Rio Grande do Sul

MEIO AMBIENTE

Projeto que libera zoneamento em área de mata nativa em Cachoeirinha é questionado

Moradores, entidades e parlamentares denunciam uma série de ilegalidades no acordo que prevê loteamento do Mato do Júlio

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Área de 256 hectares fica no coração da cidade, da Avenida Flores da Cunha até o Rio Gravataí, cruzando a BR 290 - Divulgação

Em meio a prédios e avenidas do centro de Cachoeirinha, cidade que faz fronteira com a capital gaúcha, uma área de 256 hectares com bioma remanescente da Mata Atlântica, de relevância ambiental e também histórica para o estado, há décadas é motivo de disputas. Conhecida como Mato do Júlio, a área voltou a ficar em evidência em plena pandemia do novo coronavírus, a partir de um projeto de lei do Executivo municipal que prevê o zoneamento e posterior licenciamento para empreendimentos imobiliários.

A antiga fazenda vai da Avenida Flores da Cunha até depois da BR 290. O único imóvel na área é a casa construída em 1815 pela família Baptista Soares da Silveira e Souza. O último herdeiro a morar na casa foi Júlio, falecido no início dos anos 2000. A casa e seu entorno estão em processo de tombamento histórico pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAM). Com dívidas de IPTU milionárias acumuladas, avaliadas em R$ 23 milhões, os proprietários buscam firmar um acordo para repassar parte da área ao município.

Os lotes previstos no projeto teriam duas ruas cortando o Mato do Júlio, ligando a Avenida Papa João XXIII ao Parque da Matriz e uma outra ligando a Flores da Cunha até a Perimetral Sul, que seria construída junto à BR 290. O projeto prevê vias secundárias loteadas e um parque no entorno da Casa dos Baptistas.

Moradores da cidade, ao lado de entidades de preservação ambiental e de vereadores que compõem a Frente Parlamentar para Debater Ações de Desenvolvimento Ecônomico-Social e Preservação do Mato do Júlio e da Casa dos Baptista, denunciam que o projeto de lei 4463/2020 contém diversas ilegalidades. E chamam a atenção para o modelo de cidade que se quer, em que a especulação imobiliária passa por cima de qualquer debate sobre o desenvolvimento com respeito à natureza.

Criticam o fato de que um projeto de tamanha relevância tenha sido enviado à Câmara de Vereadores em plena pandemia do novo coronavírus, numa tentativa de levá-lo a plenário a partir de acordos com lideranças das bancadas e impedindo a participação popular. Frente a isso, a comunidade tem se esforçado para dar repercussão ao fato.

Protesto e abraço simbólico


Protesto foi realizado em frente à prefeitura, que fica ao lado da entrada do Mato do Júlio / Matheus Aguilar

No último sábado (6), cerca de 200 pessoas realizaram um protesto em frente à prefeitura, seguido de um abraço simbólico ao Mato do Júlio. “A gente corre todos os riscos quanto à covid-19, mas não temos outra forma se não sair na rua para mostrar que temos força popular. O poder público precisa jogar mais limpo e transparente com a sociedade, como isso não acontece existe essa manifestação, mas procuramos nos manter na distância regular para não ter contato físico, todo mundo estava de máscara”, conta o representante da Associação de Preservação da Natureza do Vale do Gravataí (APN-VG) Deoclécio Charão.

“Somos um coletivo de cidadãos apartidário da cidade de Cachoeirinha que visa a preservação e conservação da área do Mato do Júlio”, explica Alan da Costa, estudante de Geografia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Ele assegura que o projeto fere o Plano Diretor Municipal, que define a área como especial de interesse ambiental e por isso exige um processo legal que não foi apresentado.


Abraço simbólico em defesa da preservação da área / Matheus Aguilar

Alan denuncia ainda que a audiência pública que debateu a alteração do Plano Diretor foi realizada às pressas e sem a devida divulgação no dia 14 de fevereiro, em pleno período de férias. Na atividade, não foi feita lista de presença nem registro das falas, como é exigido por lei, e foi apresentado um Estudo de Viabilidade Ambiental (EVA) realizado pelos proprietários. A resolução 001/1986 do Conselho Nacional de Meio Ambiente – CONAMA exige que para esse tipo de licenciamento seja apresentado um Estudo de Impacto Ambiental (EIA), o que nunca foi realizado pela prefeitura.

O presidente da Frente Parlamentar, vereador Marco Barbosa (PP), explica que o projeto foi protocolado no mês de maio na Câmara, mas a origem do atual projeto começou ano passado quando o prefeito Miki Breier (PSB), “de forma completamente fora do padrão republicano”, fez uma negociação direta com os proprietários, sem debate público. Foi quando se articulou o que o vereador nem considera ter sido uma audiência pública, devido às diversas irregularidades.

MP vai interferir

A partir disso, foi acionado o Ministério Público Estadual (MP). Nesta segunda-feira, Marco e Deoclécio participaram de uma reunião virtual com a promotora Simone Annes Keunecke. Conforme conta o vereador, a promotora afirmou que o MP está analisando quais medidas serão tomadas, visto que a audiência realizada em fevereiro não teve as características necessárias para alterar o Plano Diretor. De acordo com a promotora, mesmo durante a tramitação de um projeto de alteração do Plano Diretor é preciso que novas audiências públicas sejam realizadas, procedimento que está impossibilitado durante a pandemia de covid-19.

