Rio Grande do Sul

MP 979/2020

Governo Bolsonaro volta a atacar a autonomia das Universidades e Institutos Federais

"Em meio a mais um grave ataque às universidades, discussão sobre a paridade é urgente", defendem entidades da UFRGS

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Em meio a mais um ataque proferido pelo governo Bolsonaro, conselho da UFRGS deverá debater diretrizes para eleição da reitoria - Guilherme Santos | Sul21

Do que se compõe uma Universidade Pública? Em sua essência, por professores, alunos e trabalhadores técnico-administrativos em educação, além de agentes terceirizados e da comunidade do seu entorno. Pela Constituição Federal, ela segue o princípio de gestão democrática do ensino público e goza de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão. De quatro em quatro anos, as universidades realizam consultas e o processo de indicação do seu reitor. Atualmente a Universidade Federal do Rio Grande do Sul adota a fórmula que dá mais peso de 70% ao voto de docentes e 15% a estudantes e 15% aos técnico-administrativos em educação. A maioria das entidades representativas dos segmentos luta para que a instituição adote a paridade na consulta para reitor/a.

Nessa sexta-feira (12), o Conselho Universitário da Universidade Federal do Rio Grande do Rio Grande do Sul (Consun) apresentará uma proposta de diretrizes para o processo do pleito. Pela primeira vez na história da Universidade, o processo ocorrerá de forma totalmente virtual, devido à pandemia. Na pauta também estará a discussão sobre a Medida Provisória nº 979, lançada na noite dessa terça-feira (9). Nela, o governo de Jair Bolsonaro volta a atacar a autonomia das universidades, em que dispõe sobre a designação de dirigentes pro tempore no período da pandemia do novo coronavírus.

Segundo o Art. 2º da MP, “Não haverá processo de consulta à comunidade, escolar ou acadêmica, ou formação de lista tríplice para a escolha de dirigentes das instituições federais de ensino durante o período da pandemia. Além de que o ministro de Estado da Educação designará reitor e, quando cabível, vice-reitor pro tempore para exercício durante o período da emergência de saúde pública".

Por conta dessa MP, todos os processos em andamento para escolha de reitores ficam suspensos, incluindo a UFRGS que está com o processo em pleno andamento junto ao Conselho Universitário, uma vez que a legislação vigente prevê a escolha de reitor até 20 de julho. Além dela cerca de outras 17 instituições federais serão afetadas em sua autonomia na escolha de seus representantes, caso essas mudanças sejam implantadas.

Imediatamente ao anúncio da medida provisória começou uma forte mobilização contra a mesma. Reitores e ex-reitores estão se manifestando contra esse ataque à autonomia das Universidades Públicas. Em um vídeo disponibilizado no site da UFRGS, o reitor Rui Oppermann afirmou estar muito preocupado. 

“Fomos surpreendidos por uma MP que literalmente determina a suspensão do processo de escolha de reitores e vice-reitores. A UFRGS como todos sabem está em andamento desde sexta-feira passada, com previsão de término para o dia 20. O momento é de entender a extensão dessa medida, de mobilizar as diferentes instâncias, no sentido de avaliar sua constitucionalidade, e de fazer prevalecer e garantir a autonomia das instituições públicas de ensino.” De acordo com o reitor há uma mobilização geral no país junto aos ministérios públicos, Congresso, ao Supremo Tribunal Federal e outras instâncias, buscando encaminhamentos que questionem a constitucionalidade da Medida. 

“De forma abrupta, ontem surgiu nova MP, a 979/2020, que proíbe as Universidades de escolherem seus Reitores e Reitoras durante o período de emergência de saúde pública de importância internacional. Mandatos encerrados nesse período serão sucedidos por Reitores Pró-Tempore, indicados diretamente pelo ministro da Educação, o mesmo que sugeriu em vídeo tornado público que os “vagabundos” do Supremo Tribunal Federal deveriam estar presos. A Universidade Pública em geral, e cada IFES em particular, não pode prescindir da legitimidade democrática de seus mandatários. Especialmente nas atuais circunstâncias da vida política nacional. Da nossa parte, estaremos atuando junto à Andifes e outras instituições e parlamentares pela imediata revogação da absurda MP 979/2020”, ressaltou o reitor da Universidade Federal de Pelotas, Pedro Hallal, que está em seu último mandato. 


Para reitores e entidades a MP de Bolsonaro é um grande ataque contra a democracia e a autonomia universitária / Antonio Cruz/Agência Brasil

Em aula pública realizada pela Adufrgs, por videoconferência, outros reitores também demonstraram preocupação, entre eles, Lucia Campos Pellanda (UFCSPA), Júlio Xandro Heck (IFRS) e Flávio Nunes (IFSUL). “Essa MP novamente vem no sentido de tirar a autonomia e ferir as nossas instituições”, apontou Flávio Nunes, reitor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-Rio-Grandense (IFSUL). 

