Rio Grande do Sul

GIRO PELO MUNDO

A força da mulher luso-brasileira frente à pandemia

Três emigrantes contam como vivem o desconfinamento em Portugal

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Balanço mais recente aponta oficialmente 27.679 casos confirmados e 1.144 mortes em Portugal - Global Imagens

Lara, Cacilda e Paula - três mulheres batalhadoras que deixaram o Brasil em busca de uma vida melhor. Três histórias de vida que poderiam ter se cruzado na capital portuguesa, Lisboa, ou em duas grandes cidades brasileiras, São Paulo e Porto Alegre, mas que por algum motivo, esse encontro ainda não aconteceu!

Uma arquiteta, uma jornalista e uma geógrafa de formação. Duas gaúchas e uma paulista. Mulheres que viram num piscar de olhos toda sua rotina e hábitos transformados e passaram a lutar contra um inimigo comum, o coronavírus da síndrome respiratória aguda grave 2 (SARS-CoV-2) que em inglês é conhecido como Severe acute respiratory syndrome coronavirus 2.

Extremamente contagioso entre seres humanos, o “novo mal do século” que causa a doença covid-19 já infectou mais de 4,1 milhões de pessoas em todo o mundo, até esta segunda-feira (11), e levou a óbito quase 290 mil, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS). Na Europa são 1.733.592 casos confirmados e 156.645 mortos.

De acordo com o balanço mais recente da Direção Geral de Saúde (DGS) do governo português, o país registrou oficialmente 27.679 casos confirmados, 1.144 mortes e 2.549 casos recuperados. Portugal foi o país menos afetado pela pandemia na Europa. Os primeiros casos da doença só foram detectados mais de um mês depois do que na vizinha Espanha. Tempo este que permitiu uma reação rápida do governo que declarou estado de emergência, confinou sua população, fechou as escolas e a fronteira terrestre.

Em Portugal, um dado que chama atenção é o de que as mulheres são mais afetadas pelo novo vírus do que os homens. Ao todo já foram infectadas 16.298 do sexo feminino, enquanto 11.381 do sexo masculino. Mulheres acima dos 80 anos são as maiores portadoras com 2.863 casos, enquanto homens na faixa etária dos 40-49 anos têm 1.839 casos. Também é delas a triste taxa de mortalidade com 587 mulheres vítimas fatais da covid-19, enquanto o sexo oposto apresenta 557 casos.

Há uma semana, o governo português iniciou o processo de flexibilização das medidas de isolamento, intitulado Plano de Desconfinamento, que será aplicado de forma gradual durante todo o mês de maio. Salões de beleza, concessionárias de automóveis e pequenos estabelecimentos comerciais foram reabertos, respeitando as regras de distanciamento físico. O uso de máscaras ou viseiras de proteção tornou-se equipamento obrigatório para ter acesso a lojas, prédios públicos e utilização do transporte público.

A partir do dia 18 de maio, bares, restaurantes, museus e galerias de arte serão submetidos a novas normas de segurança sanitária e autorizados a retomar suas atividades.

Em Lisboa, atualmente, são 1.737 pessoas infectadas e é na capital portuguesa que vivem Lara, Cacilda e Paula.

Lara: “Estar confinada é um momento de bastante reflexão e grande ansiedade. A incerteza de viver em meio a uma pandemia mexe com a gente”


Lara Amaral / Arquivo pessoal

Lara Amaral, 43 anos, é gaúcha de Porto Alegre. Arquiteta, trocou as planilhas de desenhos de um escritório de design em São Paulo, estado mais populoso do Brasil, com mais de 12,2 milhões de habitantes, para dedicar-se ao sonho de estudar artes na Ar.Co - Centro de Arte & Comunicação Visual, onde trabalha no departamento de cerâmica da faculdade.

