Rio Grande do Sul

OPINIÃO

Artigo | Enfrentar a fome com comida de verdade

Sem plano de combate à fome, governo gaúcho descumpre lei que prevê 30% da compra de alimentos da agricultura familiar

Brasil de Fato | Porto Alegre |
A agricultura familiar produz no mínimo 70% dos alimentos que chegam à mesa dos brasileiro - Agência Brasil/EBC

A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO/ONU), através do Relatório sobre o Estado da Segurança Alimentar e da Nutrição no Mundo (2014), anunciou a saída do Brasil do Mapa da Fome no Mundo. Naquele período, 98,3% da população brasileira tinha acesso à alimentação adequada, um direito constitucional em nosso país.

Entre os fatores que contribuíram para essa conquista, destacam-se o protagonismo do hoje extinto Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA) e a criação da Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (LOSAN, 2006) e do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN, 2006). Merecem igual destaque o Programa Bolsa Família, o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional da Alimentação Escolar (PNAE), políticas públicas que articulam medidas do governo federal, estados e municípios.

O mesmo relatório, em sua edição de 2019, indicou grandes retrocessos para o Brasil. A curva de desnutrição, há muito descendente, passou a crescer. A subnutrição aumentou, assim como a prevalência de anemia em mulheres em idade reprodutiva. Estimativas revelam que das 108 milhões de pessoas que convivem diariamente com a fome no mundo, pelo menos nove milhões estão no Brasil. Um cenário provocado pelo avanço da pobreza extrema, que, aliado à recessão econômica e aos cortes em políticas sociais causados pela Emenda Constitucional do Teto dos Gastos Públicos (2016) amplia a possibilidade do Brasil vir a compor novamente o Mapa da Fome. Um panorama agravado pelas situações decorrentes da pandemia imposta pelo novo coronavírus.

O Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável do Rio Grande do Sul (CONSEA-RS) vêm alertando as autoridades sobre o problema da fome que cresce nas grandes e pequenas cidades do estado, tornando-se alarmante nesse período de calamidade pública. Uma realidade que, de acordo com estudos do médico, geógrafo e antropólogo Josué de Castro, pode ser considera uma verdadeira epidemia da fome. A situação só não é pior porque existe uma grande corrente de solidariedade, por parte de diversos setores da sociedade civil, que estão mobilizados em ações para a doação de alimentos. Em diversas cidades, nos bairros e nas comunidades, são centenas de iniciativas que estão fazendo a diferença na vida de muitas famílias gaúchas. Fortalecendo essa rede, o CONSEA-RS criou o Comitê Gaúcho de Emergência no Combate à Fome que, junto da Ação da Cidadania e da Cáritas Brasileira Regional têm promovido e estimulado campanhas de solidariedade.

Por ser um órgão consultivo ao poder executivo, o CONSEA-RS também dedica-se a emitir recomendações aos órgãos de governo e ao governador do Estado, indicando estratégias emergenciais no combate à fome. Dentre as recomendações, está a compra de alimentos produzidos por agricultores familiares para serem destinados às famílias em situação de vulnerabilidade. Bem como a importância de implementar estratégias para garantir a continuidade do PNAE, entregando às famílias dos alunos os gêneros alimentícios adquiridos, preferencialmente, de produtores locais, da agricultura familiar. Estas recomendações têm como base estudos de pesquisadores e especialistas que apontam a importância da valorização dos comércios locais como minimercados, feiras livres e compras de agricultores familiares como estratégia de abastecimento alimentar para enfrentar o coronavírus.

A agricultura familiar, responsável pela produção de no mínimo 70% dos alimentos que chegam à mesa dos brasileiros, é um setor produtivo que aproxima o produtor do consumidor, diminuindo custos e encurtando o caminho percorrido. Além disso, essa modalidade atende aos princípios de segurança alimentar e nutricional, produzindo alimentos saudáveis e adequados, reconhecidos como comida de verdade. Em síntese, garantir a compra de alimentos da agricultura familiar é promover o direito a uma alimentação que corresponda a valores e necessidades pautadas pelo referencial tradicional local, atendendo aos princípios da variedade, equilíbrio, moderação e prazer; às dimensões de gênero e etnia e; a formas de produção ambientalmente sustentáveis, livres de contaminantes físicos, químicos e biológicos (LOSAN, 2006).

O RS conta com a Lei Estadual N.°13.922/12, que estabelece a política de compras governamentais de agricultores familiares e da economia solidária. Porém, esta política não está sendo executada. Na contramão de estados como SC, PR e outros que já lançaram chamadas públicas para compras desses setores, o governo estadual gaúcho tem ignorado as recomendações do CONSEA-RS e os apelos das entidades representativas da agricultura familiar. No último dia 17 de abril, a Secretaria de Estado da Educação, em ata de dispensa de licitação (prerrogativa legal devido ao estado de calamidade), anunciou a compra de cestas básicas de uma grande rede de atacado, através de recursos do PNAE, totalizando mais de R$23 milhões. Esta compra tem, no mínimo, dois problemas graves que violam a Lei do PNAE: os itens adquiridos não atendem às exigências de uma alimentação adequada, contendo excesso de açúcares, por exemplo. Além disso, descumpre a determinação de garantir que no mínimo 30% de todas as compras realizadas com recursos do programa sejam adquiridas de agricultores familiares. Portanto, cabe ao governo do Estado explicar essa decisão e, aos órgãos fiscalizadores, manifestar-se sobre o ocorrido.

A sociedade civil está fazendo a sua parte, demonstrando diversos gestos de solidariedade. Para enfrentarmos e vencermos juntos o novo coronavírus e a epidemia da fome que se instala em nossas cidades, o governo do Estado precisa cumprir urgentemente com suas atribuições no que se refere às estratégias de enfrentamento à fome, apresentando um Plano Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional, com ações, metas e políticas públicas articuladas entre as suas secretarias. Como diria o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, “quem tem fome, tem pressa”!

* Juliano Ferreira de Sá é presidente do Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável do Rio Grande do Sul (CONSEA-RS)

Edição: Marcelo Ferreira