Nos últimos dias, temos observado avaliações a respeito da nova pandemia, sugerindo que o novo coronavírus é “democrático”, no sentido de que tanto o adoecimento quanto a mortalidade não distinguiriam raça, cor ou classe social.
Entretanto, epidemias não afetam igualitariamente as diferentes populações. Basta analisar o perfil social daqueles mais afetados por tuberculose no Brasil ou comparar as diferenças de prevalência e mortalidade por Aids entre Europa e África.
A disseminação do novo coronavírus é acelerada pela proximidade social e pelo contato. Sobretudo favelas, periferias de grandes cidades e presídios não proporcionam “distanciamento social”, dificultando a adesão às medidas de prevenção.
Lavar e higienizar as mãos somente é possível com água corrente disponível, sabão ou álcool gel. Pessoas que vivem em situação de rua ou em habitações sem água estão impedidas de adotar adequadas atitudes de prevenção.
A possibilidade de permanecer vários dias sem sair de casa é muito desigual entre empresários e trabalhadores, ricos e pobres, executivos e operários. A desigualdade é impulsionada pela negação do Estado em promover renda digna, que protegeria os mais vulneráveis.
O perfil dos mortos pela covid-19 nos EUA não deixa dúvida. Comunidades de baixa renda e constituídas em sua maioria por negros e latinos concentram proporcionalmente mais mortes em comparação às comunidades de renda mais elevada, habitadas majoritariamente por brancos.
Em São Paulo, já é percebido aumento de mortes entre moradores da periferia. Em Pernambuco, Ceará, Amazonas e Rio de Janeiro, já ocorrem mortes na própria residência e desassistidas, além de diagnóstico tardio nos hospitais.
Diversos estados já notificaram casos em seus presídios, fenômeno já esperado, considerando-se a omissão e negligência da política nacional de atenção à população encarcerada, que revela seu desvalor à vida.
No Rio Grande do Sul a taxa de covid-19 entre brancos era de 100% no dia 11/03, caindo para 77% em 15/03. Evolução semelhante ocorre em relação ao nível de escolaridade: a notificação de casos entre pessoas com ensino superior diminuiu de 40% para 10% no mesmo período.
A evolução destes dados representa o trajeto da epidemia na sociedade brasileira, introduzida por brancos pertencentes a camadas economicamente mais favorecidas e sua subsequente progressão na direção de negros, pardos, de baixa renda e menos escolarizados.
Além disso, serviços de saúde implantados nas áreas mais periféricas não possuem, de forma geral, a estrutura tecnológica e qualidade na assistência oferecida em grandes hospitais da rede privada de saúde, estabelecendo diferentes níveis de resolutividade clínica.
Caso o sistema público de saúde do estado sofra o alertado colapso, aqueles que desenvolverem formas graves de covid-19 e dependerem exclusivamente do SUS não terão o mesmo acesso a hospitais, UTIs ou respiradores, comparados àqueles que podem arcar com o custo de planos privados de saúde.
Portanto, caso não sejam implementadas políticas de renda e de qualidade de serviços de saúde que priorizem populações excluídas e de baixa renda, esta epidemia provavelmente repetirá as anteriores. Os mais afetados, possivelmente, serão aqueles que não possuem recursos para prevenção e cujo acesso a serviços de saúde poderá ser tardio, resultando em maiores taxas de mortalidade. Refiro-me a pobres, negros, desempregados, trabalhadores formais e informais, encarcerados e moradores de favelas: socialmente excluídos e expostos a uma epidemia que não é democrática e que afeta um mundo desigual.
(*) Médico Infectologista, consultor ad hoc da Sociedade Riograndense de Infectologia para COVID-19
Edição: Sul 21