Casada, Lara e o marido deixaram a terra da garoa e se mudaram para Lisboa há mais de dois anos. O casal não tem filhos, mas um buldogue francês que é o dono da casa, Francesco Morelli, o Chico. A Arquiteta, que também é figurinista de cinema e design de moda, conta que a capital portuguesa é um convite à vida com seus parques, colinas, praias e céu azul. “Por mais que eu ame ficar em casa com a minha família, estar confinada é um momento de bastante reflexão e grande ansiedade. A incerteza de viver em meio a uma pandemia mexe com a gente”, relembra ela do início da quarentena - Portugal entrou em estado de emergência no dia 19 de março, quando o governo restringiu a liberdade de circulação da população para frear a propagação da covid-19, medida que depois foi substituída pelo estado de calamidade pública, que estimulou os portugueses a respeitar o "dever cívico de permanecer em casa".

“Nos primeiros dias, nós dormíamos muito e acordávamos tarde. Fomos dispensados do trabalho. Passei a cozinhar, cuidar da casa, das plantas, arrumei todos os armários, li quase todos os livros da prateleira da nossa casa, assistimos muitos filmes. Passada essa fase, também procurei me dedicar aos amigos aqueles perto e os além-mar de forma a não deixá-los passar por essa quarentena sozinhos. Para driblar a falta de concentração: meditação e yoga. Sim, todo santo dia, religiosamente!”, receitou.

Chico Amaral, o cão de quase 6 anos é um capítulo à parte na vida de Lara, sobretudo nesse isolamento forçado e solidário. O buldogue francês é uma raça muito dócil e calma que ronrona e se faz entender, e com Chico não é diferente. Conquistador, logo se tornou o pet mais disputado da casa para as passeadas na beira do Rio Tejo. “Saímos duas vezes por dia com o Chico completamente paramentados - máscara, álcool gel na bolsa e não tocamos praticamente nada quando estamos na rua, somente o estritamente necessário. Usamos sempre o mesmo sapato pra sair e deixamos do lado de fora do apartamento. O Chico limpamos as patinhas e o focinho quando voltamos do passeio. Estamos vivendo um dia de cada vez”, desabafou.

Nessa nova fase, Lara disse que as normas serão reavaliadas de 15 em 15 dias pelo governo e, se tudo correr bem, a cada 15 dias a população terá direito a alguma flexibilização. “Tudo é uma questão de adaptação, tanto que na regra dos 15 em 15 dias nossos comportamentos serão reavaliados. Nesta primeira fase começaram a abrir os pequenos comércios do bairro. O uso de máscaras é obrigatório dentro de lugares fechados e, sobretudo no transporte público que, além disso, tem que estar com 2/3 da capacidade de ocupação, assim como o pequeno comércio também, normas de ocupação rígidas. A ida à praia ainda não é permitida e há vários parques que continuam fechados, os bancos e brinquedos infantis continuam lacrados, mas fazer exercícios e ir algum parque/gramado que esteja aberto é permitido, mas sem aglomeração e de preferência perto da sua zona de residência para que não precise usar transporte”, explicou lamentando que a cidade, de uma forma geral, já está mais barulhenta, já tem mais gente na rua, a grande maioria de máscara (parte boa).

Uma das preocupações de Lara é com a chegada do verão europeu. “Portugal é totalmente solar, aqui fazem dias lindos com céu azul e muito calor. Temos praias maravilhosas que ainda não podemos frequentar. Então poder ir a beira do rio Tejo e deitar um pouco no gramado já é uma baita alegria”, completou eufórica.

Nesta semana, Lara volta a trabalhar e a estudar e acredita que tudo será diferente, pois enfrentará um mundo com regras de distanciamento e higiene redobradas. Para ir ao trabalho, ela terá que usar o transporte público, um ato que antes era rotineiro e tranquilo, agora é tenso e deve ser cercado de cuidados. “Esse simples ato de entrar no bondinho já me deixa mais insegura. É muito estranho sair e ver todo mundo de máscara e pensar que esse é o novo normal, tempos estranhos estes. Tenho dificuldade de pensar nessa nova realidade, mas, ao mesmo tempo, estou feliz de ver as ruas com um pouco mais de vida, de poder voltar a encontrar colegas no trabalho, voltar aos poucos a minha, poder socializar um pouco mesmo que de máscara e com uma certa distância”, observou.

