“O número de mulheres na política corresponderá à mudança cultural que pudermos provocar formando meninos e meninas mais igualitários, interrompendo a reprodução do machismo e do sexismo, que retira as mulheres da vida comunitária e pública por impingi-la com a exclusividade das tarefas de reprodução e dos cuidados com a vida. Mais ainda, a formação desigual de homens e mulheres as coloca na submissão deles, na dependência econômica e cultural e produz homens autoritários, reproduz os comportamentos abusivos, dominadores e violentos”, analisa Sofia Cavedon, que atua desde a década de 1990 na luta em defesa da educação.
Filha de Olinto Cavedon e Lourdes Carolina Cavedon, Sofia nasceu no dia 2 de agosto de 1963, em Veranópolis, na Serra gaúcha. Segundo ela, sair da sua cidade para fazer Ensino Superior na Capital foi o ato de coragem divisor de águas. Graduou-se em Educação Física pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), onde também fez pós-graduação em Educação Física Pré-Escolar e Escolar.
Trabalhou como professora das séries iniciais nas redes privada e pública de Porto Alegre. Foi ativista da Associação dos Trabalhadores em Educação do Município de Porto Alegre (Atempa) e vice-presidente do Sindicato dos Municipários de Porto Alegre (SIMPA), na gestão 1995-1996.
Em 2000 foi eleita vereadora, pelo Partido dos Trabalhadores (PT), onde atuou por cinco mandatos de 2001-2004, 2005-2008, 2009-2012, 2013-2016 e 2017-2020. Presidiu a Câmara Municipal de Porto Alegre no período de 3 de janeiro de 2011 a 2 de janeiro de 2012. Na Câmara Municipal de Porto Alegre, Sofia marcou sua trajetória pela defesa dos serviços públicos de qualidade, especialmente na área da educação e na preservação e qualificação dos espaços públicos para garantir o direito do povo ao esporte, ao lazer e à cultura.
Sofia também foi secretária municipal da Educação e Cultura no período de 2 de janeiro de 2003 a 1 de abril de 2004. Em 2018 elegeu-se deputada estadual. Atualmente, preside a Comissão de Educação, Cultura, Desporto, Ciência e Tecnologia da Assembleia Legislativa.
Confira a íntegra da entrevista, que compõe a série Especial Mulheres na Política.
Brasil de Fato RS - Gostaria que tu nos falasse um pouco de ti, da tua trajetória e como se deu o encontro com a política.
Sofia Cavedon - Eu nasci em Veranópolis, em 1963, de mãe professora e pai operário de serralheria. Todo o crescimento sob a normalização dada pela ditadura militar, de censura, de obediência às autoridades, de marchas cívico-militares, aprendizado de hinos e bandeira, vai encontrar vazão na vivência dos grupos de jovens da Igreja Católica, na cultura e no esporte: intensa leitura de literatura nas bibliotecas e a equipe de vôlei do colégio.
Sair da cidade para fazer Ensino Superior foi o ato de coragem divisor de águas: na Capital dos gaúchos em 1982 vivia-se os ventos da liberdade e a casa da Estudante, a CEUFRGS, onde consegui vaga, efervescia de debate político. A Escola de Educação Física pouco me viu pela imperiosidade de trabalhar para sobreviver na Capital. Depois de um ano de estágios, a oportunidade de dar aulas no Colégio Sevigné abre o caminho do exercício do Magistério e as primeiras leituras dos teóricos construtivistas. Dali para as redes públicas Municipal e Estadual, as greves, os debates de carreira e de cidade me levaram a tomar partido, a escolher na luta pela educação, o Partido dos Trabalhadores que colocava em curso na Capital a democratização do Estado, como instrumento de exercício da cidadania.
Foram anos de aulas nas escolas da Zona Norte: Ildo Meneguetti e América e a liderança da luta sindical até em 1996 assumir a gestão municipal da Educação em diferentes coordenações e secretaria adjunta quando ao final da gestão, assumi a primeira candidatura à vereadora em nome do coletivo Escola Cidadã e tivemos sucesso. Era o ano 2000. Dalí foram cinco mandatos, presidência da Câmara e Secretaria da Educação Municipal até a eleição para deputada estadual em 2018.
BdFRS - Como tu analisa a participação das mulheres na política? Como podemos atrair mais mulheres para ocupar espaço nesse segmento? E como a participação da mulher na política muda a sociedade e esse espaço de poder?
