Maria do Rosário Nunes nasceu em Veranópolis, um pequeno município do Rio Grande do Sul, em 22 de novembro de 1966. Pedagoga formada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), mestre em Educação e Violência Infantil e doutora em Ciência Política pela mesma universidade. Começou a militância no movimento estudantil secundarista, em Porto Alegre (RS), e foi como professora da rede pública municipal e estadual que obteve notoriedade no movimento sindical. A sua trajetória na política institucional vem de longa data.
Em 1992 se tornou a mais jovem parlamentar da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, até aquele momento. E foi reeleita em 1996, como a mais votada da história de Porto Alegre. Filiada ao PT desde 1994, foi eleita deputada estadual em 1998 e presidiu a Comissão de Cidadania e Direitos Humanos na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul em 1998. Em 2002, elegeu-se deputada federal, sendo reeleita em 2006, 2010, 2014 e 2018.
Maria do Rosário coordenou ainda o programa de governo nas áreas de Direitos Humanos, Educação e Políticas para as Mulheres na primeira eleição presidencial de Dilma Rousseff (2010). Em 2011, licenciou-se do mandato para assumir a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, sendo a primeira mulher a ocupar a pasta. Como ministra de Direitos Humanos teve atuação de destaque na afirmação de direitos para todas as pessoas, trabalhando sempre com os temas Memória e Verdade, Pessoas com Deficiência, Idosos, Diversidade Religiosa, LGBT, Crianças e Adolescentes, Igualdade Racial, Gênero, entre tantos outros. Nesse período integrou e presidiu diversos conselhos nacionais.
Em abril de 2014, reassumiu o mandato de deputada federal. Foi escolhida vice-líder da bancada do PT na Câmara e participou ativamente do processo de defesa da democracia e do mandato legítimo da presidenta Dilma Rousseff. Lutou contra as reformas de Temer, e atuou no parlamento para defender os direitos da população.
Em 2018 foi reeleita em seu quinto mandato. É titular das Comissões de Constituição e Justiça, que analisa a constitucionalidade de todos os projetos da Câmara dos Deputados antes de serem apreciados definitivamente pelo plenário, e de Cultura, onde é vice-presidenta. Suplente na Comissão de Educação e na Comissão de Legislação Participativa, também coordena a Frente Parlamentar de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente.
Mas todo esse caminho teve muitas pedras e principalmente nos últimos anos uma chuva de ataques através das chamadas fakenews. “O mais grave quando mulheres públicas são atacadas é repercutir na sociedade a ideia de que as mulheres não servem para exercer o poder. O que ocorreu com a presidenta Dilma, além dos claros objetivos de mudar o modelo político e econômico do país, foi a aplicação de uma estratégia de caráter misógino para destruí-la também enquanto mulher. Para isso, usou-se e usa-se a violência simbólica, a ameaça, a requisição permanente de nossas atenções, daí ao invés de trabalharmos temos que nos defender.”
Sobre isso e muito mais conversamos na quinta entrevista do Especial Mulheres na Política. Confira!
Brasil de Fato RS - Gostaria que nos contasse um pouco da tua trajetória até chegar na política.
Maria do Rosário - Nasci numa pequena cidade do interior do Rio Grande do Sul, Veranópolis, e com minha família vim para Porto Alegre. Fiz Magistério, sou professora e iniciei a militância no movimento estudantil e depois no movimento de professores. Em 1992 fui eleita vereadora pela primeira vez e desde então venho trilhando a política. Fui vereadora duas vezes, deputada estadual duas vezes e estou no quinto mandato de deputada federal. Fiz mestrado em Educação e Doutorado em Ciência Política pela UFRGS. No governo Dilma tive a honra de atuar como ministra dos Direitos Humanos e atualmente integro a executiva e sou secretária nacional de Formação do Partido dos Trabalhadores. Sou deputada no Parlamento do Mercosul.
BdFRS - Por mais que tenhamos mulheres combativas na política, ao compararmos com outros países, a participação feminina ainda é, de certa forma, irrisória. Como tu avalias a participação das mulheres na política? Por que o Brasil é um dos lanternas quando se trata sobre essa participação?
Maria do Rosário - Acredito que o que acontece na política reflete a situação das mulheres na sociedade, que é bastante contraditória, pois estamos muito ativas, em pé de igualdade na educação e no mercado de trabalho, numericamente em igualdade, mas as condições salariais e de ocupação e acesso aos espaços de chefia e coordenação de forma desigual. São fatores culturais vinculados às construções patriarcais da sociedade, e que são muito parecidas em toda a América Latina. Nessa região somos apenas um terço das mulheres ocupando funções políticas, e no Brasil é pior ainda, estamos em 126º lugar no quesito mulheres no parlamento segundo a União Parlamentar Internacional. No Brasil as desigualdades de gênero se cruzam com as raciais, e se aprofundam com as desigualdades econômicas e sociais. Temos uma equação muito complexa.
