Os tempos de 2020 são duros, são de cólera. Mas os tempos já foram duros em outras épocas
Quis o destino, a vida ou a História, como escreveu Frei Betto sobre outros tempos em A Mosca Azul (que estou relendo, e onde Frei Betto, saído da cadeia, fala de sua inesperada ida a Vitória em 1974, para trabalhar com as CEBs, Comunidades Eclesiais de Base), que eu esteja literalmente confinado em casa de mamãe quando dos meus meia nove, no interior do interior do Rio Grande do Sul, por causa do coronavírus que atinge quase todo mundo em todo mundo, especialmente os que estão beirando os setenta de vida e sobrevivência.
Os tempos de 2020 são duros, são de cólera. Os tempos já foram duros em outras épocas, quando também os militares bateram à porta, e empalmaram o poder em ditadura aberta, esmagando a democracia de forma direta. O povo se organizou na base e resistiu heroicamente. Os meia nove não poderão ser comemorados devidamente, pelas circunstâncias hoje vividas (ainda que, como muitos sabem, eu festeje meu aniversário pra valer só de dez em dez anos, portanto 2021).
Guardadas todas as proporções e abissais diferenças (e andei também relendo as Cartas da Prisão e O Canto na Fogueira, cartas dos freis dominicanos na prisão no início dos anos 1970), estamos hoje todos mais ou menos ´presos´, ainda que sem tortura, assassinatos, exílio, e com ditadura disfarçada. Presos dentro de casa, sem poder sair. Em vez de cartas, estamos ligados no celular, fazendo reuniões virtuais, os mais velhos aprendendo tudo de internet e redes sociais, e prestes a entrar no reunionismo, agora não presencial, de décadas atrás.
É a história de alguma maneira se repetindo. Estamos com um governo militar autoritário, fascista, praticamente se lixando para a saúde da população, fruto de um golpe e desdenhando a democracia.
O tempo (não) passa, no meio da angústia e sofrimento de estar longe dos seus - avós dos netos, filhos dos pais, sem poder abraçar familiares e amigos -, ou de ver mortes e mais mortes todos os dias, a dor se espalhando rápida e preocupantemente. Ninguém imaginava, há apenas dois meses, ver um 2020 assim. Adiei duas vezes minha tradicional chegada de início de ano em Florianópolis, Sul da Ilha: muitas atividades, mil articulações em andamento, Movimento Fé e Política com próximo Encontro no Rio Grande do Sul, Campanha Latino-americana e Caribenha em Defesa do Legado de Paulo Feire, Fórum Social das Resistências acontecendo em janeiro em Porto Alegre, viagens de mobilização para vários pontos do país, etc., etc., etc.
Consegui, finalmente, ir a Floripa dia 2 de março, despreocupado e feliz, pronto para descansar, pensar em 2020 de longe, ou nem pensar. Voltei para atividades da Educação Popular em Saúde, em Passo Fundo, dia 13 de março, Assembleia Geral do CAMP dia 14, mais baile do meu bloco de carnaval IMMA KNILL (na tradução, ´Sempre Bêbado´) no Luizão em Santa Emília. Havia já alguma preocupação e muita brincadeira entre os que se encontravam, uns se abraçando, outros não, mas nenhum cuidado maior. Há 40 dias atrás!!!
E já fiquei em Santa Emília, não me deixaram mais ir embora. Me ´internei´ em casa de mamãe dia 15 de março, na roça, a 12 km da cidade de Venâncio Aires, minha terra, cercado de árvores e no meio da seca infernal que está fazendo no Rio Grande do Sul. De lá não saí mais, a não ser para levar a cuidadora de mamãe para sua casa nos fins de semana, encaminhar o conserto da tela do celular, que caiu da minha mão e quebrou, e depois o notebook, cuja tela trincou. Possivelmente nervosismo, ansiedade, quase cansaço, incerteza sobre o futuro, cadê o amanhã e a esperança?
O tempo (não) passa. Sobrou conversar bastante com mamãe, de 93 anos, em alemão, como talvez nunca tenha feito na vida, a não ser quando criança, (minhas andanças pelo mundo, sempre cobradas por ela e pouco compreendidas, nunca permitiram), ler ou reler livros seminais para minhas opções de vida, acompanhar mais de perto a vida de meus irmãos agricultores familiares, comer bergamotas, laranjas, butiás, coquinhos, goiabas, acerolas, pitaias, carambolas, jaboticabas, maracujás, phitalis, uva japonesa e outras tantas gostosuras colhidas direto no pé ao lado de casa, sorver chimarrão, o chima, três vezes ao dia, cozinhar milho e pinhão na chapa, tomar caipas e cevas nos ‘findis’, bem acompanhado, pela família, e agora, com o frio chegando, ficar ao lado do fogão a lenha esquentando os pés e o coração.
O tempo (não) passa. Mas passa. A pandemia há de passar, se a gente tomar todos os cuidados. Assim como o governo fascista passará, do mesmo jeito que um dia a ditadura militar acabou, à base de luta, mobilização popular, organização do povo, de baixo para cima. E a democracia voltou a sorrir. Talvez os últimos acontecimentos sejam luz.
Espero chegar aos setentinha, daqui a um ano, leve, livre, solto. E feliz, cheio de esperança e fé.
Edição: Katia Marko