Sofia - Mulheres são poucas na política e não podemos ainda assim padronizar sua atuação. Há um grupo, mais identificado com os partidos de esquerda, que tem consciência da condição de opressão, desigualdade e injustiça que atinge cultural e secularmente as mulheres e precisa usar toda a força política de sua atuação para alterá-la. Situam essa opressão no debate de projeto de mundo e querem alterar a naturalização da desigualdade, a banalização das discriminações e a negação das desigualdades.
Outras valorizam muito o espaço político que conquistaram, mas percebem só superficialmente ou pontualmente as restrições das mulheres, em especial a violência. Ou seja, não é somente por ser mulher que a política é transformadora, mas sua presença na política já é uma ruptura com a apropriação masculina dos espaços de poder.
O número de mulheres na política corresponderá à mudança cultural que pudermos provocar formando meninos e meninas mais igualitários, interrompendo a reprodução do machismo e do sexismo, que retira as mulheres da vida comunitária e pública por impingi-la com a exclusividade das tarefas de reprodução e dos cuidados com a vida. Mais ainda, a formação desigual de homens e mulheres as coloca na submissão deles, na dependência econômica e cultural e produz homens autoritários, reproduz os comportamentos abusivos, dominadores e violentos.
BdFRS - Temos observado, nos últimos anos, em especial no último, um desmantelamento da cultura nos três níveis, federal, estadual e municipal. Com a pandemia, o setor que já passava por sérias dificuldades, e mais, como no caso de Porto Alegre, com a privatização dos espaços, ficou ainda pior. Como tu vê esse cenário? Que medidas deveriam ser tomadas, que políticas públicas deveriam ser criadas, no teu entendimento?
Sofia - A área da Cultura é estratégica e sempre está em disputa, exato por isso. A redemocratização do país possibilitou a construção participativa em processo de conferência nacional de sistemas de Cultura, de estímulo à organização de conselhos de Cultura, de planos e de fundo para a área – o chamado CPF – em todos os entes federados.
O processo progressivo de constituição de pastas específicas, apartando a Cultura das pastas da Educação, do Turismo, do Esporte, ganhando identidade, fim próprio e orçamento tem tornado a área uma das mais significativas na produção econômica, na geração de renda e trabalho e constitui a imensa, rica, diversa e criativa rede que compõe o imaginário, a identidade, os valores e as dimensões estética e ética do povo brasileiro. Ora, se apropriada pelo poder econômico, fica mais fácil para a burguesia, à minoria dominante, manipular e impor os valores estruturantes do capitalismo: o individualismo, a competição, o consumismo, as relações autoritárias e machistas e a meritocracia.
É então nesse momento que tendo tomado o poder antes por golpe na presidenta eleita, depois por eleição, a burguesia tenta censurar a Cultura, termina com seu Ministério, suspende todos os convênios com os pontos de cultura – que promovem a cultura popular –, interferir e enfraquecer a autonomia de órgãos como a ANCINE, etc. É no debate político e na disputa de projetos de sociedade que a Cultura terá políticas permanentes, descentralizadas, libertárias, populares, democratizadas e acessíveis desde a infância à terceira idade.
BdFRS – Qual tua avaliação sobre a educação pública no estado, quais são seus principais gargalos? O que precisa ser feito eficazmente para melhorá-la?
Sofia - Desde que assumi o mandato de deputada estadual e a presidência da Comissão de Educação ampliei significativamente o meu conhecimento da rede estadual de ensino, desde as menores necessidades às grandes políticas e estruturas, a ponto que organizamos o primeiro Observatório da Educação Estadual, lançado em Julho de 2019, que recuperou os dados objetivos numa série histórica, linha de tempo de em média 10 anos, em grandes dimensões: investimentos, qualidade, condições de trabalho, carreira e salário.
O que ficou evidenciado é um processo de desinvestimento progressivo nos últimos anos, redução de matrículas, ampliação de turmas multisseriadas, aumento do abandono escolar em especial nos últimos anos do Ensino Fundamental e de forma aguda no Ensino Médio, e nessas etapas, a larga distância do desempenho de nossos estudantes em relação à meta nacional do IDEB.
