Para responder, vamos utilizar uma pergunta de apoio: quem perderia com a deposição de Bolsonaro?
Não há uma única resposta para esta indagação. A resposta decorre dos objetivos, dos interesses e das necessidades de cada classe e fração de classe. De cada organização política e de cada grupo de interesse que se origina na esfera da economia e da política.
Para responder a essa indagação vamos utilizar uma pergunta de apoio: quem perderia com a deposição de Jair Bolsonaro do governo federal? Imediatamente e, talvez, de forma mais determinante, o campo político de extrema direita no governo. Digo campo porque se trata de uma plêiade de grupos políticos e de interesses que, a partir de pontos distintos, convergiram em um governo protagonista da construção das condições para a eliminação de direitos sociais e para a desdemocratização progressiva. Para estes grupos a deposição poderia ser catastrófica porque sua movimentação é absolutamente dependente das prerrogativas normativas e políticas próprias de um governo e do Estado. Ainda que a nova direita tenha ganho presença social e apresenta certa organização não institucional, não há evidências que manteria o mesmo grau de mobilização e unidade sem o governo Bolsonaro a lhe dar discurso e benefícios.
Um dos setores que formam o campo é o dos generais que ocupam secretarias, assessorias e ministérios no núcleo do governo. Distintos dos generais que ocupam as posições de comando das forças armadas singulares, operam abertamente a política de tensionamento sobre o STF e sobre o Congresso Nacional. Acumulam capacidade e autoridade política através do controle burocrático das ações do governo, ocupando postos chaves da administração palaciana, como a Casa Civil, a Secretaria-Geral, Gabinete de Segurança Institucional e Secretaria de Governo. Estão no centro das ações de enfrentamento à democracia e à esquerda, legitimados pela construção de uma posição política baseada em uma suposta “missão moderadora”, não prevista na Constituição Federal de 1988 e que tampouco condiz com a história de rupturas institucionais dos militares brasileiros, são mais afeitos a golpes de Estado do que a moderar crises institucionais.
Outro dos setores palacianos que dá cores ao campo da extrema-direita no governo é o articulado pelo que, na seara das imagens auto imputadas, tem sido chamado de núcleo “olavista’ (sic). Trata-se de um conjunto de quadros políticos em postos chaves do governo federal, como os ministros da Educação e das Relações Internacionais, que estabelecem uma política baseada nos esforços de construção de pautas ideológicas e de costumes. Desta usina de fatos tem surgido as polêmicas sobre a Venezuela, relações com a China, anticomunismo etc. Este campo se legitima pela polêmica, fazendo uma espécie de “prestação de serviços’ ideológicos, distendendo temas, levando-os ao ponto do absurdo, para depois desapertar a tensão em ponto mais à direita da agenda política e do debate ideológico. Alguns tratam desse setor como um produtor de balões de ensaio quando, na verdade, é bem mais eficiente que uma simples testagem política, pois trata de naturalizar as ideias de direita na opinião pública.
O terceiro grande grupo desse campo é o da família bolsonarista propriamente dita. Operam através das manifestações diretas do próprio Bolsonaro e de uma vasta rede organizada de distribuição de opiniões e fabricação de fatos pelas ditas redes sociais. A força política e material do cargo de presidente faz com este grupo torne-se o fator de aglutinação do campo da extrema direita no governo. Contudo essa aglutinação não é produzida pela cooperação e articulação entre os distintos grupos que compõem o governo, ao contrário seu método de manutenção da posição de força que detém está baseado no estabelecimento da crise constante e da concorrência entre os demais grupos que compõem o governo, estabelecendo um contexto de instabilidade e crises constantes.
Um governo também é mecanismo de organização de um bloco social. O Estado, dirigido pela fração que está no governo, é o mais concreto de todas as formas da dominação de classe e do controle hegemônico. A queda de Bolsonaro teria impacto em duas grandes frações das classes dominantes, porém de forma desigual.
Uma delas perderia de forma direta com a queda de Bolsonaro: a fração da burguesia subordinada, afastada do núcleo complexo e ativo do capitalismo mundial, vinculada especialmente ao comércio e à indústria de bens de consumo. Bem mais frágil politicamente que seus pares de outros setores, incapaz de ampliar sua produtividade e competitividade, aglutinou-se em torno de Bolsonaro em um programa de cassação dos direitos sociais, dos sistemas protetivos do trabalho, da Seguridade Social, como forma de manutenção de sua taxa de lucro. Um programa político e econômico de rapinagem e esbulho radical do bolso dos trabalhadores, levado a cabo pela implosão nas leis trabalhistas. Esta fração à frente das carreatas da morte, da campanha pela abertura do comércio e pela supressão do isolamento, está envolvida diretamente na emergência das opiniões de extrema direita na sociedade, através do financiamento das fábricas de notícias falsas disseminadas nas redes de comunicação bolsonaristas. A ela se somam os comerciantes e industriais de pequeno porte, sem capacidade de poupança e investimento.
A outra fração é a rentista. Aquele conjunto que transformou a atividade rentista financeira em seu centro de negócios e que efetivamente é a fração hegemônica do capitalismo mundial. Internacionalizada, globalizada, esta fração não se move apenas pelo cenário nacional, deste ou aquele país. A crise sanitária internacional não é o cenário mais propício para este setor, porém em momento algum durante a pandemia a fração rentista deixou de se movimentar politicamente, garantindo a ampliação de suas taxas de lucro. No Brasil, quase que semanalmente o Congresso Nacional, em associação ao governo Bolsonaro, aprova ou um projeto de lei ou uma emenda constitucional que consolida a transferência de recursos públicos ou recursos dos trabalhadores para o sistema financeiro. São os casos da PEC 10/2020 do “Orçamento de Guerra” e o PLP 39/2020, que permite a securitização de créditos dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
Entretanto, a condição hegemônica e dirigente dessa fração, diferente de outras frações, indica que não dependa exclusivamente da manutenção do governo Bolsonaro para garantir seus interesses. O desfecho do processo de deposição de Bolsonaro está relacionado, em grande medida, à formação de uma decisão desta fração sobre qual governo melhor garantiria a manutenção das condições para continuar controlando o Estado e sua política econômica.
O novo protagonista neste jogo político classista em curso é o bloco de deputados de direita, chamado de Centrão, que passou a dar sustentação ao governo em contrapartida ao controle de parcelas do governo federal e de seu respectivo orçamento. Com menos capacidade de formação de opinião, seu peso não está na aglutinação de base social para o bolsonarismo, mas em garantir maioria parlamentar para obstaculizar qualquer processo de impedimento do presidente.
Os setores de extrema direita do governo e a fração subordinada das classes dominantes serão efetivamente os grandes derrotados pela deposição de Bolsonaro. Dependem da aliança com o Centrão no Congresso e da manutenção do interesse da fração rentista na política econômica de Bolsonaro /Guedes para conservar Bolsonaro na presidência. A queda de Bolsonaro significaria a efetiva desarticulação, do bloco político e poria em risco seu crescimento, mesmo que a extrema direita pareça ter vindo para a cena política para ficar.
Ainda é um jogo de xadrez não concluído. Seu desenlace depende da capacidade deste bloco manter-se e, é claro, da estratégia de ação da oposição de centro-direita e da oposição de centro-esquerda. Mas este é outro aspecto a ser desenvolvido em outra oportunidade.
Edição: Katia Marko