Tendo como gancho a pergunta “Que país é esse?”, livre inspiração na música de Renato Russo, escrita em 1978, quando a ditadura dava os últimos respiros, a Rede Soberania e Brasil de Fato RS conversaram com Guilherme Boulos, do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) e ex-candidato à presidência da República pelo PSOL em 2018, sobre o contexto político e social do Brasil e do mundo por conta da pandemia causada pelo novo coronavírus. Entre os assuntos debatidos na manhã desta quinta-feira (14) estiveram a importância do Sistema Único de Saúde (SUS), o abismo entre as classes sociais no país, as novas formas de consumo que surgem em meio à pandemia, a comunicação dos setores populares e a urgência de combater Bolsonaro e seu governo que estimula a morte, o medo e o autoritarismo.
“A pandemia nos coloca numa encruzilhada”, afirma Boulos, destacando que essa tragédia humana que se abate sobre o Brasil e o mundo desnuda os efeitos perversos dos 40 anos de hegemonia neoliberal e de um modelo de desenvolvimento baseado em mercados que exploram a morte e a devastação do planeta. “Temos o aprendizado de uma onda solidária e da importância dos sistemas públicos de Saúde. Há dois ou três meses atrás, a gente defendia o SUS e era tratado como dinossauro. Quem diria que no Brasil de Paulo Guedes e Bolsonaro estaríamos discutindo uma renda básica, mesmo sendo de R$ 600,00”, destaca, afirmando que surge a possibilidade de pautar uma sociedade mais solidária “que não se baseia no cada um por si, mas sim no bem comum”.
Para ele, como é visto na experiência de diversos países, é fundamental repensar a importância do SUS e reverter as amarras que impedem os investimentos sociais no país, citando como exemplo a Emenda Constitucional 95, o Teto de Gastos, que somente em 2019 tirou R$ 20 bilhões da área da Saúde. “Virou quase um clichê que não vamos voltar ao mundo como era antes, que vamos ter um novo normal. Apesar de ser clichê, é uma verdade, não vamos voltar à realidade de janeiro, mas sim a uma realidade de crise econômica mundial muito mais profunda. Não sabemos o que vai ser, mas pode ser algo melhor, abriu essa janela”.
É preciso frear as saídas autoritárias
Ao mesmo tempo, avalia Boulos, a crise gera tentativas para o outro lado, de grupos que buscam saídas autoritárias. Por isso, é preciso que se faça um diálogo com a sociedade, destacando o aprendizado solidário e não o aprofundamento das políticas que trouxeram o país até onde está. “Quando a gente vê o Bolsonaro jogando com o desespero das pessoas, sabendo da crise econômica dramática que vamos enfrentar e apelando para o sentimento, desse caos podem sair medidas autoritárias”, afirma. Para ele, essas “forças sombrias” trabalham para que a saída da pandemia seja algo pior, no intuito de fechar o regime e jogar a conta. “O Guedes já disse que o auxílio e os investimentos realizados serão cobrados, que depois vamos ter que privatizar tudo e tirar ainda mais direitos”, critica.
O ex-presidenciável recorda que o bolsonarismo surge de uma forte crise política no país, de um sentimento de rechaço à política, de que ninguém presta, e que políticas sociais são privilégios, “tudo alimentado pela lava jato, por isso o casamento dele com Moro fez muito sentido naquele momento”. Aliado a isso, tem o sentimento de medo e insegurança no Brasil, relacionado à crise de segurança pública e um índice de homicídios tremendo: “quando você está com medo, é que nem bicho acuado, ele está morrendo de medo e te ataca. Medo e autoritarismo, embora sejam opostos, se relacionam. Quem está com medo encontra eco no discurso autoritário. O desempregado sem perspectiva fica vulnerável ao discurso da ordem, foi assim que o fascismo surgiu. O medo e desespero são sempre combustível para o fascismo e o Bolsonaro joga com essa lógica”.
Fora Bolsonaro
Boulos faz coro aos diversos setores da sociedade que avaliam que o atual presidente é um dos problemas mais graves para o país. “Bolsonaro já era desde o início um problema democrático. Ele é autoritário, nunca escondeu que é fã de torturadores, da ditadura militar, ele quer que volte a ditadura no Brasil. A pandemia trouxe outras dinâmicas e agora ele se tornou também um problema de saúde pública. Sua postura relativizando a morte, a irresponsabilidade de estimular pessoas a irem para as ruas sem proteção, a voltarem ao trabalho, ele está sendo responsável pelo aumento das mortes no Brasil”, critica. Aponta que a saída de Bolsonaro é urgente e precisa ser construída com o máximo de forças políticas, sociais, suprapartidárias, seja através de impeachment ou cassação de chapa.
Na sua avaliação, o presidente já não conta com o apoio que tinha no início do mandato. “Hoje tem metade do apoio do que quando assumiu, está em 30% e declinando”. O que ainda o sustenta e dá a impressão de forte apoio é o núcleo duro, “os mais fanáticos, ele fez com que essas pessoas virassem mobilizadas e ativas, criou uma milícia, gente que vai bater em enfermeiro que protesta em Brasília, gente que agride jornalista, que faz parte da milícia digital. Ele optou por radicalizar sua minoria, um caminho que gera essa impressão de que é imbatível, mas não é”.
