A grande questão é identificar quem apertou o gatilho dos valores de quem apertou o gatilho
"Meu coração sangra pela família do menino João Pedro!
Todo dia a favela chora de alguma forma! Todo dia o povo
preto sofre de alguma forma! Todo dia nos matam um pouco de
alguma forma! Chega de genocídio! Chega!"
Anielle Franco, irmã da Marielle Franco, assassinada em 14 de março de 2018 (1).
O brutal assassinato do jovem adolescente João Pedro, por rajadas de balas de policiais na cidade de São Gonçalo (RJ), neste 18 de maio de 2020, chocou a todos no Brasil. No dia seguinte, 19, data do aparecimento do corpo do menino, o Brasil atingiu 1.179 mortos pelo coronavírus em 24 horas.
A morte de João Pedro é um crime objetivo, material, concreto e tipificado em lei. Não há dúvida que lhe foi tirada a vida, contra sua vontade, de forma violenta e de maneira ilegal. A definição do autor do crime é também uma determinação objetiva. Será identificado e responsabilizado pelo devido processo legal, seja um único indivíduo ou mais de um.
Sabemos que há um ou mais criminosos que apertaram o gatilho da arma que matou João Pedro. A grande questão é identificar quem apertou o gatilho dos valores, da ideologia e da moral de quem apertou o gatilho. Quem apertou o gatilho de quem apertou o gatilho?
As constantes e repetidas imagens do Wilson Witzel, governador do Estado do Rio de Janeiro, estado onde ocorreu o crime e que abriga e emprega os autores, com armas pesadas, fuzis, metralhadoras, comemorando mortes são um indicativo sobre quem disparou o hiper gatilho moral que permitiu as condições para o assassinato.
O conteúdo de ódio e de construção do inimigo da política de Witzel soma-se ao conteúdo da política, igualmente, de ódio e de construção do inimigo de Bolsonaro e de tantos outros que emergiram agressivamente na arena política do Brasil, para surpresa de muitos. Mas, sinceramente, alguém acha plausível pensar que, já longas e sistemáticas, condutas de apologia à violência, à tortura e à morte levadas a cabo por eleitos, por influenciadores de redes sociais, por apresentadores de televisão e, até, por líderes religiosos enfim, não repercutiriam em solidificação e reverberação de uma espécie de cultura de guerra, de ódio ao inimigo?
No Brasil, processa-se um curioso, porém não novo, movimento de reposicionamento político, baseado na estratégia de assumir as responsabilidades por apenas parcela dos erros cometidos e justificar suas intenções, com uma certa retórica da meia culpa.
Trata-se de estabelecer uma redução de responsabilidade. Está assentado em reconhecer um erro, mas reafirmar a legitimidade de sua causa. Um curioso processo de uma sociedade, em especial sua elite econômica e sua camada média burocrática, que já repete tal conduta sistematicamente. Afinal, esta elite econômica, que se expressa em uma fração dirigente da política brasileira, foi capaz de produzir uma transição de um regime autoritário para um regime democrático, como o ocorrido no Brasil com a transição de 1984, sem que se definissem, objetivamente e completamente, os erros do regime anterior, seus crimes e seus culpados. Estabeleceu um processo que pareceu construir uma narrativa de naturalidade e, inclusive, de continuidade entre a ditadura e a democracia. Afinal, a retórica fundante da ditadura de 1964 foi a “vontade da sociedade e a preservação dos valores da sociedade brasileira”. A transição de um regime para outro, como a vigência do sistema democrático da Constituição de 88, se deu assim: preservando seus protagonistas que afinal só ‘tiveram meia culpa”, a culpa dos exageros da ditadura, pois no fundamental, o anticomunismo, o patriotismo, a preservação da família e da propriedade, estavam certos.
