Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), o professor Gilberto Calil estuda o fascismo e o neofascismo. Também trata de temas como direita, hegemonia, ditadura e poder. É autor, entre outros livros, de “Integralismo e Hegemonia Burguesa”. Lecionando na pós-graduação em História da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste), Calil pesquisa agora a ascensão da direita no Brasil de 2006 até hoje.
Nesta conversa com o Brasil de Fato RS, ele aborda esse assunto crucial para o país.
Brasil de Fato RS - É impressionante a semelhança entre os anos 20 do século passado e os anos 20 do atual: crise econômica, desemprego, degradação das instituições, descrença na política tradicional, frustração das classes médias, desenvolvimento de novos meios de propaganda, aparecimento de protagonistas contrários à “velha política”, culto ao patriotismo, rejeição ao estrangeiro, criação do inimigo interno, polarização. É como se fosse o mesmo terreno fértil para a extrema-direita 100 anos depois. Como avalia este quadro?
Gilberto Calil - Realmente são impressionantes os diversos elementos de aproximação entre o contexto original de emergência do fascismo e de hoje. As coisas não são tão idênticas mas há muitas analogias possíveis. Sobretudo, a conjunção de crise econômica, crise de acumulação capitalista e com uma situação de crise política, de os velhos partidos e as organizações tradicionais da classe dominante de garantirem, de forma tranquila, as condições da dominação. É importante notar que esse movimento fascista, seja no século 20 seja hoje, parte da expressão de insatisfação mas a coloca, paradoxalmente, na defesa da ordem vigente. Sem que aqueles que o adotam compreendam esse sentido. Os movimentos fascistas têm uma necessidade intrínseca de se apresentarem como se fossem contra a ordem, o status quo, a velha política.
BdFRS - O maior movimento fascista de massas da história do Brasil, o Integralismo, foi uma criação de intelectuais como Plínio Salgado, Miguel Reale, Gustavo Barroso e outros. O bolsonarismo, ao contrário, é obra de uma conjugação de fatores, onde o único intelectual é um ex-astrólogo que a maior parte das pessoas não leva a sério. Existe algum diálogo entre os dois modelos?
Gilberto - Há uma diferença entre os dois movimentos mas talvez não seja tão grande quanto pareça. Salgado, Reale, Barroso apareciam como intelectuais mas o Integralismo é um movimento profundamente marcado pelo irracionalismo, por mitos, como o mito do interior contra a capital contaminada pelo cosmopolitismo, pelo mito das três raças, uma série de preconceitos e a propagação de um anticomunismo primário, tosco, que se aproxima muito do bolsonarismo. O irracionalismo é elemento constitutivo de todos os movimentos fascistas. O Integralismo tinha diferentes linguagens para diferentes públicos. Embora houvesse uma linguagem dirigida à elite integralista havia outras formas, mais banalizadas, para se dirigirem às massas, algo que permite também uma analogia com hoje.
BdFRS - No final da primeira década do século que passou tivemos ainda a gripe espanhola - outra semelhança - e hoje temos o coronavírus. Como projeta a arena política no pós-pandemia? Quem levará vantagem?
Gilberto - É difícil avaliar. De um lado, abre-se a possibilidade repensar modos de vida, de consumo, do crescimento desmedido, da relação com o ambiente. De outro lado, há o aprofundamento de formas de controle social, de vigilância nas mais diversas dimensões e associada à concentração de instrumentos de poder. As possibilidades que se abrem são muito amplas, distintas e contraditórias entre si.
BdFRS - Como interpreta o uso do termo “populismo” na mídia para definir fenômenos tão diversos entre si situados tanto à direita quanto à esquerda?
Gilberto - Esse uso não se restringe à mídia. Há um pensamento acadêmico que segue o mesmo caminho. Vem do pós-II Guerra, quando se engendrou o conceito de totalitarismo que aproximava experiências totalmente distintas entre si. Não é necessário ter nenhuma condescendência com o stalinismo e seus crimes para compreender que ele é completamente diferente do nazismo e do fascismo. Um conceito que confunde ao buscar, através de um único elemento – o mecanismo de controle social – identificar experiências que têm gênese, processos de desenvolvimento e dinâmicas muito diversas. É um processo análogo à disseminação do conceito de populismo de direita e de esquerda. Que é algo que partiu também de um único elemento: a recusa à política e à dinâmica da globalização. Não se pode colocar como semelhantes processos como o chavismo e a extrema-direita anti-União Europeia. Sem o conceito de fascismo, é impossível entender movimentos que estão à frente de governos no Brasil, na Hungria e na Polônia.
BdFRS - Achile Mbembe, o pensador africano, diz que a bifurcação entre a democracia e o capital é a nova ameaça para a civilização. Prevê um mundo de mais muros, policiamento e militarização. Como encaixaria o neofascismo nesta projeção?