BdFRS - O que deveria ser feito para reverter essa situação? Há uma falta de incentivo nos próprios partidos?
Maria do Rosário - A reversão desta situação é um desafio à mudança de padrões culturais de gênero e da própria democracia. Se considerarmos que a democracia é constituída pela cidadania, no Brasil temos ainda uma democracia pela metade, incompleta, pois as mulheres são em geral tratadas pelos partidos como figuras secundárias. Isso fica nítido na distribuição de vagas, financiamento de campanhas, uso irregular do fundo partidário. No ano passado lançamos na Câmara dos Deputados uma campanha sobre a violência de gênero na política, com a tentativa de invisibilidade, silenciamento, desvalorização e impedimento à palavra das mulheres no próprio ambiente da política parlamentar.
Em geral, as normas para mudança nos processos eleitorais têm sido descumpridas pela maioria dos partidos, mas é preciso incentivar as mulheres à política, em todos os níveis. Não conseguimos fazer a reforma política profunda que necessitamos e a legislação existente tem sido formalmente cumprida. O PT é o partido que a mais tempo exercita internamente a paridade nas suas instâncias, mantém um programa chamado Elas Por Elas, que capacita para o empoderamento político e estimula as candidaturas, e o nosso mandato mantém um programa chamado Por Todas Nós.
BdFRS - Como garantir o espaço das mulheres na política no contexto político atual?
Maria do Rosário - A desigualdade de gênero é muito forte na sociedade, a equidade na política é ao mesmo tempo dependente de transformações nos padrões culturais, mas a participação política é essencial a esta ruptura. Então estamos frente a um dilema que precisa ser enfrentado. A escola deveria ser um espaço a interferir no processo de socialização com base na igualdade e no respeito, porém estamos disputando uma política educacional com setores ultraconservadores, que interferem de forma cruel no sentido da educação e até mesmo nos conteúdos escolares. Precisamos incidir desde a infância e conferir às meninas o valor que elas têm, de forma a que desejem liderar e educar os meninos para a igualdade e respeito. E não só na política, mas na ciência, no mundo do trabalho. Isso a longo prazo.
Em termos atuais, temos discutido muito isso, tanto no partido, com formação política e de gênero, quanto no parlamento, criando mecanismos que impeçam os obstáculos ao nosso protagonismo e também em relação à nossa agenda. Toda a sociedade deve ser trabalhada na perspectiva da igualdade de gênero.
BdFRS - Ainda quando falamos de mulheres na política, um quesito que vem ao debate é em relação ao machismo. A presidenta Dilma deposta, tu mesma já fostes atacada pelo então deputado federal Jair Bolsonaro, e o vilipêndio nas redes sociais. Como se combate e como lidar com ele nesse espaço?
Maria do Rosário - O mais grave quando mulheres públicas são atacadas é repercutir na sociedade a ideia de que as mulheres não servem para exercer o poder. O que ocorreu com a presidenta Dilma, além dos claros objetivos de mudar o modelo político e econômico do país, foi a aplicação de uma estratégia de caráter misógino para destruí-la também enquanto mulher. Para isso, usou-se e usa-se a violência simbólica, a ameaça, a requisição permanente de nossas atenções, daí ao invés de trabalharmos temos que nos defender.
Esse é o papel das fakenews e dos ataques, por exemplo, produzir a nossa paralisia, tentar com que questionemos nossa capacidade. Mas assim como Dilma, mesmo fora da presidência, se manteve altiva, eu também exerço diariamente a convicção na igualdade de gênero e no feminismo e defendo o que acredito, não aceitando ataques. Fui e vou à justiça todas as vezes em que sou atacada, e tenho obtido resultados, inclusive uma indenização de Bolsonaro por me desrespeitar e me ameaçar como mulher e deputada.
BdFRS - Tu já foste ministra dos Direitos Humanos, que visão tu tens sobre o tema no Brasil atual?
Maria do Rosário - Os Direitos Humanos são um grande desafio para o Brasil, porque temos uma história marcada pela violação aos Direitos Humanos, fundada inicialmente na exploração do trabalho escravo e posteriormente na exploração dos trabalhadores e trabalhadoras, como assalariados. Esta história está calcada também no genocídio da população indígena, na violência contra os negros e negras e contra as mulheres também. Portanto, uma sociedade escravista e extremamente patriarcal, com uma cultura arcaica que não modernizou sua disposição de superação desta violência.