No último período, tem se multiplicado movimentos de distanciamento político em relação a Bolsonaro por parte de fundamentais apoiadores. Um dos mais explícitos tem sido Witzel. Seu esforço para se descolar de Bolsonaro é mais um capítulo desta, verdadeira, ética das classes dominantes. Um ética autoindulgente, autotolerante. Em seu paradigmático trabalho “A ética protestante e o espírito do capitalismo”, Max Webber estabelece o conceito de espírito de uma sociedade. Pois bem, acrescento eu, o espírito de um sociedade é o conjunto ético-normativo de sua própria classe dominante. À esse conjunto ético-normativo, é apensada a ideia da construção narrativa, ou seja, o esforço justificativo para a defesa dos valores dominantes.
A história do Brasil nos permite ver uma elite que se utiliza de um esforço justificador, a fim de construir seu espírito e o reconhecimento sistemático do ‘meio erro”. Frente ao inominável, ao absurdo, ao que saiu dos planos, assume uma prudente posição de distanciamento do exagero, contudo preservando a legitimidade dos motivos que lhe deram causa. A eventual autocrítica é sempre justificada e minimizada por razões transcendentes originais, nas boas intenções subjacentes que estavam na base daquele erro. Constrói-se uma narrativa que condena o ato mas nunca seu autor.
Se a transição da ditadura para a democracia foi dominada por este espírito das classes dominantes, hegemônicas notoriamente, o mesmo processo se identifica agora. Toma corpo a narrativa, em setores esclarecidos das classes dominantes, que Bolsonaro foi um erro, porém um erro compreensível em função do acerto original de combater o Lulismo e as políticas exageradamente keynesianas (sic). Ou seja, da necessidade de preservar e auto defender os valores, a hierarquia e a dominação.
A inquisição, a escravidão, as guerras, os campos de concentração, a segregação, o colonialismo, as ditaduras, as invasões, em geral, são justificadas por esse mecanismo da meia culpa. Melhor admiti-la do que perder o poder.
A partir da “fundação” do mundo atual após a Segunda Guerra Mundial, se organizou uma grande explicação nos termos dessa meia culpa. Esquerda e direita seriam primos-irmãos, duas faces da mesma moeda, expressões contraditórias do mesmo fenômeno e do mesmo perigo ao mundo moderno: o totalitarismo. Esta operação ideológica e justificadora dá a explicação política necessária para, em defesa do centro e da moderação, virtude apreciada pelos de cima, do regime liberal democrático apoiar-se ditaduras e ditadores e a seguir, quando obsoletos, movimentar-se para o campo da crítica sem identificar as causas fundamentais da ditadura e dos ditadores.
Em torno deste centro, se busca construir uma narrativa que preserva as razões que levaram ao episódio da eleição de Jair Bolsonaro mas refuta as suas consequências. São inúmeras as expressões deste espírito. Além de Witzel, também Dória, Moro e a Rede Globo de Comunicação são expressões da retórica de meia culpa. Uma operação que seria difícil em uma sociedade que vivesse em uma situação de impasse ou equilíbrio hegemônico ou com regras e cultura democráticas sólidas, mas não em uma sociedade tão hierarquizada e com valores não democráticos como a brasileira. O peso dos recursos financeiros, a força do oligopólio privado das comunicações e a dominação conservadora das instituições estatais, do parlamento, do governo e da justiça, tornam essa operação factível.
Bolsonaro e os assassinos de João Pedro, mais cedo ou mais tarde, serão condenados aos seus justos lugares na história, mas os autores intelectuais desses crimes, farão um arremedo de autocrítica, assumirão uma meia culpa, se explicarão sobre suas boas intenções, assumirão que foi meio erro, e portanto meio acerto, e continuarão a fazer, com as mãos, arminhas, ou cruzes, ou chibatas, ou fake news e a produzir novos candidatos.
1 - https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/05/19/morte-do-menino-joao-pedro-durante-acao-policial-causa-comocao-na-web.ghtml
Edição: Marcelo Ferreira