Rio Grande do Sul

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Artigo | O caos na crise

A incapacidade neoliberal de dar respostas de humanidade no contexto do Brasil em 2020

Porto Alegre | BdF RS |
"Queremos esperançar junto com o povo que se organiza e luta, que planta, colhe e que faz circular centenas de toneladas de alimentos" - Divulgação

Socializamos algumas análises que tiveram início com a aprovação da Renda Emergencial, mas que foi se movimentando pelos dias, semanas, meses e anos que antecederam a situação atual que nos encontramos. Chegamos a essas reflexões, tentando compreender como funcionaria a Renda Básica, no intuito de que essa renda chegue o quanto antes nas famílias que precisam. Ou seja, se dão a partir da vida concreta, da vida real de homens e mulheres que alimentam esse Brasil. Não estamos falando só de quem planta, estamos falando de toda a classe trabalhadora que só possui a própria força de trabalho para o seu sustento e de sua família. É através dessa força de trabalho que se gera toda a mais valia que enche os cofres e bolsos por esse mundo a fora.

Pois bem, primeiramente, frente a necessidade da quarentena foi possível, finalmente, concretizar a Renda Básica, ainda que por tempo limitado, mas definitivamente necessária e que há muitos anos vinha sendo pautada pela esquerda brasileira. Com a reforma trabalhista, dezenas de milhares foram jogados na informalidade, sem leis trabalhistas que resguardem seu descanso, suas férias ou sua saúde. Trabalhadores e trabalhadoras que não têm poupança ou dinheiro guardado, não há “reservas” de segurança e que a única opção nesses tempos, em que sair de casa é arriscar a vida, se dá pela renda emergencial, por não poder trabalhar ou pela diminuição abrupta do “movimento”.

Após a aprovação na Câmara e no Senado, o coro de #pagabolsonaro foi necessário, aprendemos ao longo da história que a pressa se dá para “ajudar” os bancos privados (voltaremos a falar nesse assunto), o capital financeiro e aqueles que vivem de rendas. Esse governo tem demonstrado, diuturnamente, ter um só objetivo: acabar com os pobres do Brasil! Não se enganem, há duas formas de acabar com a pobreza no país. Uma delas, e a mais rápida, nos perdoem a franqueza, é fazendo com que os pobres morram (guardem essa opção). A outra forma, que passa muito longe da pauta bolsonarista, é a distribuição da riqueza.

Quem tem fome, tem pressa

Sim, é verdade, e quanto mais pressa e urgência, mais percebemos os obstáculos para acessar o dito auxílio. Baixar Aplicativo? Solicitar pela Internet? Agricultores e agricultoras familiares não se enquadram? Receber código via SMS no celular para continuar a solicitação? Parecem etapas simples se não estivéssemos num dos países mais desiguais do mundo e cuja desigualdade tem estruturas sólidas desde o Brasil colônia e que foi se agravando a cada engendramento com o sistema capitalista neoliberal.

Nesse sistema mundial, somos uma engrenagem importante para fazer essa roda girar, temos uma economia dependente que possibilitou o desenvolvimento das economias centrais[1], suas riquezas e pujanças e graças a força de trabalho da nossa classe trabalhadora, superexplorada, foi possível afrouxar a exploração sobre os trabalhadores e trabalhadoras dos países centrais, das “potências” mundiais. Bem, poderíamos seguir com essa prosa, mas queremos compreender a relação disso tudo com o Auxílio Emergencial’.

Logo que iniciou a pandemia, a proposta desse desgoverno para a Renda Básica foi de R$ 200,00. A esquerda aguerrida, que mantém um mínimo de dignidade da classe política desse país, se organizou e conseguiu aprovar esse valor de 600,00 que aí está. Outra proposta que se levantou, o próprio empresariado sugeriu, foi a de que nesse período de quarentena, se demitissem os trabalhadores e trabalhadoras e, assim, pudessem ter um mínimo de renda, acessada através do FGTS, seguro desemprego, etc. Mas esse governo do caos teve uma “contra-sugestão”, de apenas mandá-los para casa, sem salário. Veja só, que brilhante ideia, não? Lembram-se da primeira opção para acabar com a pobreza?

