A mercantilização de tudo, até mesmo da vida, faz parte da lógica dos defensores do Estado Mínimo
E se não houvesse mais a Saúde pública? E se não tivéssemos mais o SUS? E se todos serviços de Saúde fossem privados? E se o Estado já fosse mínimo?
Afinal, era esse o projeto que estava em curso antes da chegada da covid-19 e não há nenhuma garantia de que não continue a ser implementado depois da pandemia. Quantas vezes ouvimos representantes do governo dizerem que tudo será privatizado? O ministro da Economia chegou a afirmar, mais de uma vez, que o Brasil estava à venda. Em uma frase emblemática, proferida na reunião ministerial de 22 de abril, cujo conteúdo da gravação tem sido divulgado, ele se refere ao Banco do Brasil de forma depreciativa quando propõe vender logo a “p** do Banco do Brasil”, deixando clara a irrelevância que o governo atribui ao patrimônio público. E vejam que ele estava falando de uma instituição pública que atingiu, em 2019, o lucro recorde de R$ 17,8 bilhões, 32,1% a mais do que em 2018.
Mesmo agora, durante a pandemia, o governo continua prometendo o retorno e aprofundamento das políticas de austeridade fiscal e de privatizações já no ano que vem. A Secretaria Especial de Fazenda, do Ministério da Economia, apresentou recentemente o projeto de LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias), para 2021, tendo, como premissas, a manutenção da austeridade fiscal e do teto dos gastos, previsto na Emenda Constitucional 95/2016. O secretário do Tesouro Nacional declarou que o governo deverá acelerar a agenda de concessões e privatizações depois do fim da pandemia, como forma de obter fontes extraordinárias de receitas. Interessante observar que não há nenhuma linha na previsão orçamentária do governo que aponte no sentido da ampliação da tributação sobre os mais ricos, embora existam inúmeros estudos que comprovam que a tributação das fortunas e dos afortunados poderia promover uma arrecadação de mais de R$ 270 bilhões ao ano.
Para o governo, só existe uma única saída: reduzir o Estado, o que significa manter o congelamento e o corte dos gastos públicos, reduzir salários dos servidores públicos e privatizar o patrimônio e os serviços públicos, sem levar em conta que a gravidade da crise sanitária, que estamos vivendo hoje, que já acumula mais de 20 mil mortes, decorre da perda de recursos que o sistema de Saúde pública vem sofrendo desde o final do 2016, da sua omissão do governo na garantia de renda para que todos possam cumprir as regras do isolamento social e da sua insistência na interrupção das medidas de prevenção, levando milhares de pessoas a se contaminarem.
A dificuldade para enfrentar a crise sanitária e também a crise econômica está na falta de Estado e não no seu excesso. Como ensina o professor Pedro Rossi, não há restrições financeiras para o gasto público, e isso pode ser comprovado nas práticas internacionais. Portanto, a falta de Estado é uma opção de natureza ideológica e política. A ampliação da capacidade de atendimento do SUS e a garantia de renda aos mais necessitados são medidas possíveis e imprescindíveis neste momento, tanto para proteger vidas como para manter a atividade econômica funcionando. Além disso, uma maior tributação sobre as altas rendas e as grandes fortunas, bem como sobre setores altamente lucrativos, como propõe o manifesto “Tributar os Ricos para enfrentar a Crise”, são medidas absolutamente necessárias para reduzir as desigualdades e retomar a atividade econômica.
Com a pandemia, até mesmo ferrenhos defensores do mercado admitem a importância do fortalecimento do Estado, de suas instituições e de sua estrutura de proteção social, como, por exemplo, o primeiro-ministro do Reino Unido, Boris Johnson, que, depois de ter sido contaminado e ter superado a covid-19, reconheceu publicamente a excelência do serviço público de saúde do seu país. Mas aqui, o governo parece ainda não estar convencido disso.
Em situações extremas, como esta que estamos vivendo, afloram os conflitos de interesses, deixando evidente para quem é o Estado. Para salvar vidas é preciso interromper o trabalho e as atividades normais. Com isso, reduz-se a geração de lucros. O interesse em salvar vidas se contrapõe, portanto, com o interesse daqueles que só querem preservar seus lucros.