Um estudo realizado em 2018 pela Fundação Estadual de Planejamento Metropolitano e Regional - Metroplan na bacia hidrográfica do Rio Gravataí, que passa ao lado da BR 290, junto ao Mato do Júlio, também é um empecilho para o acordo entre prefeitura e proprietários. Parte da área localiza-se na mancha de alagamentos do rio. Em 2018, a promotoria ambiental do MP avalizou esse estudo e recomendou que “não emitam licença para construção ou operação de novos empreendimentos, alterando seus planos diretores para incorporar à legislação municipal essa área especial de proteção”.

Vista aérea da cidade com o Mato do Júlio sinalizado em vermelho / Google Maps

Em entrevista ao Correio de Gravataí sobre o tema, em 28 de dezembro de 2019, o secretário municipal de Planejamento, Elvis Vancarengui, disse que o estudo é questionado por técnicos da cidade. “De maneira alguma isso representará um prejuízo para o município. Ao contrário. A nossa convicção é de que, em 15 ou 20 anos, aquela área valerá muito mais. É uma área alagável, mas não é uma área inútil. Com projetos de engenharia e com responsabilidade ambiental, tenho certeza de que aquilo ali será transformado e a cidade estará virada de frente para o rio”, disse.

“A prefeitura alega que está recebendo como pagamento da dívida a área do outro lado da BR 290, que é uma área de preservação permanente, que não pode ser tocada porque é uma área de banhado que fica ao lado direito de quem vem de Porto Alegre para Gravataí pela Freeway, são cerca de 80 hectares que não podem ser mexidos”, ressalta Deoclécio. Pelo acordo, nessa região a prefeitura terá quatro hectares. Ele aponta ainda que o próprio estudo apresentado no dia 14 de fevereiro afirma que nada pode ser feito nessa área de preservação permanente, bem como na área do lado da cidade.

O EVA foi realizado pela empresa Profil e aponta 80 hectares de mata nativa somente no trecho entre a Freeway e a Avenida Flores da Cunha. Foram mapeadas 143 espécies vegetais, sendo quatro ameaçadas de extinção e protegidas por lei. Além de ser curso do Arroio Passarinho, também detectou um ponto de nascente de água. O estudo sugere que, “previamente à fase de licenciamento, se avance no aprofundamento de informações que deem respaldo técnico e aumentem a segurança caracterizada da área”.


Algumas importantes recomendações do estudo feito pelos proprietários / Reprodução

Décadas de luta pelo meio ambiente

Deoclécio lembra que a luta pela preservação desta área é antiga. “A APN-VG completa 41 anos em 2020 e há 29 anos vem lutando pela preservação do Mato do Júlio. Em 1991, na época do deputado estadual Daniel Bordignon, existiu uma frente parlamentar na Assembleia Legislativa, quando se visou a construção de um centro de estudo de educação ambiental”. Ele conta que em 2007 "os diversos movimentos definiram então que colocariam um artigo no atual plano diretor, o artigo 154, que diz que o terreno seria uma área especial de interesse ambiental e objeto de estudos técnicos e consultas públicas para determinar quais as suas características".

Para o representante da APN-GV, existem interesses envolvidos, entre eles a especulação imobiliária de grande porte. “Em um projeto desses não se pensa em todas as consequências, porque tem principalmente o dano ambiental, mas vem junto a explosão demográfica. Cachoeirinha é o quinto menor município do RS em área e a nona cidade em números de habitantes".

“Se quer cada vez mais só prédios como se a natureza não fosse importante, mas teriam outras possibilidades para a área”, ressalta o vereador Marco. “Pode-se buscar outra formas de uso para além da questão da construção civil, com prédios, comércio, que podem agregar valor e desenvolvimento econômico em outro prisma”, avalia, ao citar o potencial econômico e turístico para a cidade com a transformação da casa em um espaço de pesquisa arqueológica sobre a história do Rio Grande do Sul.

Na avaliação de Alan, qualquer intervenção no Mato de Júlio deveria respeitar e valorizar o meio ambiente. “Nosso principal objetivo é transformar a área em APP (Área de Preservação Permanente) com trilhas ecológicas guiadas e um cercamento real, com um centro de reabilitação para animais silvestres da fauna local e disponibilidade para pesquisa e extensão de todos tipos de ensino. Conservando então a fauna e flora local, que fornecem diversos serviços ecossistêmicos para toda a cidade.” E promete, quando o projeto for a votação, estarão todos de preto protestando em frente à Câmara de Vereadores.

Segundo Deoclécio, como também aponta Alan, a prefeitura acusa o movimento de fazer jogo político. “A APN-VG faz parte do conselho do Plano Diretor, mas em determinado momento convocaram o conselho e não a associação, quando percebemos que a movimentação era para aprovar coisas de interesse de determinada classe. Isso para ver o que é jogo político que quer passar o negócio na marra. É um jogo de interesses, ali é só um ganha-ganha. Porque em ano eleitoral querem passar isso de forma apressada, o que tem de interesse por trás disso? Por que não deixar a discussão para o ano que vem e não hoje, às vésperas de eleição?”

O Brasil de Fato RS contatou a prefeitura de Cachoeirinha solicitando uma posição sobre o projeto e as dúvidas quanto à sua legalidade levantadas pelos entrevistados. Até o fechamento desta matéria, nenhuma resposta havia sido enviada.

Edição: Katia Marko