Agora juntemos as várias fichas ou fatos da história econômica e social desse país, que tirou do governo um partido de esquerda, que não mexeu nas correlações de forças estruturais dessa sociedade, entre milionários e miseráveis, antes que alguém peça uma autoanálise dos governos petistas, mas que vinha tentando acabar com a pobreza através da distribuição de renda, ainda não era de riqueza, talvez ainda chegássemos lá.

Nessa história do Brasil, onde se cola os cacos de uma democracia, burguesa[2], ocorrida de tempos em tempos, que sentiu o gosto e o cheiro de sangue de inocentes, lutadores e lutadoras tombaram pela mão de ditadores fascistas, que tinham um único propósito: fazer avançar a entrada de capital internacional no território brasileiro. Apropriar-se de território garante a posse de terra, de recursos naturais, de gentes, de consumo. Tudo isso sem a interferência do povo brasileiro. Por isso se precisa de uma ditadura.

Desde esses tempos, que queríamos que fossem remotos, mas que de tão próximos parece que estamos vivendo nele, se escancara o desejo de privatizar todas as empresas e recursos públicos. Tudo vira mercadoria e capitalizado para o privado nesse sistema. Os bancos públicos, depois das empresas de recursos naturais, são as que mais sofrem pressão para a privatização. Todavia, também são os bancos públicos que operacionalizam o repasse de dinheiro para as políticas públicas, Bolsa Família, FGTS, Minha Casa Minha Vida, FIES, PRONAF, entre outros, mas aqui queremos retornar ao Auxílio Emergencial de renda básica.

A fórmula das privatizações

Lembremos da fórmula para as privatizações ocorridas no Brasil, de primeiramente forçar o sucateamento, através da não contratação de pessoal, de não investimento, de sobrecarregar os serviços, de não recuperação do desgaste ocorrido com o tempo, entre tantas outras formas. Não estamos aqui para defender os bancos, mas para contribuir para o entendimento do caos que se instala, nesse momento de desespero e de pandemia. Para nós, a compreensão é necessária para que a ação seja fruto de uma práxis, ação planejada para superar as desigualdades, logo, uma reflexão que gere uma ação.

O Banco que está realizando a operacionalização do repasse da Renda Básica é a Caixa Econômica Federal. Banco que vem sendo duramente atacado com demissões de funcionários, sem contratação para compensar os que se aposentam, fechamento das agências, sendo que o último concurso público ocorreu em 2003, aberto na gestão Lula. Em tempos de pandemia como esse, todos os trabalhadores e trabalhadoras que precisam sair de casa estão se arriscando, inclusive os atendentes da CEF. O Sindicato dos Bancários também denuncia a demora na liberação de EPIs, máscara e álcool gel para auxiliar na proteção contra a covid-19.

O Sindicato dos Bancários chama atenção para o fato de que a Caixa Econômica Federal não tem controle total da Renda Básica. O cadastro é feito através de plataformas do governo, de políticas como o CadÚnico e que a Caixa faz o pagamento. Ocorre que nenhum dos telefones disponibilizados para consulta ou dúvidas funcionam, eles inexistem e as pessoas acabam indo onde são atendidas e onde vão receber o dinheiro, no caso, nas agências da Caixa, nos municípios que ainda têm agências. Ou lotando as lotéricas. As pessoas estão certas, quem tem fome, tem pressa!