Paira no ar um certo otimismo, pois segundo os relatos de Lara, os portugueses não perderam o controle, o surto foi de uma certa forma controlado, porém o governo segue vigilante e não descarta uma segunda onda de contágio ainda mais severa. “Estamos lidando com o desconhecido, é um aprendizado diário e tudo agora depende muito da população. É cada um fazendo bem a sua parte. Precisamos entender que ainda não passou e que os cuidados devem continuar. Óbvio que estamos apreensivos porque o país é pequeno e vive do turismo, que pelas estimativas não voltará tão cedo”, destacou relembrando emocionada que no seu ciclo de amigos, três estão infectados, um deles é médico. Todos assintomáticos praticamente.

Paula: "É perto do fogo na alquimia com as minhas panelas e temperos que percebo o quanto essa pandemia mudou e ainda transformará nossas vidas”


Paula Cordeiro / Arquivo pessoal

Paula Cordeiro, 48 anos é natural de São Paulo. Há 5 anos vive na capital portuguesa com o marido e o filho de 8 anos. Geógrafa de formação, deixou o ofício há cerca de 10 anos e passou a dedicar-se a uma grande paixão, que hoje é sua maior fonte de renda, a gastronomia. Cozinheira dedicada, ela elabora pratos típicos da culinária brasileira e vem encantando paladares europeus. Proprietária de uma micro-empresa de comida por encomenda e pequenos eventos chamada “Forninho”, ela vem inovando no Instagram com cardápios práticos e lanches de dar água na boca. “Eu sempre gostei muito de cozinhar. Desde muito jovem faço pães, bolos, carreteiros, caldos. O fogão sempre foi o elemento agregador da minha casa desde a infância. É perto do fogo na alquimia com as minhas panelas e temperos que percebo o quanto essa pandemia mudou e ainda transformará nossas vidas”, desabafou.

Cozinha à parte, quando Paula não está preparando guloseimas está com Santiago, seu único filho, que em idade escolar lhe toma boa parte do tempo. A família entrou na quarentena na primeira semana de março quando o governo passou a alertar a população. “Foi tudo muito rápido. Quando nos demos por conta, Santiago já estava tendo aulas remotas em casa e eu e meu marido em tele-trabalho. Aliás tenho a impressão de que quando se faz home-office, a sensação é de que se trabalha horas e horas a mais do que normal devido ao cenário atual e isso também é muito estressante”, observou destacando que o teletrabalho continua sendo a norma, desde que possível, enquanto as concentrações de mais de 10 pessoas estão proibidas.

Especialistas alertam para o risco de esgotamento físico e mental, devido ao acúmulo de tarefas em casa somado ao isolamento e cuidado com os filhos. Há inclusive estudos da FGV que demonstram que o trabalho remoto crescerá 30% após o período de estabilização dos casos e retomada das atividades.

Paula conta que ficou muito surpresa com a maneira como seu filho conseguiu se adaptar às aulas e conteúdos virtuais. “A proposta pedagógica que as escolas portuguesas instituíram veio de encontro a expectativa dos miúdos (criança em português). Eles são autônomos e desenvolvem as tarefas de casa com imensa desenvoltura e aproveitamento. Todos os dias, após as classes é reservado um espaço para que todos possam se ver e falar sobre o que aprenderam e tirar suas dúvidas. Eis a Geração Z, conhecidos como nativas digitais”, esclareceu.

Com o plano de desconfinamento em andamento, já na segunda quinzena de maio, está programada retomada de algumas aulas para estudantes do Ensino Médio. As aulas online serão mantidas até o fim do ano letivo para os alunos da Educação Básica e do Ensino Fundamental.

O ambiente acolhedor da família Ávila Cordeiro faz com que coisas simples da vida façam toda a diferença e acalme os corações de quem está longe. “Resta-nos pensar positivamente. Estamos mais unidos, cozinhamos juntos, lemos histórias uns para os outros, plantamos. Um motivo maior nesse Universo há de existir”, suspira ela enquanto acende uma velinha pela paz no mundo.