Do lado dos docentes identificamos uma queda real do valor dos seus salários nos últimos cinco anos, a falta de formação permanente em serviço, o acesso à tecnologia, a falta de pessoal, a sobrecarga de trabalho dos professores e de funcionários em função disso, a falta de equipe pedagógica completa para conduzir o processo educacional, a gestão administrativa e financeira, a alimentação escolar e a relação com as famílias e necessidades dos estudantes.
Para reverter esse quadro dramático, é preciso a retomada de políticas construídas coletivamente para o cumprimento do Plano Estadual da Educação, lei em vigor, que têm diretrizes e metas para todas as etapas e níveis da educação estadual, o respeito ao Conselho Estadual de Educação, à gestão democrática das escolas, o diálogo permanente e verdadeiro com os trabalhadores e trabalhadoras da Educação através do seu Sindicato, o CPERS, o que lamentavelmente não tem acontecido.
BdFRS - A pandemia tem impactado o mundo, fez com que repensássemos maneiras de atuar. Fala-se que um novo mundo deverá vir pós-pandemia. Tu crês nessa mudança? Que mundo seria ou deveria ser esse?
Sofia - Estamos num tempo extraordinário mesmo, como nunca nessa geração e a de nossos pais, tivemos todos, pobres e ricos, a necessidade de adotar condutas comuns e estarmos diante de uma ameaça à vida que paralisa a economia e o mundo todo, intriga pesquisadores, mostra as graves ameaças à vida humana e que fogem do nosso controle.
No entanto, a luta de classes, as divergentes visões de mundo seguem em embate e se manifestando. Os que pensam a economia diante da vida, não temem ampliar as mortes defendendo o fim do isolamento e impondo aos trabalhadores a exposição à contaminação e à morte. Eu penso que quatro grandes conceitos podem sair fortalecidos dessa pandemia, se conseguirmos organizar os movimentos sociais e de resistência para disputá-los desde já: a necessidade da universalidade da saúde gratuita e de qualidade para todos e todas; a viabilidade e importância da renda mínima a ser garantida a toda a pessoa humana que não tenha acesso ao alimento; o valor extraordinário das escolas, desse espaço de encontro e aprendizagem interativo e socializador e do papel imprescindível dos professores e das professoras e a solidariedade que deve amalgamar a vida em sociedade.
BdFRS - Estamos vivendo um contexto conservador onde se demoniza discussão de gênero, violência e machismo. Ao pensarmos no campo da educação, qual a importância dessa discussão e por que é tão difícil fazermos esse debate?
Sofia - A disputa de que educação é processo de constituição do ser humano é a mesma de qual ser humano que queremos construir. Derrotados nas ideias já consagradas na Constituição de 1988 e no processo de redemocratização, onde garantimos a democracia, a liberdade, a diversidade como fundamentos da República federativa do Brasil, as elites econômicas e conservadoras, que precisam para manter a sociedade desigual, reproduzir os fundamentos do capitalismo, ataca a escola buscando esvaziá-la dos debates que constroem sujeitos democráticos. Para isso tentam censurar a atuação dos professores, defendendo que a educação de valores é com a família e na escola é só conteúdo, informação, conhecimento “neutro” como se isso fosse possível.
BdFRS - Como garantir a democratização da educação e da cultura?
Sofia - Esse é o debate político que a sociedade brasileira faz constantemente e expressa nas eleições, de dois em dois anos: o acesso aos direitos sociais, humanos e políticos versus a acumulação de riquezas e privilégios. Esse debate é muitas vezes dissimulado pelo personalismo e distorcido pelo poder econômico que disputa eleição sempre. Vejam o episódio das Fake News que escancara a última versão dessa influência dos empresários no voto dos brasileiros: um sindicato do crime que produziu e impulsionou mentiras, difamações, incitação ao ódio, de modo a destruir adversários políticos.
Diante de tão escancarada manipulação, é alvo de CPI e de Inquérito policial, e mostra o tamanho dos interesses que estão em jogo! Para avançarmos na democratização da educação e da cultura, portanto, precisamos avançar na consciência de classes, melhorar os instrumentos de luta das classes trabalhadoras: sindicatos, associações, cooperativas, partidos políticos, torná-los mais acessíveis, democráticos e inseridos nas lutas cotidianas do povo marginalizado, oprimido e destituído de seu valor como trabalhador, com a compreensão estratégica de que ou somos anticapitalistas ou não estamos ao lado deles!
Edição: Katia Marko