Eu vim para que todos tenham vida! (Jo 10,10)
"Vidas negras importam sim" é o nome de um movimento surgido nos Estados Unidos, anos atrás, em reação à violência policial e tantas outras violências contra os negros norte-americanos que vem de longa data. Lá a segregação racial era lei até meados do século passado. A superação começou a partir da reação de muitos negros e negras não aceitando a pretensa inferioridade imposta pela lei. Chamo a atenção para a costureira chamada Rosa Park (Montgomery – Alabama), que em 1955 não aceitou ceder seu lugar no banco do ônibus a um homem branco, sendo punida pelo ato, e deflagrando uma série de reações da população negra. Dizia ela que “estava cansada de desistir”. O resultado foi o fim da sustentação legal da segregação racial.
O que vemos atualmente nos informativos revela que a situação não mudou muito. A morte do cidadão George Floyd de uma forma humilhante (vejam as imagens veiculadas nos canais de televisão) reacendeu a chama da palavra de ordem: “vidas negras importam sim”. Estas vidas devem ser protegidas de qualquer forma de violência. As vidas brancas também importam. Contudo, são as vidas negras que se encontram mais ameaçadas por uma força policial que não protege os negros. Ela mata os negros.
O grito assumido pelos negros norte-americanos tem sido acolhido no Brasil. Desde o processo de escravidão os negros brasileiros têm dito de diferentes formas que “vidas negras importam sim”. Começou com as diferentes reações à escravidão sendo a mais conhecida a organização quilombola. Infelizmente pouco se fala das irmandades e confrarias voltadas ao cuidado dos enfermos e, especialmente, para dar um enterro minimamente digno aos negros e negras que morriam na miséria ou abandonados pelos seus ex-donos. O grito afirmativo “vidas negras importam sim” é histórico no Brasil mesmo que o atual governo, caracterizado pela aversão à verdade histórica, negue isso.
Quando se afirma que “vidas negras importam”, no contexto brasileiro, está se reagindo à história da escravidão negra. Naqueles tempos o negro não era considerado como pessoa. Era uma “´peça” a ser comercializada e da qual se deveria extrair o máximo de dividendos possíveis. Quando a “peça” perdia a força de trabalho ou morria, era abandonada. No período pós escravidão foi vista como empecilho à modernização brasileira e ao ideário de um país majoritariamente branco. No caso das relações de trabalho era necessário abrir o país para a mão de obra de origem europeia não escravizada. Não haveria trabalho para os negros a não ser em situações que beiravam a escravidão. Pensava-se também na necessidade da “purificação” dos brasileiros através do branqueamento da raça. Quando menos sangue negro melhor. Naquele tempo as “vidas negras não importavam” para a sociedade brasileira.
A história avançou sem “boas notícias para os negros”. Antes da morte do negro norte-americano George Floyd assistimos a morte do adolescente negro João Pedro em São Gonçalo -RJ. Olhando para trás, veremos muitos outros casos. Morreram porque eram negros. George (EUA) e João Pedro (Brasil) foram mortos pelas forças policiais. George foi morto por asfixia e João Pedro atingido nas costas por uma bala supostamente perdida. Convenhamos, uma bala perdida no meio de mais de setenta tiros, numa casa onde crianças e adolescentes brincavam soa muito estranho. Joao Pedro foi mais uma vítima em um contexto em que as “vidas negras não importam”.
Brasil e Estados Unidos são países majoritariamente cristãos. É pecado contra o projeto de Jesus Cristo acolher tantas mortes como normalidade ou então justificá-las a partir de uma leitura racista ou preconceituosa. O sangue dessas pessoas, bem como a dor dos seus familiares, clama aos céus. Não podemos ser surdos a este grito.
Compreendamos os protestos como o clamor de pessoas que insistem em dizer que “vidas negras importam sim” e não podem ser exterminadas de forma covarde por uma força policial que não protege, mas ameaça e assassina os negros. Deve ser também o nosso clamor, sem violência, marcado pela profecia e cuidado com a vida.
Edição: Marcos Corbari