Dois ex-ministros da Defesa avisam que a presença de militares no governo Bolsonaro – a maioria em postos civis – será ruim para o país e nociva para as Forças Armadas. “Quanto mais os militares se metem na política mais se afastam da sua missão que é a defesa nacional”, critica Aldo Rebelo, que esteve no ministério no segundo mandato de Dilma Rousseff. “A função deles é a defesa da pátria contra quem quer que seja. Não é política”, concorda Celso Amorim, que também ocupou a pasta, mas no primeiro governo Dilma. Os dois participaram de live sobre o papel dos militares na política promovida pelo Comitê em Defesa da Democracia e do Estado Democrático de Direito, coordenado pelo cientista político Benedito Tadeu César e a advogada Mari Peruso, na noite de sexta-feira (22).
Aldo Rebelo minimiza a declaração do general Alberto Heleno, do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), que ameaçou o Supremo Tribunal Federal em nota dizendo ser “inacreditável”, por trazer “consequências imprevisíveis”, a entrega do celular de Jair Bolsonaro. Foi a pergunta feita pelo ministro Celso de Mello à Procuradoria Geral da República (PGR).
“É uma bravata”
“A nota é mais para cavar um parecer do PGR do que outra coisa qualquer”, entende. “O que ele (Heleno) tem a ver com isso? Não é ministro da Justiça, não é o advogado geral da União... É uma bravata”, interpreta.
“Não posso avaliar o Itamaraty pelo Ernesto Araújo. Não seria justo com o Itamaraty. E não posso avaliar as Forças Armadas pelo general Heleno”, continua. “Os militares não estão no governo. Os amigos do Bolsonaro é que estão”, argumenta.
“Quantidade vira qualidade”
Porém, como há milhares de militares no governo, Amorim cita o filósofo alemão Georg Hegel para advertir que “quantidade pode se transformar em qualidade”. Também ex-chanceler nos períodos Itamar Franco e Lula, ele diz que os generais se aproximaram de Bolsonaro porque acham que sabem administrar. “Eles entendem de logística sim. Ajudaram muito nas Olimpíadas, na organização da visita do Papa”, exemplifica. “E eles também acreditaram na chamada Nova Política”, acrescenta, reparando que o termo evoca outros que também prometeram mudanças como o Estado Novo, no Brasil, e a Nova Ordem, movimento que pretendeu ressuscitar o fascismo na Itália dos anos 1950.
“Foi o mesmo com Getúlio”
Amorim confessa não entender algumas posições atuais dos quartéis. Nota que, nos seus tempos na Defesa, jamais percebeu manifestações de anti-esquerdismo ou anticomunismo na oficialidade, nem qualquer defesa da necessidade de se alinhar com os Estados Unidos contra a China.
“Era mais o pessoal da reserva que guardava certo ressentimento, mais em relação à Comissão Nacional da Verdade, que, aliás, fez um trabalho ótimo”, observa. “Eles são sensíveis à pregação anticomunista e ao tema da corrupção. Não há novidade nisso. Foi o mesmo que aconteceu com o Getúlio (Vargas)”. Mas relembra que, em 2013, quando aconteceu a devolução simbólica pelo Congresso do mandato ao presidente João Goulart deposto pelos generais em 1964, “eles estavam lá, presentes na cerimônia”.
“Imaginem se fosse a Dilma...”
Amorim ficou mais frustrado com o silêncio das Forças Armadas diante de medidas lesivas à soberania e à autonomia nacional, como a entrega da Embraer e o recuo no projeto do submarino nuclear incumbido de proteger o Pré-Sal. “Eles (os comandantes) não disseram nada. Fiquei decepcionado.”
Rebelo teve outra decepção: “E aquele vídeo (da reunião do dia 22/04)? São cenas deploráveis. Que nível tem esse ministério... E é esse governo que ameaça a legalidade? Consequências imprevisíveis? Podem ser imprevisíveis para ele (Heleno) também...”, julga. “Imaginem se fosse a Dilma tomando essa posição quando foi impedida (pelo ministro Gilmar Mendes, do STF) de nomear o Lula? Ou se tivesse mandado prender o Moro quando ele vazou uma escuta ilegal cometendo crime contra a Segurança Nacional?” indaga.
“Como se fosse um triunvirato”
Também tratando do ministério de Bolsonaro, Amorim expõe sua estranheza. “Não vejo como ter um militar em função política como a Casa Civil. Ali no vídeo a gente vê o Braga Neto, o Bolsonaro e o Mourão. É como se fosse um triunvirato...”, ironiza.
“Hoje tem mais militares no governo do que no regime militar É um absurdo. É ruim até pra eles.” E explica: “O que é colocar um militar (o general Eduardo Pazuello) como ministro da Saúde no meio de uma crise sanitária? Ele só sabe de logística. Não sabe de ciência, de medicina, de Saúde pública... O que ele vai dizer numa reunião da Organização Mundial de Saúde? Nada. Não estou falando mal dele, mas ele não sabe nada”, espanta-se.
“Ele não é controlável”
O ex-chanceler percebe uma ligação “mais orgânica” dos militares a partir da chegada do general Braga Neto à Casa Civil. “Eles vieram com a intenção de moderar Bolsonaro, o que se desfez na crise do coronavírus. Não deu. Ele não é controlável”, opina. “Agora, se envolveram demais. A situação é difícil.”
Rebelo não acredita que os militares entrem numa aventura “apoiando uma ilegalidade”. Mas teme o comportamento de Bolsonaro. Para ele, o presidente faz mal ao comparecer a uma manifestação diante de um quartel para desafiar os dois princípios básicos das Forças Armadas, que são a hierarquia e a disciplina. “Amanhã ou depois um tenente resolve seguir o exemplo e desprezar a hierarquia e a disciplina...”, adverte.
“O alvo é a política”
Para o ex-ministro e deputado há outro temor: o poder das corporações que se constituem longe do sufrágio popular e fazem política sem voto. “O Ministério Público Federal nunca esteve à altura da sua missão. Sempre foi arrogante. Seu empoderamento (pela Constituição de 1988) foi um erro”, critica. E prossegue: “A Polícia Federal obteve sua autonomia sob os governos Lula e Dilma. No entanto, delegados da ativa da PF faziam campanhas nas redes sociais contra ambos. Imaginem se algo assim aconteceria nos Estados Unidos?” questiona.
Numa digressão, Rebelo argumenta que a política foi tomada aos deuses pelos homens. “Antes, os gregos iam consultar os oráculos para saber o que fazer”, pondera, observando que a política passou a ser a maneira dos homens decidirem os rumos da nação.
Constata que o avanço dessas corporações sobre a política cresceu desde 2016, ano do golpe parlamentar contra Dilma. “Eu dizia pro pessoal do PSDB: vocês acham que o alvo disso aí (a perseguição policial, do MPF e do Judiciário) é a Dilma, o Lula e o PT? Não é. O alvo é a política como mediadora do destino humano.”
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Edição: Katia Marko