra; segregação, separação do negro ao acesso ao capital econômico, cultural, social e político; e racismo que é o processo de destruição dos corpos negros”, ressaltou o professor ao afirmar que a destruição pode ser confirmada através do Atlas da Violência de 2019, elaborado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA ), que aponta que em 2017, 75,5% das vítimas de homicídios foram indivíduos negros.
Xavier também apontou as três dimensões do racismo: Estrutural, pois estrutura todas as relações políticas, econômicas, sociais, afetivas, as relações de subjetividades. Fundante, o Estado brasileiro foi fundado sob a lógica do racismo e todas as ações, iniciativas do Estado brasileiro são baseadas no racismo mesmo com governos democráticos, pois a violência e a brutalidade contra a população negra não cessa. E é replicável nas relações sociais em todas suas esferas, mesmo nos movimentos sociais.
Conforme ele, o Estado brasileiro promove e industrializa o racismo. “Não é um problema de governo e sim de Estado. O Estado tem mecanismos de coesão e persuasão que produz o racismo”. Ainda, segundo o professor, o importante a ser avaliado não é a anatomia do fascismo, mas seu objetivo central, avançar no desmonte de políticas públicas para favorecer o grande capital. “Ai entra a questão racial, que é um componente fundamental no Brasil, qualquer ação que você promova de violência contra as políticas de inclusão afeta a população negra. Não é possível pensar qualquer ação politica que implique mudanças substantivas do Estado e do governo sem implicar a população negra”, apontou.
Colonização como estrutura
Para Patrícia a questão de classe vai muito além do que uma questão econômica. Segundo ela, os projetos políticos apresentados até o momento ficaram mais pautados na questão de fazer integrações de pessoas e não uma transformação que a sociedade precisa. “Integram representações negras em alguns espaços de poder, mas a força e a estrutura que o racismo tem não possibilita, por vários motivos, que o projeto político seja instalado. Essas instituições são herdadas com uma questão muito forte racista”, ilustrou, destacando que para mudar essa situação é preciso um grande esforço de pessoas antirracistas para além de representações de pessoas negras, mas também de pessoas brancas, para acabar com essas instituições nesse formato que elas se organizam atualmente.
Em sua avaliação toda a nossa vida, as limitações, dificuldades, estão estruturadas pela questão da colonização, pela exploração das pessoas negras, pelos roubos de terras das pessoas indígenas “A colonização europeia como aconteceu no território brasileiro dá um salto na questão de acúmulo para certas pessoas e de destruição de vida para as outras. São 520 anos desse processo, projeto político de morte para pessoas negras e indígenas”, expôs. Patrícia também destacou a ausência de políticas públicas eficientes e da necessidade da esquerda ter um olhar mais atento.
Ela também chamou atenção para o estado de vigia sobre as comunidades negras e a invisibilidade das pautas negras na mídia. “Nossas comunidades são vigiadas, um braço armado sempre contra as nossas expressões de luta. A mídia nunca foi para nós. Vemos algumas representações aparecendo, mas nunca é nossa pauta na televisão, nunca é a pauta do povo negro. Mostra alguma coisa que possa ter valor,vendável, quando pode virar produto”, exemplificou.
“Não é isso que queremos, queremos outra organização nesse Estado, precisamos da valorização da multiplicidade desse Estado para dai sim fazer projetos políticos que sejam representativos da vida das pessoas. A questão da representatividade é muito além da cor de pele, a pele nos marca e nos mata, mas para além disso, é conseguir vincular, através dos corpos, um projeto político coletivo. É algo muito desafiante, complicado, mas essencial, sem isso não conseguimos superar o que está acontecendo, sem isso vamos continuar com o processo genocida, carcerário”, afirmou Patrícia.
Luiz Rogério Machado, mais conhecido como Jamaika, durante sua exposição relatou o processo, luta e resistência dos quilombos urbanos de Porto Alegre. Também denunciou o descaso dos órgãos e poderes públicos, especialmente nesses tempos de pandemia.
“Os ranchos que estão chegando dentro das comunidades, e a manutenção, alimentação, máscara, álcool gel, dentro das comunidades, é a gente, enquanto movimento social, enquanto quilombola e povo de terreiro, que estamos fazendo. Os órgãos que têm que ser competentes para fazer esse tipo de trabalho, como a Fundação Palmares, Incra, Ministério Público Federal, não estão cumprindo esse papel. Isso também é uma forma de racismo”, disse. De acordo com Jamaika a prefeitura não tem uma visualização de interesse com a comunidade quilombola. “A precariedade é muito forte, na semana retrasada ficamos cinco dias sem luz. Um descaso, o racismo é muito forte”.