Cacilda: “O confinamento seja ele obrigatório ou solidário mexe demais com o sistema nervoso das pessoas”


Cacilda França / Arquivo pessoal

Cacilda França é gaúcha de São Gabriel e tem 47 anos. É Bacharel em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Há 13 anos se mudou para Lisboa onde migrou do jornalismo para a área da beleza e passou a dedicar sua vida à estética e aos cuidados, sobretudo para com as mulheres. As canetas cederam espaço às tesouras e Guga, como é conhecida no metiê, é a maga dos cortes contemporâneos e também das cutículas. Ela criou um ambiente vintage no terraço da sua residência no centro da capital portuguesa onde atende por agendamento. “Me sinto privilegiada por ter esse espaço no 8º andar arejado e ensolarado. Em tempos de pandemia, é sinônimo de qualidade de vida e sanidade. Não é só um espaço de estética é um lugar de acolhimento de uma clientela que se tornou praticamente da família”, disse.

Para a jornalista, a pandemia trouxe a tona muita coisa que estava debaixo do tapete. “O confinamento seja ele obrigatório ou solidário mexe demais com o sistema nervoso das pessoas. A sensação que eu tenho é que esse novo vírus veio para mostrar o que estava escondidinho e que a gente muito provavelmente não queria olhar. Cabe uma reflexão generosa a respeito”, questionou.

Extremamente lúcida e dedicada, ela fala sobre como não sucumbir a pressão em tempos de covid-19. “Há uma imensa pressão psicológica. Tu liga a TV e é só notícias sobre mortes, aumento da crise. Isso gera medo e incerteza. Temos que ter discernimento para filtrar as informações. Tem horas que precisamos sim desconectar para não dar gatilho. É tempo de olhar para dentro de si mesmo, se conhecer. É um excelente momento e as pessoas deveriam aproveitar essa oportunidade de conviver com seus próprios fantasmas e exorcizá-los para serem mais leves e felizes. Eu vivo sozinha e me dou extremamente bem comigo própria. Eu acredito que esse vírus veio sim para nos mostrar como viver coletivamente e a sermos sim mais solidários. Todo mundo tem a opção de daqui para frente fazer diferente. Espero que a gente possa aproveitar essa experiência de dor de maneira positiva para evoluirmos de verdade. É tempo de revirar a casa toda e fazer o faxinão”, incentivou.

Para ela, usar a máscara de proteção sempre fez todo sentido. “Sou uma apologista do uso da máscara inclusive quando se tem um resfriado como se faz a séculos no Oriente”.

Cacilda, que sempre teve hábitos excessivos com limpeza e higiene, disse que o fato de Portugal ser o bom exemplo da Europa em termos de contágio e mortes se deve e muito ao comportamento da população. “Em Portugal nunca foi proibido sair às ruas, não tivemos um lockdown total e sim recomendações do governo e da OMS de que era necessário ficar em casa e foi o que fizemos, ao contrário de outros países, como no Brasil que já tem 11.207 mortes e já ultrapassa os 163 mil contaminados. Essa situação me atormenta muito. Em um primeiro momento eu alarmei todo mundo que conheço para conscientizar sobre a pandemia, mas infelizmente observei que uma parcela da população não tem a menor noção do que está por vir”, lamentou Cacilda, que tem uma mãe de 82 anos que está em quarentena há dois meses em Porto Alegre.

Foram 496 óbitos confirmados nas últimas 24 horas no Brasil que é o epicentro da doença na América Latina. De ontem para hoje, foram 6.760 novos diagnósticos. A taxa de letalidade é de 6,8%. “É muito cruel ver o que os outros não estão vendo ou que não estão querendo ver. Essa cegueira que tomou conta do Brasil. Mas não há mal que sempre dure”, finalizou.

 

Os dados foram atualizados nesta segunda-feira (11/05) conforme informações oficiais da DGS de Portugal, da OMS e da Johns Hopckins University & Medicine.

 

* Gisele Figueiredo é jornalista e atualmente coordena a RADIO TCE-RS.

Edição: Marcelo Ferreira