Rio Grande do Sul

OPINIÃO

Artigo | Reação popular versus democracia

Como em outros momentos históricos, em 2018 o plano das elites não deu certo e então elegeram o que havia de pior

Brasil de Fato | Porto Alegre |
"Ficar dezesseis anos no palácio do Planalto seria inadmissível", então foi articulado o impedimento de Dilma em 2016 - Agência Brasil

O ano de 1950 começa com a eleição do estancieiro gaúcho Getúlio Vargas, o “pai dos pobres”, que havia sido ditador e era chamado de Vargas. O democrata era Getúlio, aquele que começara a industrializar o país e a regular as relações de trabalho, criando leis trabalhistas, sociais e previdenciárias, coisas que desagradavam às elites. Desencadearam uma forte campanha contra seu governo, por corrupção, o “mar de lama” que o levou ao suicídio em 1954. Depois se elegeu o mineiro Juscelino Kubitschek, demagogo todo sorrisos. Tinha como lema “cinquenta anos em cinco”. Construiu a nova capital para afastá-la do litoral, o que parecia uma boa ideia. Impulsionou a indústria automobilística. Era Juscelino, e só.

A corrupção solta, mas tolerada, motivou a campanha eleitoral que veio em seguida. Jânio Quadros, do Mato Grosso e político por São Paulo, populista conservador, calcou seu lema na vassourinha que iria varrer a sujeira do Brasil. Começou como Jânio. Não tinha um projeto para o país. Na época, as chapas eleitorais não vinculavam o titular ao vice, e vencera um opositor seu, o gaúcho João Goulart, chamado Jango, mas progressista seguidor de Getúlio. Jânio queria agradar as classes dominantes e as forças armadas, para articular um golpe de estado em que tivesse plenos poderes.

Pensou que, se renunciasse sem motivo, teria apoio militar e das classes econômicas para dissolver o parlamento e se tornar ditador. Velha tendência autoritária, para evitar entregar a nação a alguém que, no seu entender, “iria incendiar o país”. Mas houve reação e o vice-presidente Jango assumiu, prometendo reformas de base de cunho social insuportáveis para as “elites”. Voltaram as recorrentes denúncias de corrupção e, em especial, era o auge da Guerra Fria, o perigo comunista debaixo de todas as camas.

Jango personificava a entrega do poder para a União Soviética. Logo ele, rico estancieiro gaúcho, e como se uma revolução social pudesse ser feita pela vontade de uma única pessoa, em seu gabinete e sem ativa participação popular. Era a deixa para desencadear o golpe de estado civil-militar de 1964, com a sórdida articulação dos Estados Unidos da América do Norte. As forças armadas fizeram o trabalho sujo para certa camada econômica ficar livre e solta, e cometer todos os desmandos políticos, econômicos e financeiros, além dos retrocessos sociais, protegida pela censura e com a conivência da grande mídia bem paga.

Vieram, então, cinco generais em sequência, todos chamados pelos sobrenomes: o cearense Castelo Branco, três gaúchos, Costa e Silva, Médici, Geisel e o carioca Figueiredo, carrancudos, como se fosse sinal de seriedade, medíocres, controlados pelo poder econômico civil, com desprezo pelo povo. O golpe havia sido no começo bem visto, com a população hipnotizada pela campanha anticomunista, mas dez anos depois o encanto já havia acabado. O regime permitia inofensivas eleições parlamentares por apenas dois partidos políticos por ele criado: o partido do “sim”, da oposição, e o do “sim, senhor”, de seu aliado, para votarem leis do seu interesse.

As eleições davam a medida do sucesso do regime, e a de 1974 trouxe a primeira derrota. O último ditador presidente, João Figueiredo, oficial da cavalaria, promoveu a já anunciada “abertura democrática lenta e gradual”, por causa do esgotamento do regime, alardeando de maneira contraditória e risível: “Hei de fazer desse país uma democracia, e quem for contra eu prendo e arrebento!” Essa disposição cômica o tornou mais popular. A população passou a chamá-lo de João, e até uma campanha oficial de incentivo ao agronegócio usou como slogan “Plante que o João garante”. Em 1985 terminou o período autoritário.