Para ele o que mudou de 520 anos atrás para o dia a dia de hoje, é que o racismo que se via de forma camuflada, com o atual governo ele se mostra escancarado. Em sua fala pontuou as mortes do mestre Moa, Marielle, dos negros americanos, mas sobretudo, sublinhou, as mortes diárias dentro das periferias do país. “Genocídio total do nosso povo, nossas lideranças dentro da periferia, muitas mortes que a mídia não fala, não relata.”
Fora as mortes, Jamaika chamou atenção para outros ataques que estão em curso, como a antiga MP 910, que agora virou o Projeto de Lei (PL) 2.633/20, de autoria do deputado Zé Silva (Solidariedade-MG), e que estabelece critérios para a regularização fundiária de imóveis da União. “É a ginga da vida, todo dia temos que estar sempre espertos. Falta o povo estar dentro da comunidade, fortalecer o laço da comunidade, para depois ir para rua berrar, não só fora Bolsonaro, mas fora tudo que quer nos esmagar, não à privatização do Mercado Público, os povos de terreiro estão sendo atacados e não estão sendo escutados”, analisou.
A nova Lei de Terras
Para Xavier, a Lei da Terra, de 1850, que buscou regulamentar a questão fundiária no Império do Brasil, através da doação da terra por parte do Estado à iniciativa particular (privada), é fundamental para a instituição do Estado segregador, violento, brutal. “Toda estrutura da relação social é organizada a partir dessa lei. Quando você olha o mapa do Brasil, e aquele rosário de quilombos organizados em todo território nacional, chega-se a conclusão de que, caso você faça a titulação radical dos remanescentes, você faz uma baita revolução no acesso à terra no país. Seria a mais profunda reforma agrária que iria existir em âmbito mundial nos países do ocidente”, ressaltou.
De acordo com ele, a titulação das terras remanescentes dos quilombos provocaria mudança na estrutura de poder político no país, por isso ela é fundamental. “Não é gratuito, portanto, a presença de um cara, como Sérgio Camargo, à frente da Fundação Cultural Palmares. Acho que ele não é um homem negro, na minha opinião, ele é um supremacista branco, aprisionado em um corpo negro, o que não o faz ser um homem negro”. Para o professor não é possível pensar a democratização do acesso à terra no Brasil sem discutir a questão remanescente do quilombos.
Na avaliação de Patrícia o atual PL 2.633 configura-se como a nova lei de terras, que está sendo colocada para ser votada em plena pandemia, em plena situação onde as pessoas estão tentando se organizar da melhor forma possível para defender as suas vidas, das suas famílias e comunidades.
“É muito destruidor o que esse Estado está fazendo contra a nossa organização. Não estamos desorganizados, talvez não estejamos tão bem articulados em nível nacional. As periferias deram jeito de se organizar, de conseguir promover vida mesmo com tantas condições de abandono por parte do Estado, de ausência de políticas para sua promoção de vida, temos que fazer outra leitura do que está acontecendo. É um momento muito difícil, complexo que estamos vivendo, não conseguiremos superar esse momento isoladamente, vai ter que se fazer muitas parceiras, articulações e treinar nossa escuta sensível e olhar crítico”, pontuou.
Para Xavier essa onda de protestos contra o racismo no mundo não é artificial e veio para ficar. “A ausência de politicas públicas de atenção à população negra é uma politica da morte. O Estado da forma como está organizado ele não apenas estimula, mas implica a morte da população negra.”
O debate que teve mediação dos jornalistas Katia Marko e Eduardo Silveira, pode ser visto abaixo.
Luta Antifascista e Antirrascista e a luta de classesLuta Antifascista e Antirracista e a luta de classes, com Juarez Xavier, professor de jornalismo da Unesp e militante do movimento negro, Patrícia Gonçalves, bióloga e educadora, integrante da Frente Quilombola do RS e Jamaika, capoeirista e liderança comunitária Quilombo dos Machado - Comunidade Sete de Setembro.
Posted by Brasil de Fato RS on Thursday, June 11, 2020
Edição: Katia Marko