A exceção no Brasil é democracia e a liberdade. A regra no Brasil é o autoritarismo. Então os Direitos Humanos são sempre violados pela dimensão autoritária, quando não há valorização das políticas e da liberdade. Em meio a governos ditatoriais e autoritários, é ali que os Direitos Humanos são ainda mias violados, sobretudo pelo próprio Estado, que é o principal agente de violação de direitos humanos. Sempre foi assim e permanece assim.
BdFRS - Quando se fala sobre Direitos Humanos se formou um senso comum de que é defesa de bandido. A que tu atribuis essa interpretação errônea e como trabalhar o tema e romper isso?
Maria do Rosário - Essa interpretação de Direitos Humanos como coisa de bandidos é de uma violência absurda, mas não é algo produzido espontaneamente. A tentativa aqui é dos setores de extrema direita, dos setores que defendem justamente a violência de Estado, de ter licença para matar e destruir a sociedade, os cidadãos e cidadãs, os divergentes do sistema, os que se colocam contra a opressão.
E qual é a nascente dessa ideia? Eu reputo ao fato de que os que lutaram contra a ditadura eram sempre tidos como divergentes, e divergentes foram enquadrados como bandidos e terroristas. Quantas vezes a ditadura chamou os lutadores pela democracia de terroristas?
Naquele quadro, enquanto defensoras e defensores da liberdade, contrários à tortura estavam no cárcere, o advogado, o defensor em si, as pessoas da igreja que se movimentavam pelos Direitos Humanos no período da ditadura passaram a ser defensores de bandidos. E nós seguimos lutando para que todas as pessoas tenham direito a um julgamento justo.
Infelizmente, lutar pelos princípios liberais no Brasil é ser defensor de bandido, pois nem o liberalismo tem espaço, diante de uma direita carcomida, escravista, violenta que aparelha o Estado e a Polícia e faz da estrutura policial uma estrutura de feitores de escravos, como se todos nós continuássemos obrigados a viver sob o chicote e não sob a lei.
BdFRS - Como garantir os Direitos Humanos em um governo que se mostra, e que muitos classificam como fascista? Quais são as principais ameaças?
Maria do Rosário - O governo fascista precisa ser enfrentado como tal, com mobilização e organização da sociedade. As principais ameaças são contra os indígenas, os negros e negras, os quilombolas, lutadores pela reforma agrária. O método é promover a desorganização popular, fragilizando conquistas e direitos. Fizeram da reforma trabalhista um ataque às organizações sindicais e tentam criminalizar movimentos sociais todo o tempo. Ao fazerem isto, buscam impor uma ditadura mesmo sem os clássicos tanques na rua, embora se ainda for necessário nos ameacem com eles.
Então nós estamos sob o fogo daqueles que ao invés de proteger a população, utilizam as armas do Estado contra os que lutam pela população. Basta ser pobre, negro, jovem, menino, menina, pra ter risco de vida. Basta ser mulher, viver na periferia, pra viver na caminhada de volta pra casa depois de um dia de trabalho o medo da violência, do estupro e de todas as circunstâncias de morte que estão colocadas.
Por isso as ameaças fascistas estão dentro e fora das instituições, uma vez que a chegada de Bolsonaro ao poder se deu com a formação e reforço desta cultura de ódio contra todos que lutam. Para garantir os direitos humanos diante destas ameaças fascistas, nós temos que fazer o contrário do que eles querem. Eles querem nossa desorganização e nós precisamos nos organizar mais. Eles querem a não-consciência, nós temos que ter mais consciência. Eles querem a destruição dos nossos laços humanos e solidários, nós temos que agir com mais solidariedade, mostrando as nossas diferenças como seres humanos, lideranças políticas e participantes da sociedade.
BdFRS – Que país temos hoje com a pandemia causada pelo coronavírus?
Maria do Rosário - Somos um país que convive com muitas crises, sanitária, política e econômica, pela ausência de uma condução política para enfrentamento à pandemia, e pelo contrário, a prevalência das mensagens dúbias. Estamos colhendo de imediato o desmonte de um dos maiores sistemas públicos de Saúde do mundo, e que foi afetado pelas políticas neoliberais, em especial da EC 95, que congelou os gastos.
Esta pandemia nos fará chorar muito pelos nossos familiares e amigos, nos fará pensar em modelo de desenvolvimento no qual 1% da população detém tanta riqueza quanto os restantes 99%. Está ficando muito visível o quanto as economias baseadas em transações financeiras voláteis não resistem às crises.