Começou então o que poderia ter sido uma era de prenomes, com figuras simpáticas e populares. O mineiro Tancredo Neves, simplesmente Tancredo, foi eleito indiretamente pelo Congresso Nacional presidente do país, numa redemocratização meio trôpega, mas morreu antes de assumir. O vice, José Ribamar Ferreira de Araújo Costa, maranhense, nome real do mais popular José Sarney, ou simplesmente Sarney, assumiu. Mas a harmonia não durou.

A primeira eleição direta consagrou uma figura arrogante e pretensiosa, o alagoano Fernando Collor de Mello, patrocinado pela mídia, foi apenas Collor e teve breve mandato. Cassado por corrupção e, em especial, por ter afrontado o Congresso Nacional, foi substituído pelo vice, mineiro de aparência simplória, Itamar Franco, Itamar para o povo, que de simplório não tinha nada, criador do plano econômico que lançou a moeda atual.

Foi sucedido pelo carioca Fernando Henrique Cardoso, mas político por São Paulo, que lhe usurpou a autoria do plano de estabilização econômica para garantir a vitória, chamado “o príncipe dos sociólogos” ou FHC (cujos livros nunca repercutiram). Não tinha um projeto explícito, mas apoio das classes altas. Conseguiu aprovar a lei que autorizava a reeleição do governante, comprando abertamente os votos do parlamento. Reelegeu-se, e promoveu os maiores escândalos financeiros e econômicos já vistos no país, vendendo a preços vis uma série de empresas estatais importantes, já comprometendo a soberania da nação. Esvaiu sua popularidade, permitindo a eleição de um líder sindical operário, Luís Inácio “Lula” da Silva, pernambucano por nascimento, e político por São Paulo, e por uma sigla de origem popular.

A classe dominante que durante quinhentos anos controlava o país contava com seu fracasso, uma passagem descartável. Lula, entretanto, obteve o maior sucesso, diminuindo desigualdades sociais, elevando a economia à sexta potência mundial, provocando cólicas na oposição. Havia superado a acirrada campanha contrária do poder econômico poderoso que se julgava imbatível. O governo popular reelegeu seu presidente e fez sua sucessora, Dilma Rousseff, mineira radicada no Rio Grande do Sul, simplesmente Dilma, que também se reelegeu.

Ficar dezesseis anos no palácio do Planalto seria inadmissível. As articulações se intensificaram. Massiva campanha midiática, redundantes denúncias sem provas de corrupção, manipulação do Congresso Nacional e das cortes de justiça, conseguiram o impedimento da presidenta em 2016, assumindo em seu lugar o vice-presidente advindo de uma composição espúria com um partido adesista a qualquer um que chegasse ao poder. Era Michel Temer, chamado apenas Temer. Teve a pior avaliação popular, corrupto e fraco.

O plano das “elites” não foi bem-sucedido. Era indispensável vencer as eleições majoritárias de 2018, a qualquer custo. A tentativa de esgotar o partido de origem popular não funcionou. Ele seguiu líder nos resultados para os parlamentos, apesar do crescimento de outras siglas, ao mesmo tempo em que os conservadores perdiam o discurso e seus partidos se afundavam em corrupção, seus membros sendo anulados política e eleitoralmente.

Sem alternativa, elegeram o que havia de pior, um candidato oriundo do exército, de onde fora expulso, radical de extrema-direita, grotesco, corrupto e ridículo, sem noção de soberania nacional, cuja ação principal tem sido a retirada de direitos sociais duramente conquistados e a venda das últimas estatais. E a população voltando à sua única reação, anestesiada e passiva, com rara exceção, de chamar os governantes pelo nome ou sobrenome, sem adjetivos e, o que é pior, sem qualquer protagonismo, participação ou mínimo interesse.

* Paulo Sá é servidor público aposentado

Edição: Marcelo Ferreira