Até 2008, a situação das mulheres na conjuntura mundial e brasileira refletia movimentos gerais da economia sobre um jogo estrutural de permanente desvantagem. Por isso nossas denúncias e reflexões, recorrentemente, apontavam a reduzida participação das mulheres no mundo do trabalho remunerado e larga ocupação do tempo na invisibilidade dos cuidados e afazeres domésticos; a incorporação profissional facilitada em inserções ocupacionais desvalorizadas e de caráter social (educação, saúde, assistência e gestão), por um lado, e, por outro, dificultada naquelas que compõe a geração de valor e acumulação (engenharias, produção industrial, construção).
Também que haveria maior sujeição feminina às relações informais e desprotegidas de trabalho e exposição mais intensa e prolongada ao desemprego; e, o recebimento de salários e remunerações inferiores aos masculinos. Na passagem para 2009, a crise da financeirização nos EUA e Europa, porém, tornou o que sempre foi ruim em pior, abrindo as portas para o que nos parece, nesses meados de 2020, tão caótico, quanto duro para os trabalhadores do mundo.
Em um olhar retrospectivo, é possível compreender a cadeia de transmissão gerada pelo estreitamento das margens de lucro no centro do capitalismo e que espalhou globalmente austeridade econômica, conservadorismo cultural e autoritarismo político. A cena, constituída cerca de 10 anos atrás, já colocava em risco a saúde e segurança dos trabalhadores e trabalhadoras muito antes do coronavírus, porque lançou a diretiva da busca por produtividade desfreada e inconciliável com mecanismos de distribuição. Por isso, os três canais tradicionais de repartição entre lucros e salários foram desconstituídos – os Sistemas de Proteção Social e do Trabalho, através da generalização de reformas trabalhistas e previdenciárias similares; a intervenção do Estado voltada a mitigar desigualdades foi banida do debate coletivo; e, a negociação coletiva foi corroída, pela asfixia econômica dos sindicatos e alterações do aparato jurídico.
A eliminação de resistências ao estabelecimento dessa trajetória deu o tom para a política nos últimos dez anos. Não à toa, governos, sindicatos, partidos e movimentos sociais contrários à tendência concentradora se tornaram alvo da desmoralização pública e da violência policial, calcados em peculiar populismo moral e dirigido pelo anti-trabalhismo.
Em processos autoalimentados, a economia precisou se despir do discurso tecnocrático e buscar socorro na política, esta para criar a institucionalidade viável à sede do lucro, voltou-se a legitimação do Estado limitado e agressor através de um ambiente culturalmente estreito e fundamentalista, especialmente perigoso para as mulheres. Nada natural, totalmente construído, através de um método de deslizamento à direita e rupturas administradas pela aparente formalidade (como o impedimento da presidenta do Brasil), o aprofundamento e massificação vêm dando contornos fascistas a esse processo. Essa é uma pintura que parece ser a dos acontecimentos que colocaram a frágil democracia brasileira em vertigem, mas tem sido corriqueira mundo afora e, especialmente, na América Latina. Por isso, a fusão do que vem ocorrendo na economia capitalista mundial, na política e na cultura se refletem agora, com muito menos mediação que antes, no mundo do trabalho, devendo ser o ponto crucial da reflexão operária e feminista nesse Maio dos trabalhadores de 2020.
É visível a repercussão do novo contexto sobre o emprego e a vida dos trabalhadores. No Brasil, houve crescimento das formas de trabalho não assalariadas (mais da metade da força de trabalho ocupada), ascensão das oportunidades de trabalho centradas nos serviços explorados via plaformização (aproximadamente 3 milhões em 2018), limitação das rendas, do orçamento para política social e aumento da pobreza. Além disso, o rebatimento mais intenso da radicalização da luta de classes sobre as trabalhadoras é nítido, pelo estreitamento das oportunidades de trabalho no segmento privado da economia, escasseamento do emprego e rebaixamento dos salários no setor público, e sobrecarga das responsabilidades familiares.
Para nós mulheres, os desafios da classe são os impostos pelo patriarcado atualizado na modernidade conservadora e digital, que continua a sujeitar corpos e caçar nossas liberdades. Também, a esta altura, é obvio que a pandemia do coronavírus explicita as lógicas que se estabeleceram na última década e que somente poderá haver uma mudança se houver uma mobilização lúcida e organizada do segmento que gera a riqueza e a vida - os trabalhadores e as trabalhadoras. E os números, as estatísticas, os indicadores? Pergunta-se ao Departamento Sindical provedor das sinalizações dos embates que sindicatos e movimentos sociais enfrentam no cotidiano. Pois bem, esses números somente serão nossas ferramentas se alicerçados em reflexão sobre o sentido do capitalismo e nosso papel nessa quadra da história. Avante, que maio seja dedicado a esta reflexão e ao fortalecimento do sentido social da luta do trabalho.
*Economista do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE/RS) e ex-coordenadora nacional da Pesquisa de Emprego e Desemprego
Edição: Katia Marko