Trazemos aqui um olhar sobre os trabalhadores e trabalhadoras, não sobre os banqueiros. Esses últimos têm quem os defendam, inclusive denunciamos que, em meio a maior pandemia desse país, está para ser aprovada a PEC 10/2020, emenda constitucional que quer liberar R$ 1,2 trilhão (um trilhão e duzentos bilhões de reais) como forma de “garantias” para suas operações, fraudulentas ou não, à fundo perdido ou resgatáveis, como um dispositivo que “legaliza a incorreta emissão de novos títulos para pagar juros”, conforme nos alerta a Auditoria Cidadã da Dívida.

Pandemia aprofunda desigualdade

Percebemos que ações tomadas no passado têm consequências na vida concreta da classe trabalhadora nos dias de hoje. Nessa desigualdade que se aprofunda com uma pandemia que causa mortes em números exponenciais, temos uma massa de pobres cujo tamanho era desconhecido por esse governo ou simplesmente ignorado. Lembram-se das formas de se acabar com a pobreza? Isso vai nos dando algumas respostas para as questões colocadas acima. A situação se agrava quando começamos a acompanhar os recebimentos. Baixar aplicativo? Solicitar pelo Caixa Tem? Aguardar código numérico (código que expira em 2 horas)? Ir até a agência bancária? Burocracias para complicar o acesso do povo à renda. Se a questão fosse descomplicar e agilizar o pagamento dessa renda, poderiam ter emitido cartões para saques e pagamentos no comércio.

É da feitura das reflexões dos movimentos sociais populares que a denúncia ande conjuntamente com o anúncio. Essa maneira de fazer e escrever aprendemos com o Mestre Paulo Freire que reforçou o que é de nossa prática: “pensar a partir de onde nossos pés pisam”. Sendo assim, essas reflexões trazem o caos que se encontra esse país, não como aqueles que são causados pela natureza e sem previsão, como as grandes catástrofes. A pandemia da covid-19 afeta diretamente a saúde, sim é uma doença e na data desses escritos já causaram a morte de mais de dez mil brasileiros e brasileiras, notificados. Mas chega no auge de uma crise estrutural do sistema capitalista.

Por isso, não o relacionamos diretamente como uma catástrofe da natureza, pois o Brasil teve tempo para se preparar, para diminuir os impactos sobre as vidas humanas. Porém, o projeto de morte, anti-campesinato, anti-povo falou mais alto. Não temos a ingenuidade de crer em desconhecimento desse governo quanto ao tamanho da miséria que ronda esse país e que se acirra em curto e médio prazos, com uma pandemia que chega na crise e no caso do Rio Grande do Sul, agravada pela seca e estiagem.

Poderíamos ficar por horas e páginas contextualizando a situação gravíssima que se encontra o povo brasileiro, mas todos e todas sabemos e sentimos o que se passa, e o que sentimos nos afeta, e o que nos afeta nos move, gera ação! Assim sendo propomos o fortalecimento dos bancos públicos, totalmente pertencentes ao Estado. Um Estado que olhe para o seu povo como sendo parte dele, a serviço do seu povo. Claro que esse forma não é o fim da história, esse Estado que queremos fará a transição para uma sociedade socialista, com o povo organizado e gerindo suas riquezas naturais e do seu trabalho. Uma sociedade sem discriminação de gênero, de raça, de credo, sem exploração e expropriação.

Queremos esperançar junto com o povo

Ainda para finalizar essas singelas reflexões e embora o caos esteja presente na nossa sociedade, anunciado no título, queremos esperançar junto com o povo que se organiza e luta, que planta, colhe e que faz circular centenas de toneladas de alimentos, roupas, material de higiene, quentinhas, local para se banhar e dormir. Mutirões contra a fome, pela dignidade e direitos de trabalhadores e trabalhadoras que nunca pararam de lutar, embora cotidianamente criminalizados pelas mídias hegemônicas. Um povo organizado que mostra o que é ser povo, que aponta para as prioridades desse momento e que enquanto classe trabalhadora organizada, existe, resiste, afirma que a vida vale mais que o lucro e que quem alimenta o Brasil, exige respeito.

