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ARTIGO | Estamos próximos a ter de fazer a Escolha de Sofia?

Rio de Janeiro elabora protocolo para dizer quem terá acesso à UTI com respirador e quem será entregue à própria sorte

Porto Alegre | BdF RS |
"Para os formuladores de regras impessoais a vida é só mais uma estatística, e o que interessa é o resultado agregado, não o valor pessoal que ela tem para cada um" - Joka Madruga

Zygmunt Bauman escreveu certa vez que sem a sofisticada burocracia alemã o nazismo não teria sido possível. Hannah Arendt, por outro caminho, chegou à mesma conclusão quando percebeu, durante o julgamento de Eichmann, um oficial nazista que provocou a morte de milhares de judeus, que ele não era o monstro que ela esperava encontrar, mas uma pessoa aparentemente normal que justificava suas ações como "cumprimento do dever": ele era só mais um funcionário público do regime. A isto ela deu o nome de "banalização do mal", quando o mal é perpetrado por pessoas "normais" imbuídas do senso de dever, e não pela maldade em si.

O primado da impessoalidade e da racionalidade formal do burocrata cumpridor de regras, que deixa a própria consciência no armário toda a vez que veste o uniforme e o crachá de funcionário para assumir o cargo que ocupa, é fundamental nos regimes democráticos. É ele que impede a apropriação do Estado por interesses pessoais, que garante a estabilidade das funções estatais face à transitoriedade dos governos, e que dá certa previsibilidade ao resultado do trabalho. Além, é claro, de proteger o funcionário do arbítrio pessoal dos superiores e os superiores da pressão organizada dos subordinados. Como dizia Rousseau, se todos respeitam apenas a regras impessoais, ninguém se subordina a ninguém pessoalmente. Há, portanto, um conceito de liberdade na generalização de normas impessoais.

Mas esta mesma impessoalidade e racionalidade formal é que cria os Eichmans da vida, que cria esta banalização do mal operada por zelosos burocratas cumpridores do dever.

Pois bem, lembrei disso quando li que o estado do Rio de Janeiro está elaborando um protocolo com critérios objetivos para serem utilizados por médicos quando tiverem que escolher, numa situação em que nem todos poderão ser atendidos, quem terá acesso à UTI com respirador e quem será entregue à própria sorte, provavelmente à morte.

E este momento está chegando rapidamente por lá e vai chegar também em outros lugares, pois prevê-se que em breve a demanda por respiradores será bem maior que a disponibilidade face ao avanço da pandemia da covid-19. Então, esta Escolha de Sofia se imporá aos médicos inexoravelmente.

Bem... pelos critérios previamente divulgados, pessoas mais idosas, aqueles que já tenham alguma doença possivelmente letal e os que tiverem alguma disfunção orgânica prévia (cardiopatas, pacientes renais, etc.) terão menor chance de acesso aos respiradores.

O objetivo expresso deste protocolo (e os objetivos do "mal" são sempre revestidos de nobreza) é tirar das costas dos médicos a responsabilidade de decidir, em palavras minhas, quem terá uma chance de se salvar e quem vai morrer. No fundo, vai entregar a regras formais e decisões burocráticas a sentença de morte daqueles que não terão acesso aos respiradores. E os mais vulneráveis à doença serão exatamente os menos atendidos, os deixados à própria sorte, reproduzindo a cultura do abandono e falta de solidariedade de uma sociedade que sempre relegou os que mais precisam em benefício dos mais "competitivos" e viáveis, agora numa espécie de darwinismo sanitário.

Um segundo objetivo deste protocolo, este não tão explícito e não tão nobre, mas que transparece nos critérios previamente divulgados, é aumentar a porcentagem de cura da doença reduzindo as estatísticas de letalidade. A princípio, pessoas com maior risco de morte pela covid-19 terão menores chances de acesso a respiradores do que aqueles mais jovens e saudáveis, e por isso mesmo mais resistentes, porque assim a porcentagem de cura total aumenta.

Ou seja, para os formuladores de regras impessoais a vida é só mais uma estatística, e o que interessa é o resultado agregado, não o valor pessoal que ela tem para cada um. E assim, para melhorar as estatísticas de cura da doença será priorizada a assistência de quem supostamente menos precisaria, abandonando à própria sorte os mais vulneráveis, numa clara indicação de que, neste darwinismo pandêmico, algumas vidas valem mais que outras.

E isto, como toda a boa burocracia "meritocrática" moderna, vai ser implementado segundo um sistema de pontos que cada candidato a respirador vai receber, com base na idade, estado geral de saúde, nível de risco de morte, etc., que apontará o quanto cada um "merece" ou não uma chance de viver.

Desculpem-me, mas acho isso desumano e desumanizador.

É claro, e tenho consciência disso, que todo o sistema burocrático de decisão e ação é ambivalente, e este também o será. Portanto, não ignoro o papel que regras claras têm no sentido de aliviar a responsabilidade dos médicos nas decisões difíceis que terão de tomar, e de evitar distorções ou preferências pessoais no momento destas tomadas de decisão.

Mas lembro, também, que é assim que se banaliza o mal, por meio de discursos bem intencionados, de regras impessoais gerais perversas (mas que não parecem perversas quando ainda são gerais) e do apego a um senso de dever difuso, que repousa mais no cumprimento destas normas do que na consciência pessoal e na capacidade de julgamento ético de cada um.

E assim a vida vai perdendo a história, o nome, a cara, a cor, o afeto e tudo aquilo pelo que valha a pena viver e lutar, para se tornar tão somente os duros, frios, pálidos, gerais, impessoais e difusos... números.

* Renato Souza é Professor do Programa de Pós Graduação em Extensão Rural da Universidade Federal de Santa Maria

Edição: Katia Marko