Quando o governo insiste, de forma irresponsável, na suspensão das medidas de isolamento físico, contrariando as recomendações dos especialistas, não o faz por não acreditar na ciência, mas sim porque está, claramente, a serviço da priorização dos lucros empresariais, ainda que isso possa custar uma mortandade sem igual no mundo, ou seja, o governo escolheu defender um dos lados em conflito. Mas, as empresas que fecham podem ser recuperadas, vidas perdidas, não. E não é por acaso, que em aproximadamente 90 dias de crise sanitária, já houve duas trocas de ministros da Saúde, tendo os anteriores sido exonerados simplesmente por discordarem das diretrizes do presidente da República, que prefere salvar lucros dos empresários a salvar as vidas. O governo coloca o Estado a serviço dos empresários, e é importante não confundir empresas e economia com empresários.
Mas voltemos ao tema central deste texto. Afinal, e se a saúde já tivesse sido totalmente privatizada? Como estaríamos agora? Nos EUA, onde prevalece a modalidade privada de saúde, estima-se que a covid-19 poderá levar milhões de famílias à falência. Lá, um dia de tratamento hospitalar pode custar cerca de U$ 4,3 mil. Ou seja, desde a realização de exame para diagnóstico, até a internação hospitalar intensiva, tudo depende da capacidade individual de pagamento. Obviamente, as chances de sobreviver ao vírus são muito maiores para quem tem dinheiro ou patrimônio que possa hipotecar.
Pacientes graves da covid-19 necessitam, em média, 18 dias de internação em UTI e, no Brasil, no sistema público de Saúde, o custo diário estimado é de R$ 1,8 mil, o que totalizaria cerca de R$ 33 mil, somente com leito de UTI. Se não houvesse o SUS, quantas pessoas, no Brasil, teriam condições de se tratar? Segundo o IBGE, em 2018, a metade da população brasileira (104 milhões de pessoas) viviam com apenas R$ 413 por mês e 13,5 milhões de pessoas viviam com menos de R$ 145 por mês. Para estas pessoas, como seria possível enfrentar a pandemia sem o SUS?
Sem o atendimento do sistema público de Saúde, só sobreviveriam aqueles que pudessem pagar pelo tratamento. A mercantilização de tudo, até mesmo da vida, faz parte da lógica dos defensores do Estado Mínimo. Quem tiver condições adquire mais saúde, mais educação, mais segurança, etc. Estado Mínimo é o mercado máximo e tem uma questão que se torna emblemática, neste momento: até que ponto podemos admitir que a saúde possa ser privada? Podemos transpor esta questão também para a educação, que, na condição de mercadoria, certamente perpetuaria a imobilidade social, que já é muito elevada no Brasil. Quem tiver mais dinheiro, pode estudar e terá maiores oportunidades, quem não tem, que fique onde está. O ex-ministro da Educação, do atual governo, já havia dito que as Universidades deveriam ser reservadas à elite intelectual, que, para um bom entendedor, significa que as vagas devem ser destinadas somente àqueles que têm condições econômicas para se prepararem melhor.
A discussão sobre o modelo de Estado, portanto, passa também pela definição do que pode e o que não pode ser mercantilizado. Se a saúde, a assistência, a previdência, a educação, a alimentação, o acesso à água e a segurança são direitos e são inalienáveis, então somente um Estado de Bem-estar seria capaz de garantir vida digna para todos.
Este é, sem dúvida, um momento muito trágico da nossa história, que exige, além de medidas emergenciais com vistas a ampliação da rede de proteção social, uma profunda reflexão sobre como vamos sair dessa crise. A pandemia vai passar e vai nos deixar um enorme passivo social e econômico.
Vamos aprofundar o processo de minimização do Estado, que estava em curso, ou vamos retomar a construção, interditada, do nosso Estado de Bem-estar, como determina a Constituição Federal de 1988?
Por qualquer ângulo que se analise a conjuntura, as propostas passam sempre pelo fortalecimento do Estado. Nunca se falou tanto em tributar os ricos, em ampliar a base monetária e em aumentar o endividamento público, assuntos que eram considerados tabus, até pouco tempo atrás, e que ocupam agora as pautas políticas e econômicas do País. Mas o que parece ser consenso num momento de tragédia humanitária, como este, pode, passada a crise, ser rapidamente suplantando pelos interesses daqueles que sempre viram na redução do Estado um espaço valioso para maximizar seus ganhos.
Enfim, a realidade e os acontecimentos de hoje nos ajudam a refletir sobre o que poderá acontecer no futuro. E se não houver mais Saúde pública? E se o SUS deixar de existir? E se todos os serviços de saúde forem privados? E se o Estado for mínimo?
Edição: Katia Marko