Não há saída milagrosa dessa situação, tampouco em curto espaço de tempo. Situações estruturalmente engendradas carecem de tempo, inteligência, tática e sobretudo estratégia de luta! Construamos coletivamente e organizadamente a nossa estratégia de luta coletiva e popular. O campesinato não vai só nessa luta. O grito de ordem “quando o campo e cidade se unir a burguesia não vai resistir”, não são palavras e rimas soltas. Fala de uma missão, de uma tarefa, que acarreta em muitos desafios que tropeçam em egos individuais, no machismo e no patriarcado, na falta de estrutura para a comunicação e sobretudo na falta de recursos financeiros para a luta concreta e justamente por essas questões são desafios, não estão dados e precisam ser alcançados, coletivamente.

Ao fim e ao cabo, não queremos encerrar as questões aqui levantadas, tampouco “aguardar os acontecimentos” e sim “tentar interferir neles, fazendo política, tentando acelerar o grande motor da história” (Bambirra, 2013, pg. 27). Objetivamos que esse texto suscite novas reflexões, novos estudos e novas ações. Partimos da particularidade, da especificidade, do micro, de uma situação muito concreta que tem relação com as dificuldades de as famílias acessarem o Auxílio Emergencial, nesse momento de pandemia, por questões propositadamente colocadas por esse desgoverno, e fomos ao macro, à totalidade.

O inverso também poderia ocorrer, mas lembrem sempre do velhinho de barba branca, não é o papai noel, é do velho Marx. Seu método nos ensina a partir do concreto[3], do real, daquela questão específica que gera a problematização. A questão concreta tem sido comer, viver com dignidade, ter terra para trabalhar e isso dialoga diretamente com a miséria e a desigualdade gerada no conjunto do sistema capitalista mundial[4].  Nesse sentido, é relevante, ainda utilizando a imprescindível Bambirra (2013) “a compreensão do contexto nos quais eles surgem e se desenvolvem, os limites e contradições que engendram, e as possibilidades estruturais para a sua superação”.

Adelante companheiras e companheiros, temos muito trabalho pela frente!

Letícia Chimini é militante do Movimento dos Pequenos Agricultores; Assistente Social; Mestra em Desenvolvimento Regional; Doutoranda em Serviço Social/PUCRS.

Sandi Xavier é da Coordenação Nacional do Movimento dos Pequenos Agricultores, Coordenação Estadual do Coletivo de Juventude-RS, Técnica Agropecuária.

 

[1] Para aprofundamento dos estudos sobre o capitalismo na América Latina sugerimos o livro, “Subdesenvolvimento e revolução” de Ruy Mauro Marini, 2013. (MARINI, Ruy Mauro. Subdesenvolvimento e revolução. 5ª ed, Florianópolis: Insular, 2013).

[2] A classe burguesa tem um Estado burguês. Para aprofundamento na temática ler “O manifesto comunista” de Marx e Engels, 2011. (MARX, Karl [1818-1883]; ENGELS, Friedrich [1820-1895]. Manifesto Comunista. Manifest der Kommunistischen Partei, 1848. Marx e Engels. Tradução de Marcus Mazzari. Introdução de Ricardo Musse – São Paulo: Hedra, 2010. 114p.)

[3] Para compreensão do Método de Marx, propomos ir na origem de suas reflexões, daí o livro de sua autoria “Miséria da Filosofia”. O capítulo 2, A Metafísica da Economia Política, trata do método, sobretudo a sétima e última observação. (MARX, Karl. Miséria da Filosofia: resposta à Filosofia da Miséria, do Sr. Proudhon. Tradução e introdução de José Paulo Netto; São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1982).

[4] Sugerimos a leitura do livro “O capitalismo dependente latino-americano, de Vânia Bambirra. (Bambirra, Vânia. O capitalismo dependente latino-americano. 2ª ed, Insular, Florianópolis, 2013).

Edição: Katia Marko