O fascismo, que ganhou amplo terreno em nosso país, é um exemplo de manifestação da peste emocional
Temos acompanhado no Brasil o crescimento alarmante do ódio e da irracionalidade na política. Os impulsos perversos e destrutivos estão no comando das ações dos indivíduos que foram eleitos para ocupar os mais altos cargos administrativos do país e de seus apoiadores.
A imagem do povo brasileiro como caloroso, receptivo e cordial está sendo fortemente abalada para revelar, em um estrato mais profundo de nossa subjetividade, uma conduta fascista, extremamente egoísta, fútil, conservadora e homicida. Se Wilhelm Reich estivesse vivo para testemunhar este acontecimento, ele provavelmente diria que estamos vivendo aqui um surto de Peste Emocional.
Ao longo de sua vida, Reich esteve preocupado em entender os impulsos do “animal humano”, seu desenvolvimento e sua distorção, procurando respostas que lhe permitissem, entre outras coisas, contextualizar a destrutividade e as ações antissociais em meio à nossa existência biológica. Com uma capacidade de observação aguçada e vivendo em Berlim quando Hitler subiu ao poder, ele escreveu o livro “Psicologia de Massas do Fascismo”, em que conseguiu explicar, do ponto de vista do encouraçamento e da distorção dos impulsos vitais, esse fenômeno social tão preocupante.
Ao longo de sua obra, Reich afirmou que todos os impulsos destrutivos dos seres humanos são fruto da frustração do amor, da sexualidade e da expressividade emocional naturais. Isso quer dizer que nós não somos orgânica e originalmente perversos, mesquinhos, egoístas, criminosos e invejosos, mas que nos tornamos assim na medida em que nossa espontaneidade biológica é solapada para que possamos nos adaptar às regras e à moral de civilizações patriarcais e autoritárias.
Desta forma, o homem neurótico desenvolve uma estrutura biopsicológica dividida em três camadas. Naquela mais superficial se encontra o que Reich chamou “verniz social”: a falsa polidez, a “educação”, a moralidade artificial e a generosidade forçada. Essa fina camada, governada pelo narcisismo, é o coroamento do processo de ajustamento social e tem a função, para o indivíduo, de proteger de seus próprios olhos e dos olhos dos outros a atuação em si mesmo de um estrato intermediário. Este último é formado pelos impulsos de ódio destrutivo, pela frustração, sensação de impotência, entre outros.
Sua existência nos indivíduos está relacionada à impossibilidade de manifestação natural do que Reich chamou de núcleo biológico: o cerne amoroso, genuinamente moral, sensato e compassivo, governado pela potência de vida e pela capacidade de experimentar o prazer e a verdadeira conexão com os outros seres humanos, com a natureza e o universo.
O fascismo, que ganhou terreno significativo em nosso país, é um exemplo de manifestação da peste emocional. Esta última acontece quando a camada intermediária de impulsos antissociais, que geralmente fica muito bem escondida no funcionamento do animal humano neurótico, irrompe e passa a governar abertamente seu comportamento.
Para Reich, a peste emocional – e consequentemente o fascismo – é uma forma de biopatia cuja particularidade é se manifestar socialmente. Biopatia é a classe de doenças que acometem o organismo vivo pela distorção de suas funções biológicas naturais.
A base energética que sustenta a peste emocional é a angústia genital, ou seja, a impossibilidade de se entregar à descarga prazerosa e satisfatória da energia biológica, principalmente no ato sexual. Desta forma, a energia que não pode ser descarregada na entrega orgástica e fica represada no organismo na forma de couraças é o manancial inesgotável de onde o comportamento movido pela peste emocional retira a sua força.
Organismos insatisfeitos e amorosamente frustrados, quando acometidos de peste emocional, tendem a desejar, temer, invejar e, por fim, odiar e querer destruir tudo aquilo que ameaça sua paralisia. Assim, esta perigosa forma biopática se caracteriza pelo impulso de destruir o vivo, pelo ódio contra tudo o que contrasta com o estado contraído e impotente de seu organismo encouraçado.
Apesar dos discursos que ventilam as finalidades declaradas de “salvar a nação”, “deter o mal”, “defender os costumes”, “libertar o povo”, “fazer justiça”, “educar”, “ensinar aquilo que é certo”, “combater a corrupção”, a peste emocional apenas se interessa por destruir. Ela se caracteriza por possuir uma justificativa “nobre” para ações odientas e vis, mesmo que a vileza e o ódio estejam dissimulados – o que definitivamente não é o caso em nosso país, cujos atuais ministros não sentem o menor constrangimento em declarar abertamente seu ódio aos indígenas, à sexualidade, aos quilombolas, aos homossexuais, ao meio ambiente ao mesmo tempo em que, paradoxalmente, afirmam ser esse ódio uma forma de amor à pátria e à liberdade…
Qualquer exaltação de prazer e felicidade, movimentos progressistas culturais ou políticos, espontaneidade, ou mesmo comportamentos diferentes são apreendidos por organismos em estado de peste emocional como afrontas. Esses organismos combatem qualquer expressão que contradiga ou se diferencie da maneira como eles concebem a realidade e acreditam que a vida deve ser.
Assim, qualquer manifestação que, do ponto de vista do indivíduo doente de peste emocional, ameace o conjunto de crenças e valores que sustenta sua cosmovisão – ancorada em seu organismo gravemente encouraçado – pode ser objeto de destruição. Esses organismos não regulam apenas o seu comportamento, mas, principalmente, precisam compulsivamente regular e rotular o comportamento de outros grupos.
A peste emocional é a tentativa mais ou menos organizada, de maior ou menor escala social, que se volta contra alvos a serem destruídos, mobilizando energia corporal, trabalho humano e/ou recursos financeiros para promover tal aniquilação.
Qualquer um de nós, neuróticos, está suscetível de ser acometido pela peste emocional. Pensar que “doentes e fascistas são os outros” já é uma forma de auto-engano que abre espaço para a peste, porque pode nos levar a pensar que somos melhores, mais puros, e que temos por isso o direito de intervir no comportamento dos outros.
Reich descobriu que a natureza não odeia gratuitamente, a natureza não destrói nada por sadismo, ganância, inveja ou fantasias perversas. Somente organismos cuja natureza está severamente distorcida pela supressão das funções sexuais naturais de amor, prazer, doação e entrega podem agir dessa forma.
Descrição da foto: A imagem mostra um cenário ao ar livre onde, em primeiro plano, podemos ver um homem de meia idade todo pintado de verde e amarelo fazendo um sinal de arma com a mão, apontada para a câmera. Ao fundo, fora de foco, estão algumas pessoas também vestidas de verde amarelo em uma manifestação que apoia o governo Bolsonaro.
Edição: Katia Marko