Diversas entidades lançaram notas em repúdio à MP e em defesa da autonomia das universidades, como o Andes, a Adufrgs-Sindical, a Assufrgs, assim como o PSOL e as Frentes Parlamentares em Defesa das Universidades, dos IFs, da Escola Pública  e PNE. E também uma nota conjunta das seguintes entidades: ANDES-SN | ANPG | FASUBRA-Sindical | FENET | PROIFES | SINASEFE | UBES | UNE

De acordo com o Coordenador da Assufrgs e integrante do Consun, Rafael Berbigier de Bortoli, as pautas seguem as mesmas nessa sexta-feira (12) na reunião do Conselho Universitário.

Paridade versus modelo disposto na lei

A lei que rege a escolha de reitores das universidades federais é de 1968, e foi revalidada no governo Fernando Henrique Cardoso através da Lei nº 9.192, de 21 de dezembro de 2005. Ela determina um percentual de 70% de votantes docentes na eleição, a qual se dá no Conselho Universitário. De acordo com a lei, a escolha do reitor deve ser feita em etapas. Primeiro, consultando à comunidade acadêmica, para formar uma lista tríplice. Depois, o presidente tem a prerrogativa de escolher qualquer um dos três nomes para o cargo. 

Mesmo com a existência da referida lei, amparada pela prerrogativa da autonomia universitária, a maioria das universidades adota o sistema paritário e informal na comunidade acadêmica para constituir a lista tríplice, onde depois da consulta o resultado é chancelado oficialmente pelo colégio eleitoral e enviado ao presidente. 

Em um levantamento feito pela Universidade Federal de Brasília, em 2012, das 54 universidades federais brasileiras, 37 delas (68% do total) adotam modelo paritário nas eleições. Entre as universidade que adotam a paridade está a Universidade Federal do Rio de Janeiro, desde o final dos anos 1980, a Universidade de Alagoas, que adota há 25 anos, a Universidade de Brasília (UnB), a Universidade Federal da Paraíba (UFPB), a Universidade Federal do Acre, e também as gaúchas, Universidade Federal de Santa Maria e a Universidade Federal de Pelotas, que adota desde 1989. 

Desde 2003, no governo Luiz Inácio Lula da Silva, a indicação era pelo nome mais votado. Já com Bolsonaro, isso não acontece, ficando a nomeação por escolha do presidente independente da sua colocação.

Ano passado, o governo de Bolsonaro já tentou atacar essa autonomia de escolha por meio da Medida Provisória 914/2019, que dava ao presidente a prerrogativa de escolher e não apenas referendar o nome do reitor de universidades e institutos federais de ensino superior. A medida também acabava com a possibilidade da paridade no peso de estudantes, professores e técnicos. A MP caducou, e agora, mais uma vez, o presidente tenta acabar com a autonomia com a MP 979.  

“Essa nova medida vem porque a anterior caiu na semana passada. Agora de novo o governo mexe na questão dos reitores e reitoras, e nas direções de unidade. Isso traz um engessamento muito forte e retira toda a discussão interna na universidade, dos seus processos, sua forma de gerir e de pensar o ensino, a pesquisa e a extensão. Isso é muito grave”, ressalta a professora do Departamento de Comunicação e diretora da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da UFRGS, Karla Maria Müller.

Para ela, tal medida, caso se mantenha, afetará diretamente, pois tirará toda autonomia das universidades. “Uma situação arbitrária e que desconsidera toda a caminhada que as universidades já fizeram, e que já estão sofrendo com escassos recursos, cortes de verba, corte na contratação de servidores, técnicos e professores. Isso vai contra tudo que viemos lutando há muitos anos para manter uma universidade com qualidade”, afirma. 

Paridade como saída democrática

A UFRGS há algum tempo adota o modelo 70/15/15. Dentro da instituição que possui cerca de 3000 docentes, 3000 técnico-administrativos em educação e com uma média de 30 mil alunos, a discussão sobre a paridade vem desde 1992. Para a maioria das entidades representativas do quadro da universidade, a paridade seria o modelo mais democrático. 

“Na UFRGS, infelizmente, tem-se aplicado a regra da eleição para a consulta da comunidade, a qual poderia tranquilamente ser paritária, a exemplo da maioria das universidades federais, que fizeram suas consultas paritárias e tiveram empossados os candidatos mais votados nestas consultas, referendadas pelos conselhos universitários compostos no modelo de 70% de peso para os docentes”, expõe a presidente da Seção Sindical do Andes-SN na UFRGS, Rúbia Vogt, frisando que a entidade defende a paridade e, há bastante tempo, pauta esse assunto com a comunidade acadêmica. “É a paridade o que defendemos na UFRGS, para garantir a legitimidade e a defesa do pleito por toda a comunidade acadêmica.”

Na avaliação de Karla é importante fazer essa consulta para então poder ouvir quais os interesses, demandas, preocupações desses três segmentos para compor uma gestão adequada para a unidade. “É um processo em que tu amplia a discussão de como se dará a gestão dentro da universidade. Então uma administração central, na medida que tem essa consulta de uma forma bem mais ampla, dando um equilíbrio no peso dos votantes é fundamental, porque isso vai dar legitimidade, inclusive para poder realizar a gestão de uma forma mais equilibrada.” 