Gilberto - Precisamos nos desvencilhar do mito que identifica capitalismo com democracia. A dinâmica intrínseca do capitalismo está em oposição à qualquer concepção mais ampla de democracia. O fascismo se coloca como uma forma de radicalização hierárquica e estridente ainda que não seja da forma mais interessante para as classes dominantes já que sua ascensão envolve a mobilização de massas com a perspectiva de constituição de milícias, trazendo tensão e instabilidade. O colapso da democracia pode se dar gradualmente – não como uma ditadura aberta com fechamento do congresso – e essa seria a formatação preferencial para a classe dominante.
BdFRS - Bolsonaro é o protótipo do fascista mas Sérgio Moro, na sua opinião, é diferente. Embora autoritário, ele seria adepto de uma espécie de democracia degenerada, decaída, de fachada, com os aparelhos judiciário e policial aptos para perseguirem e impedirem a ascensão da esquerda do poder...
Gilberto - Não devemos banalizar o termo. Não há dúvida de que Moro, Dória, Witzel são reacionários. Têm um núcleo ideológico em comum com o fascismo que passa pelo anticomunismo, a antipolítica, a misoginia, a oposição aos direitos humanos, o armamentismo, o militarismo etc. Mas o fascismo implica em mobilização de massas e na constituição de uma tropa de choque para a promoção generalizada da violência. Então é preciso distinguir Bolsonaro de Moro e de outros que não apostam na constituição de milícias. O que Moro expressa está conectado aquilo que o grande capital deseja: um regime cada vez mais fechado, pautado por um processo de controle e vigilância muito amplo, um Judiciário enormemente autonomizado em relação aos anseios da população, um parlamento expressando ainda mais o poder econômico etc. Um fechamento mas com manutenção das aparências.
BdFRS - Um dos estudiosos do fascismo, Jason Stanley, chama a atenção para um ponto interessante: ao contrário da esquerda que projeta um novo mundo no futuro, o fascismo quer sempre voltar no tempo. Seu futuro está no passado. Ele ilustra com Mussolini querendo resgatar as glórias do império romano, por exemplo. No Brasil, onde se pediu – e levou – a volta dos militares, a utopia buscada é a ditadura militar. Ou não?
Gilberto - O fascismo é reacionário, no sentido de que se pauta pelo passado mas, ao mesmo tempo, necessita capitalizar insatisfações e revoltas e engendrar uma aparência de algo novo. Como oposição ao velho e superação do passado. O fascismo original, o italiano, dava uma ideia de modernidade, de velocidade, de civilização do automóvel, algo que o Futurismo (*) expressou amplamente. O conteúdo político-ideológico é reacionário mas ele busca formas de ocultar esse conteúdo. A ditadura militar (de 1964) é uma referência, sobretudo a forma falseada do que o regime teria sido. Mas o fascismo não é igual à reprodução da ditadura. Ele se distingue do terrorismo de estado não pelo caráter ideológico, que é próximo. No terrorismo de estado, a produção do medo e da repressão acontece num contexto de desmobilização social, enquanto o fascismo conta com a mobilização para produzir o medo e a repressão.
BdFRS - Em algum lugar do passado, houve militares nacionalistas pela esquerda e pela direita. Hoje, a impressão que o entorno presidencial passa é de que inexiste nacionalismo de qualquer tipo, vigorando apenas um nacionalismo fake, de fachada. Parecem satisfeitos com um naco de poder e um dinheiro novo caindo na conta no fim do mês. Na sua avaliação, eles serão parceiros de Bolsonaro na radicalização fascista até quando?
Gilberto - O passo final de uma aventura fascista, de um rompimento institucional no sentido proposto por Bolsonaro, me parece que vai além dos interesses dos comandos e da oficialidade, que teriam mais a perder do que a ganhar com isso. Como as experiências históricas do fascismo mostram, teriam mais possibilidade de serem atropelados e engolidos pela dinâmica.
BdFRS - O quadro que vivemos com a uberização, o precariado, a degradação da vida nas cidades, a decadência da mídia empresarial e a informação ou “informação” obtida das redes sociais como o WhatsApp é propício para adubar ainda mais o fascismo que vemos no dia a dia?
Gilberto - Não podemos partir de uma perspectiva preconceituosa ao imaginar um tipo de comportamento político necessariamente reacionário desses setores. E nem lidar com um conceito restrito de classe trabalhadora como proletariado industrial ou algo do tipo. É imprescindível compreender que essas formas precárias constituem hoje parte fundamental da classe trabalhadora. Se não formos capazes de dialogar com elas, de organizá-las, de apoiar suas lutas, de entender suas contradições estaremos à margem, fora da disputa hegemônica. O Whatsapp e a circulação de fake news parecem novos mas se a gente pensar na organização do fascismo nos anos 1920, a propagação de boatos, por outros meios, foi constitutiva daquele processo. Há uma reatualização que aduba o fascismo? Sim, certamente. Mas isso não pode nos levar a um tipo de fatalismo, imaginando que um uberizado vai ser reacionário, que um trabalhador precarizado não vai ter um comportamento de classe.
(*) Movimento artístico do começo do século 20, com grande presença nas artes plásticas. Seu principal nome, o pintor italiano Filippo Marinetti, identificou-se fortemente com o fascismo.
Edição: Marcelo Ferreira