A possibilidade de privatização do Grupo Hospitalar Conceição (GHC) e do Hospital de Clínicas, ambos de Porto Alegre, anunciada na semana passada junto com o projeto “A Reconstrução do Estado” já tem oposição definida. As deputadas federais Maria do Rosário (PT/RS) e Fernanda Melchionna (PSOL/RS) ingressaram com representação no Ministério Público Federal contra a iniciativa. Rosário, que ingressou no dia 30 de abril, entende que privatizar o maior grupo hospitalar do Rio Grande do Sul é inconstitucional e Melchionna, que entrou nesta quarta-feira (06), criticou o fato do assunto vir à tona durante a pandemia.
A direção do GHC, entretanto, nega que o processo esteja em andamento. É o que disse o presidente Cláudio Oliveira ao Brasil de Fato RS. “Não há processo de privatização. O que temos é uma proposta de venda de um dos ativos do GHC, que é o prédio do Hospital Fêmina, ainda em fase de modelagem”, contrapôs. Explicou ainda que a instituição aparece na relação divulgada pela Secretaria de Desestatização do Ministério da Economia “porque o GHC é uma estatal federal e, portanto, privatizável. Mas não quer dizer que esteja em processo de desestatização”.
Conforme a direção, o Grupo Hospitalar Conceição “é composto por quatro hospitais, uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA), 12 Unidades Básicas de Saúde (UBS), três Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), um Consultório de Rua e uma Faculdade. Conta com 9,2 mil funcionários. Atende 35% da cidade de Porto Alegre e região metropolitana. Seu orçamento para este ano é de R$ 1,5 bilhão.
“Um crime contra o interesse público”
Apesar de contestar que o projeto esteja em andamento, a direção não desmente a intenção do ministro Paulo Guedes, da Economia, de vender o GHC. Seria colocado na lista de estatais a serem privatizadas logo após a pandemia, sob o pretexto de conseguir recursos a serem utilizados na recuperação do processo econômico.
O presidente do Conselho Estadual de Saúde, Cláudio Augustin, rejeita a possibilidade de venda. “O Conselho tem posição histórica contrária à privatização da Saúde decorrente de inúmeras Conferências de Saúde, na esfera municipal, estadual e nacional”, acentua. “É contrário à privatização do GHC e do HCPA. Privatizar um hospital público em plena pandemia da covid-19 é um crime contra o interesse público”, reforça. “No momento em que o governo deveria assumir o controle de toda rede hospitalar para garantir a assistência à população, declaram a intenção de destruir o serviço público para agradar o capital financeiro internacional”, questiona.
A doença como um “ótimo negócio”
Augustin explica que o projeto é antigo e faz parte do desmonte do Sistema Único de Saúde (SUS) e da entrega da população brasileira à indústria da doença, representada pelas grandes multinacionais da área. "A doença é um ótimo negócio para a indústria farmacêutica e a indústria de diagnósticos, que envolve eletros, tomografias, ressonâncias etc...”, enumera. “É um campo – continua – altamente especializado e que tem um custo crescente. Todo um setor desta indústria tem grande interesse: a indústria química que produz tanto agrotóxicos como remédios na indústria farmacêutica. Um exemplo disso é a Bayer: produz o veneno para as pessoas adoecerem e o antídoto para curá-las”, registra.
Para ele, está em curso um processo crescente de privatização de toda a área da Saúde. “Vai desde a atenção básica e está acontecendo em Porto Alegre com a tentativa de repassar toda a atenção básica para as clinicas. Temos na indústria farmacêutica praticamente toda ela privada. Sobrou ainda o (Instituto) Manguinhos, da Fiocruz, e alguns outros laboratórios. Mas o restante dos públicos já foi tudo fechado, inclusive o Lafergs, do RGS”, explica.
O projeto é antigo
A ex-superintendente do GHC durante o governo da presidente Dilma Rousseff, Sandra Fagundes nota que a listagem de desapropriações existe desde o início do governo Bolsonaro. A crise, na verdade, retrata uma parte da crise econômica e, mesmo na questão da saúde, explicita situações que já vinham acontecendo. Por exemplo, o congelamento dos recursos através da chamada PEC da Morte (EC95), o sucateamento do SUS e a sua privatização, aparecem com toda a fragilidade na pandemia quando tem uma sobrecarga de demanda. Uma situação nova explicita recursos que tem, recursos que faltam e recursos que poderia ter se não tivesse acontecido o desmonte.
Ela dá um exemplo com a política de saúde mental a qual atende como profissional da área. “Eu sou defensora da reforma psiquiátrica e da luta antimanicomial. Então já havia uma desvalorização desde lá do governo Temer, agravada na situação atual do governo Bolsonaro, de desqualificação dos centros de atenção psicossocial, os CAPS, e da rede psicossocial e na direção das comunidades terapêuticas”, aponta. “O que está acontecendo agora – prossegue – em plena crise? Com o argumento da pandemia e também para proteção tanto dos usuários quanto dos trabalhadores foram suspensas várias atividades. Mas o modo de pagar não foi suspenso. Então estão usando o argumento de que tem menos produção e não se estão atingindo objetivos. Então reduzem os recursos para este serviço. O plano seguinte é sufocar este tipo de serviço dizendo, ‘Olha aí, não precisa mais, passamos a pandemia sem’".
A saúde não é mercadoria
Na sua percepção, a crise serve também para radicalizar a política que já vinha sendo tocada, de privatização e fechamento de serviços. “Em relação aos hospitais, como não dá para fechar imediatamente ou privatizar, porque estão sendo superdemandados, são referências o GHC e o Clinicas”, diz. No início do período Bolsonaro, já corria a notícia, quando anunciaram as 150 estatais que seriam vendidas. “Por pressão dos hospitais e dos conselhos, o governo tirou estes dois hospitais. Agora, com a crise financeira que já existe e se agravará pós-pandemia, aproveita-se para reinserir o Clínicas e o Conceição”, avalia.
Ela argumenta que a questão não é financeira. É o valor para o SUS e o valor do trabalho do sistema público. “Nós fecharíamos dois grandes hospitais. Tanto um como outro já são de direito privado. Os funcionários são CLT. Nenhum deles tem servidores estatutários. O que eles querem é tirar a responsabilidade da gestão do Estado e dos governos, da Universidade e do Ministério da Saúde. E com isso trabalhar na direção do que já se conhece porque a prática tem demonstrado isso, uma precarização. E mais trabalhar a saúde como negócio. Porque nem o Clínicas nem o GHC entendem a saúde como mercadoria” conclui.
Edição: Ayrton Centeno