Rio Grande do Sul

SOLIDARIEDADE

Moradoras da Restinga produzem e distribuem máscaras para quem mais precisa

Iniciativa vem de mulheres ligadas ao projeto Defensoras Legais Populares e foi abraçada pelo IFRS com projeto de renda

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Cooperativa da comunidade Vida Nova puxa ação que foi expandida para outras partes do bairro Restinga, em Porto Alegre - Divulgação

Um grupo de mulheres da Restinga, bairro da zona sul de Porto Alegre, se uniu pela proteção das moradoras e moradores da região e passou a fabricar voluntariamente máscaras reutilizáveis para distribuir gratuitamente a famílias com dificuldades de adquirir o item de proteção nesse período de pandemia. A ação solidária, denominada Pandemia com Empatia, conta com uma extensa rede de apoio. Nasceu a partir de um grupo ligado ao projeto Defensoras Legais Populares e é mais uma iniciativa exemplar que nasce nas próprias comunidades periféricas a partir da organização e acesso à informação.

“O grupo nasceu no WhatsApp e com o pessoal falando, a gente começou a se organizar por bairro. Aqui na Restinga a gente já está bem avançado em termos de organização”, explica a líder comunitária Kathielly Pereira Guimarães, que é secretária da associação da comunidade Vida Nova e umas das responsáveis pela ação. Ela conta que a ideia inicial de contribuir no combate ao coronavírus veio da defensora pública Isabel Rodrigues Wexel, que faz parte desse grupo, que conta ainda com “advogada, assistente social, outras defensoras, líderes comunitárias e pessoal que faz ação de rua. São várias profissões de mulheres que se juntaram pra criar esse grupo, onde a gente troca informação e vai trocando experiência do dia a dia”.


Máscaras são entregues com instruções para uso e higienização / Divulgação

Kathielly conta que as máscaras são fabricadas por costureiras da comunidade, a partir de doações de matéria-prima, com apoio de moradores e do campus Restinga do Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS). São distribuídas em um saquinho higienizado contendo duas unidades e um manual de uso. A ideia é produzir no mínimo cinco mil. “Só que na comunidade (Vida Nova) mesmo, temos em torno de 407 famílias. E são famílias com até 10, 15 pessoas por terreno. Então é bem grande a demanda de máscara pra cá, fora a comunidade Restinga num todo que é grande. E a gente também está atendendo pra fora”, destaca.

A comunidade Vida Nova é uma ocupação da Restinga que por anos lutou pela regularização da área, que é de propriedade do município de Porto Alegre. Sofre com falta de infraestrutura e conviveu por muito tempo com ameaças de reintegração de posse. A partir da formação de uma cooperativa e muita luta dos moradores, conquistaram o direito de ficar na área para posterior regularização do espaço, através da Reurb-S, na forma da Lei Federal 13.465/17, que permite a legitimação fundiária da área pública. A Restinga, mom mais de 50 mil moradores, é um dos bairros mais populosos da capital gaúcha. Segundo dados do IBGE de 2010, é um dos bairros com maior concentração de pessoas autodeclaradas negras em Porto Alegre (37,6%) e tem uma das menores médias de rendimentos dos responsáveis por domicílio da cidade, de 2,1 salários mínimos.


Vista aérea do bairro Restinga / Reprodução Facebook

A líder comunitária, que vive com a mãe e dois filhos, chama a atenção para a dificuldade que é adquirir uma máscara para parte dos moradores da comunidade, da Restinga como um todo e das demais periferias. “Agora as pessoas vão ter a obrigação de ter a máscara no transporte público, mas quem é empregado doméstico ou quem tá trabalhando no supermercado e alguns lugares, eles ganham pra usar no emprego, fora do emprego não. Eles têm que se preparar para isso, mas o salário deles já é pequeno, já é apertado pra gastar numa coisa que não estava no orçamento de ninguém”, afirma.

Solidariedade e informação transformam

Para Kathielly, ações como essas mostram que solidariedade sempre é uma prática possível. “Acho que o recado é que a gente tem que aprender, tanto na covid-19 como no dia a dia, de coisas que ainda vamos passar, a olhar para o próximo”. Mas não só isso. “Na questão de ajudar, acabamos vendo realidades diferentes das nossas, por mais que a gente tenha necessidade, tem gente que precisa muito mais e não tem acesso à informação igual a nós”, avalia.

Ela exemplifica com sua situação familiar. “Um dos assuntos que eu e a minha mãe mais falamos é a questão de acesso à informação, do quanto a nossa vida mudou desde que a gente veio morar na ocupação. Desde que a gente decidiu ser líderes comunitárias, a gente corre muito atrás disso, não só pra ajudar o próximo, mas a gente também, e o quanto de informação que a gente no passado não sabia e agora a gente passa a ter acesso. Então, a gente tem acesso ao pessoal da saúde, acesso a estudo, que antigamente era mais difícil”, afirma.

Informações que, segundo ela, teriam feito a diferença, “então o máximo que a gente consegue passar pras pessoas a gente repassa porque a gente também um dia teve a necessidade de ter um arroz, um feijão em cima da mesa e não tinha”.