Para a Assufrgs, sindicato que representa os técnicos-administrativos da UFRGS, UFCSPA e IFRS, a paridade é possível, é legal e no atual momento é ainda mais necessária. “Acreditamos que a paridade expressa um avanço na democracia interna na universidade, principalmente nessa conjuntura de ataques aos mais diversos segmentos da sociedade”, pontua Rafael, que lamenta a UFRGS sempre esbarrar no conservadorismo no que se refere ao avanço de uma consulta mais democrática. “Estamos nessa batalha para aprovar a paridade que é um meio para se avançar na democracia interna na UFRGS. Só com o avanço na democracia interna, com uma consulta paritária vamos ter uma comunidade fortemente unida em torno do primeiro colocado na lista tríplice e barrar qualquer tipo de interventor."  

Por sua vez o Sindicato Intermunicipal dos Professores de Instituições Federais de Ensino Superior do Rio Grande do Sul (Adufrgs-Sindical), em votação recente, que contou com a participação de 744 professores, 75,6% desses votaram favorável a manter a atual proporção de 70/15/15. Conforme expõe o presidente do sindicato, Lúcio Olímpio de Carvalho Vieira, durante o processo, e das discussões, chegou-se ao entendimento de que era mais prudente não mexer, não abrir o flanco, para que futuramente o governo questionasse juridicamente a eleição e judicializasse o processo e nomeasse um interventor, algo que já estava se observando dentro do governo. “Foi a decisão dessa assembleia, dessa consulta eletrônica”. Lúcio salienta que as universidades têm que ter autonomia sobre como deve ser seu processo eleitoral. “Temos uma profunda preocupação com o momento atual com um governo que tem intenção clara de fazer intervenções dentro das universidades”, destaca. 
  
Ex-professor da UFRGS, e hoje professor do Instituto Federal, que há mais de 10 anos tem a experiência da paridade, Lúcio pontua que independente do modelo que venha a ser empregado, deveria haver um debate e estudo pelo governo e por todas as outras entidades que adotam formas diferentes, os ganhos, as vantagens de um e de outro processo. “Infelizmente essa discussão não fluiu, não avançou, até porque o governo tem se negado a fazer qualquer discussão séria sobre o assunto. Entendemos inclusive que o Congresso deveria se debruçar sobre o assunto, principalmente defendendo o marco regulatório das universidades para que cada universalidade tenha autonomia para decidir como fará isso”. 
 
Coordenadora Geral do DCE da UFRGS, Tirza Gabriela Drumond Ferreira afirma ser um absurdo não haver um peso equivalente aos setores que hoje são reconhecidos, que são os técnicos, estudantes e professores. “A paridade, que é que dá esse peso equivalente a esses três setores, também permitiria a ampliação de deliberações que, em tese, iriam contra ao que a maioria dos professores acreditam. Infelizmente, hoje, por causa da sociabilidade que a gente tem, pela inserção muito recente de camadas mais populares nas universidades, conseguimos perceber ainda mais o conservadorismo que urge dentro do setor dos professores”, aponta. 

De acordo com ela, só uma comunidade fortalecida, que escolha os seus dirigentes, uma comunidade acadêmica coesa pode barrar o retrocesso. “As pessoas que defendem os 70/15/15 se utilizam dessa narrativa institucionalista para colocar, bom, a nossa universidade vai ser defendida pelas leis. Não existe lei nenhuma que defenda hoje a nossa universidade pública, o nosso povo. Só o povo unido vai conseguir defender a universidade e o que a gente precisa enquanto sociedade”, conclui.  
   
Por sua vez, o Movimento Virada, que surgiu em 2016, ano da ultima eleição para a Reitoria, e que congrega a mobilização e integração entre técnicos, estudantes e professores, defende a democratização da Universidade, visando a maior participação da comunidade universitária nos debates e processos decisórios da UFRGS. “Entendemos que um passo neste sentido é garantir que a consulta à comunidade seja com pesos igualitários para cada um dos segmentos, que nós chamamos de paridade: 1/3 para estudantes, 1/3 para técnico-administrativos em educação e 1/3 para docentes”, ilustra a integrante do movimento, Mariane Quadros, técnica-administrativa em educação da UFRGS.

Segundo reforça Mariane, a paridade é ainda mais essencial e urgente no governo Bolsonaro, que sistematicamente ataca e busca intervir nas universidades. “Somente a consulta paritária pode eleger um reitor que seja da maioria, que a comunidade o reconheça como eleito e defenda sua nomeação contra qualquer tentativa de intervenção. Isso fica ainda mais claro com a edição da MP 979 nesta quarta-feira: Bolsonaro vai buscar todos os meios, legais e ilegais, para nomear um interventor. Somente a comunidade universitária unida pode impedir essa intervenção”, finaliza. 

Edição: Katia Marko