Covid-19 reforça abismo social
No início da pandemia, circulou um discurso de que o novo coronavírus era democrático. Para Boulos, essa avaliação é vista com cautela. “Diziam que o magnata e os pequenos camponeses pegam o vírus. Mais ou menos. É evidente que pode pegar em todo mundo, mas também é evidente que é muito pior para quem não tem saneamento básico, acesso à água, quem não tem reservas para ficar em casa, que é importante para reduzir a curva de contágio”, destaca, lembrando que existem milhões de brasileiros e brasileiras que precisam sair de casa para trabalhar e colocar comida na mesa.
“Os que têm melhor condição econômica atravessam a pandemia e vivem a quarentena na tranquilidade. Para a maioria do povo brasileiro não basta dizer fica em casa. Aqui em São Paulo, a prefeitura diz para ficarem em casa, mas não dá alternativas para isso”. Para Boulos, é papel do poder público garantir essa condição. Para isso, é preciso mais investimentos, que o auxílio emergencial seja liberado aos muitos que foram rejeitados, opina, citando a experiência de outros países. “A França, por exemplo, suspendeu contas de água, luz e aluguel. E outros países fizeram medidas parecidas, inclusive mais pobres que Brasil como El Salvador, na América Central”.
Ainda ressaltando que o vírus é mais avassalador nas camadas mais pobres da sociedade, Boulos trouxe uma comparação de bairros paulistanos. “No bairro do Morumbi, um dos mais luxuosos de São Paulo, estão na casa dos 300 casos de corona, e morreram 9. Daí tem o bairro Brasilândia, com favelas, na Zona Norte, que tinha registrado uns cento e poucos casos sabe quantos morreram? 54! Aí está o caráter de classe. Quem tem dinheiro tem serviço privado de saúde com leitos e respiradores, quem vai no serviço público às vezes fica na fila esperando porque já saturou”, critica, destacando que foi requisitado junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) leitos privados para que haja fila única para os doentes pelo SUS.
Alimentação saudável e padrões de consumo
Boulos afirma que a pandemia mostrou que é possível viver com outro padrão de consumo. “As pessoas estão vivendo sem ir para os templos de consumo, consumindo menos. Se isso gera uma queda bruta no capitalismo, também pode trazer novos valores, outra relação das pessoas com a terra, os alimentos e produtos. Já tem debates até mesmo sobre a economia doméstica, com a valorização dos trabalhos da casa, dos cuidados com os filhos, algo que nessa lógica da sociedade patriarcal sempre foi jogado para as mulheres.”
Outro debate fundamental advindo da pandemia é o trabalho da agricultura familiar e o combate da agricultura com venenos e agrotóxicos, opina Boulos. “Temos que pensar um modelo mais humano, mas não vamos nos iludir, quem tem que puxar isso somos nós dos movimentos sociais. Se não colocarmos esse debate na mesa, ninguém vai colocar”, avalia. As saídas estariam em melhorar a articulação do campo e da cidade em relação à soberania alimentar. Para ele, com os preços aumentando devido a especulação, “mais do que nunca se coloca a necessidade de canais paralelos de comercialização popular, que se construa com organizações do campo, os produtores, e da cidade, com o escoamento”.
Uma experiência positiva, segundo ele, foi a parceria do MTST e do MPA em São Paulo, mas é necessária uma articulação mais ampla. “Tem que tirar o atravessador, o intermediário, porque a gente faz o alimento saudável chegar a um preço menor para as pessoas que estão na ponta. A verdadeira rede de soberania alimentar se tornou ainda mais urgente frente ao que temos visto nesta pandemia, as leis de mercado sendo utilizadas para explorar miséria e desespero das pessoas.”
Desafios na comunicação
Boulos falou ainda sobre a importância da comunicação dos setores populares, com destaque para o uso das redes sociais. “Talvez a gente nunca tenha tanto uso de dados, tantas pessoas usando a internet. A quarentena mundial teve esse efeito colateral e também coloca a urgência de fazer essa disputa nas redes. Temos que aprender como foi a vitória do Bolsonaro em 2018 e como ele se mantém, através das redes sociais. Claro que no caso dele foi apoio estrangeiro, da Cambridge Analytica, criaram toda uma rede de comunicação. Mas nós também temos condições para construir nossa rede e disputar opiniões.”
O grande desafio, na sua avaliação, é construir essa comunicação de forma unitária. “Não pode ser cada um por si, tem que ser um projeto unificado do campo da esquerda. Mesmo em tempos de pandemia e Bolsonaro nós temos dificuldade em dar esse salto no campo popular. Avançamos em algumas formas como as frentes, atuando juntos, entre alguns partidos têm sido mais unitário do que antes. Mas precisamos dar passos mais concretos e na comunicação isso é urgente e necessário”, conclui.
O debate foi mediado por Katia Marko, jornalista e editora do Brasil de Fato RS, e por Isnar Borges da Rede Soberania. Contou com a participação do Sérgio Görgen, dirigente do MPA, e do Emerson Capelesso, assentado da reforma agrária no município de Hulha Negra (RS).
Assista na íntegra:
Edição: Katia Marko