Pode ser que parcelas da população que ainda dão crédito ao projeto dos neoliberais e fascistas, se convençam de que este não é o caminho certo. Há uma crise de valores e de descrédito na política de tal forma que os Direitos Humanos são colocados como algo à parte da sociedade, como pertencente a outro mundo.
BdFRS - Países liderados por mulheres apresentam melhores cuidados, no geral, durante a pandemia do coronavírus. Precisamos de um olhar mais feminino para enfrentar os desafios do mundo?
Maria do Rosário - Eu sempre acreditei que as mulheres, justamente por terem sido moldadas culturalmente para assumir o espaço do cuidado e da reprodução da vida, teriam potencial para gerar sistemas mais afetivos. Isso pode parecer contraditório, pois a divisão sexual do trabalho nos colocou numa situação de subalternidade em relação aos homens, com a separação das esferas pública e privada e a delegação às mulheres do cuidado com a vida.
Chegamos a tal ponto no mundo em que o cuidado se tornou uma chave, hoje na pandemia mesmo, quando passamos ao isolamento em nossas casas, fica visível o quanto é difícil compartilhar e o quanto é necessário proteger. Se este é o olhar feminino, o mundo precisa sim de mais mulheres nos espaços de poder, pois nos países dirigidos por mulheres a pandemia foi enfrentada com firmeza, bem diferente de outros, como Brasil, Estados Unidos, França, Itália, que duvidaram das medidas rigorosas desde o início e acabaram mal.
BdFRS - O quanto a participação das mulheres nos espaços de poder, em seus diferentes níveis impacta a sociedade?
Maria do Rosário - A participação das mulheres nos espaços de poder impacta a sociedade porque a ausência das mulheres é um traço da precariedade da democracia brasileira. Eu quero propor uma reflexão. Nós fizemos amplas campanhas por mais mulheres e devemos seguir fazendo campanhas por mais mulheres na política e nos espaços de poder. Conquistamos uma mulher na presidência da República, conquistamos dez ministras ao redor do Palácio do Planalto. Na última eleição avançamos muito. Eu digo que tudo isto valeu a pena, mas em meio a isso houve um ataque injusto, misógino e de profundo desrespeito à representação das mulheres.
Mas hoje temos algo desafiador, porque a extrema direita se apropriou das nossas bandeiras por mais mulheres no poder, mas traduziram isso num tipo de mulher. Ao invés das feministas, das lutadoras do povo, professoras, trabalhadoras domésticas, comerciárias, operárias, advogadas populares, que lutam junto com a população, apresenta-se um estereótipo da mulher obediente, submissa, recatada e do lar, mas que sabe fazer discurso. Que por sua vez defende um modelo de família, um tipo de sexualidade, um tipo de escola. Essas não somos nós, mulheres de luta.
Com isso elas usam de nosso legado feminista e o traduzem numa agenda conservadora com grande peso religioso nas questões de direitos e do Estado. Nossa reflexão é de que a presença da mulher impacta o poder, mas pode impactá-lo positivamente para o avanço das mulheres ou no sentido da opressão. Nós não somos a representação desses interesses obscurantistas, mas do fim de todas as desigualdades.
BdFRS - Há uma saída para a democracia no país? Qual seria ela?
Maria do Rosário - A saída para democracia no Brasil é mais democracia, o que não é possível com Bolsonaro. Ele é o contrário da liberdade, da democracia, dos direitos humanos, do respeito e da dignidade. Todos e todas estamos chamados para a campanha Fora Bolsonaro, pela restauração e composição de uma ação política no Brasil que seja voltada a atender as necessidades da grande maioria da população que as instituições não enxergam.
A democracia com a Constituição de 88, pós ditadura e sem justiça de transição, sempre foi muito limitada. Então todos nós estamos chamados a produzir uma nova transição que supere este período triste de Bolsonaro, de um governo fascista no poder, e que recupere aspectos e fundamentos constitucionais, mas que não fique limitado à forma com que ela foi exercida entre a Constituinte e a deposição da presidenta Dilma.
Nós precisamos de uma democracia substantiva, com o rosto e as necessidades de homens e mulheres. Uma democracia participativa, econômica e inclusiva em direitos e em justiça social, onde todos e todas sejamos reconhecidas em igual ponto de partida pela cidadania. Além disso uma democracia cultural, onde os bens culturais e a produção sejam acessíveis, assegurados e valorizados para todas as pessoas. Há também dimensões ambientais e tecnológicas, pois a destruição da natureza e o acesso desigual a tudo que é produzido na nossa era são as essências do capitalismo, precisam ser alteradas. Nós devemos avançar pra uma democracia onde desigualdade e destruição da natureza não sejam características aceitas porque, se for assim, não será democracia.
Edição: Katia Marko