Parcerias importantes

Kathielly, que já foi aluna do IFRS e hoje vê sua mãe estudando na instituição de ensino federal, destaca a importância das parcerias nesse processo, em especial do Instituto, e também do grupo de apoio nascido do projeto Defensoras Legais Populares, iniciativa da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul que conta com o apoio da organização da sociedade civil Themis. Esse projeto forma agentes comunitárias voluntárias que acompanham vítimas de violência doméstica, realizando um monitoramento com inspiração na forma de atuação das agentes de saúde. Já o IFRS tem uma forte atuação junto à comunidade, desenvolvendo projetos de extensão na Restinga, além de iniciativas de combate ao coronavírus.

“A importância desses apoios é conseguir fazer essa ligação com as mulheres que vão fazer a costura quanto com as pessoas que precisam. Por mais que a gente trabalhe com o pessoal, têm pedidos que muitas vezes a gente não ouve, não tem acesso. Então as gurias da Themis conseguem nos dar essa direção pra quem realmente precisa também. E o pessoal do IFRS tem sido bem importante. Eles têm conseguido bastante doação e muitas vezes eles fazem esses carretos pra nós, e fazem essas entregas”, explica.

Ações do IFRS junto à comunidade


Campus Restinga do IFRS / Divulgação IFRS

O campus Restinga do IFRS fica ao lado da ocupação Vida Nova. A produtora cultural extensionista da instituição, Thaís Teixeira da Silva, conta que o Instituto tem contato com esse grupo a partir de um projeto de mulheres da comunidade desenvolvido em 2019, que promoveu um espaço de escuta e formação relacionado a questões de gênero, direitos humanos e participação popular. “Avalio como importante a interlocução entre os saberes acadêmicos e o saber popular forjado nas experiências de vida dentro das comunidades”, destaca.

Graças ao IFRS, esse grupo de mulheres que trabalha de forma voluntária na confecção das máscaras vai passar a receber pelo trabalho, a partir de um edital de fomento e geração de renda conquistado pela instituição, conta a coordenadora de extensão do campus Restinga, Milena Silvester. “Várias ações estão ocorrendo no bairro, fazendo suporte para ações que já estão acontecendo. Lançamos um edital de ações de combate à pandemia, tanto do ponto de vista socioeconômico quanto do ponto de vista da Saúde. Tivemos cinco editais contemplados”, aponta.

Também foram contemplados projetos de produção de álcool gel e de sabão para serem distribuídos na comunidade, além da criação de uma horta comunitária na ocupação a partir de uma iniciativa do curso de agroecologia do IFRS. “Esse projeto também visa o pagamento das pessoas da comunidade, muitas delas são nossos estudantes e perderam rendimentos, então a ideia é fazer geração de renda a partir da produção de alimentos para a segurança alimentar da comunidade e no futuro ampliar para que se torne um projeto permanente dentro da periferia”, afirma.

Dados referentes à situação socioeconômica dos 797 estudantes vinculados ao campus Restinga mostram um pouco da realidade socioeconômica na região, apresentando um total de 512 famílias (64,24%) com acesso precário e irregular à renda. O levantamento divulgado pelo IFRS aponta que as famílias nessa situação ou não possuem renda fixa em decorrência de relações informais de trabalho, ou apresentam renda nula em razão de situação de desemprego. Já o acesso regular à renda (renda fixa) é identificada em apenas 285 famílias do total das 797 famílias (35,75%).

Do total das 797 famílias, 112 (14%) configuram-se como famílias extensas ou numerosas, sendo compostas por cinco ou mais membros. As famílias chefiadas pela mulher chegam a 35%. Já o percentual de famílias que vivem em ocupação ou área não regularizada é de 28,23%.

A fim de apoiar esses estudantes em situação de vulnerabilidade social, para além das iniciativas institucionais, os servidores do IFRS lançaram uma campanha de solidariedade que visa a aquisição de gêneros alimentícios. Intitulada Convida 19 (1 = 20), a campanha tem a meta de arrecadar o equivalente a uma cesta básica por estudante beneficiário no valor de R$ 100,00 a cada dois meses, que serão doadas às famílias dos estudantes.


IFRS já iniciou doações a moradores da comunidade Vida Nova / Foto: Divulgação

“Se chama Convida 19 porque tu contribui com a campanha e compartilha com 19 pessoas”, conta a coordenadora, que celebra o valor já arrecadado de cerca de R$ 8 mil. “Estamos fazendo a compra e vamos distribuir cestas de alimentos agroecológicos de hortaliças e legumes que vamos adquirir do assentamento do MST Filhos de Sepé, de Viamão”, explica, lembrando que junto das cestas serão entregues aos alunos em situação de vulnerabilidade máscaras de proteção e um livro.

Essa parceria com o MST já ocorre no campus, conta Milena. “Todas as terças-feiras, três famílias fazem a feira orgânica aqui no campus, e eles também perderam seus rendimentos com a pandemia. Então essa é uma forma também de inserir e fomentar geração de renda para esses agricultores”, destaca, apontando que o grupo de servidores faz o que consegue para ajudar a comunidade. “A Restinga é muito grande, existem várias iniciativas e não conseguimos agregar em todas elas, mas vamos tentando”, conclui.

 

Edição: Katia Marko