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ARTIGO | Quanto vale uma vida em meio a pandemia

A maior parte dos especialistas aponta como fundamental a existência de uma vacina para o fim do isolamento social

Porto Alegre | BdF RS |
Donald Trump, em suas redes sociais, apoia manifestações que pedem o fim do confinamento nos EUA, país que acumula 45 mil mortes - Foto oficial da Casa Branca por Joyce N. Boghosian

São Paulo, 22 de abril de 2020. Segundo os dados da Universidade de John Hopkins, hoje são mais de 178 mil mortes causadas pela covid-19 no planeta. Considerando o total de 2.582.529 casos, o número representa uma taxa de mortalidade de 6,88%. O isolamento social mostrou efeito. Alguns países da Europa mais atingidos pelo novo coronavírus como Espanha, Itália, França e Alemanha mostram o famoso achatamento na curva. A Europa estuda os primeiros passos de flexibilização para o isolamento, porém com cautela. Estamos longe de conter o coronavírus. A maior parte dos especialistas aponta como fundamental a existência de uma vacina para o fim do isolamento social.

Apesar desses dados, Donald Trump, em suas redes sociais, apoia manifestações que pedem o fim do confinamento nos EUA, país que acumula 45 mil mortes causadas pelo novo coronavírus. Trump vê a pandemia como uma guerra. A história deixou claro que para republicanos como Trump, Regan e Bush, as mortes de jovens negros e latinos são um preço que o Estado americano está disposto a pagar numa guerra. Foi assim na segunda grande guerra, na Coreia, no Vietnã, no Iraque, no Afeganistão.

Evocar o fim ou mesmo a flexibilização do distanciamento nos EUA parece uma ideia chocante para qualquer pessoa em sã consciência que não tenha um império de hotéis e cassinos como Trump. Os governadores dos Estados americanos alertam que não há testes suficientes. Assim como o sistema de saúde totalmente privado não tem UTIs para receber uma onda de novos casos. Porém, Trump sabe bem por onde caminha. Os ricos e a classe média americana serão pouco afetados. Essa fatia privilegiada assistirá do conforto do home office os números de mortes entre os pobres dispararem. Assim como o fizeram nas outras guerras transmitidas em detalhes sangrentos pela CNN.

Algo parecido acontece no Brasil. O militar Bolsonaro não se importa com as baixas de alguns soldados para que a velha economia siga em frente. O isolamento vertical proposto por Bolsonaro é só a continuidade do genocídio que acontece nas periferias brasileiras há décadas. Bolsonaro hoje propõe que os serviços voltem e quem puder fique em casa. O que de fato acontecerá se a vontade de Bolsonaro for feita é que pobres irão para linha de frente lotar ônibus e morrerem nas filas de hospitais sobrecarregados. Enquanto isso, as fatias mais privilegiadas da população seguirão quentinhas em casa o máximo que puderem.

Além das questões econômicas, Bolsonaro coloca em jogo as vidas das pessoas numa tentativa desesperada de se manter no poder. Durante o último domingo, o presidente discursou para uma aglomeração de pessoas que pedia intervenção militar. Há quem diga que Bolsonaro se faz cada vez mais de menino maluquinho para que abram logo o processo de impeachment. Nesse momento ainda lhe resta algum apoio popular. Quando a crise apertar, esse apoio tende a desaparecer. Em resumo, Bolsonaro chama para briga quem não está interessado em brigar porque ainda tem amigos por perto. A parte triste é que em meio a esses movimentos estratégicos, o presidente aposta a vida dos próprios aliados.

A lógica calculista de Trump e Bolsonaro é praticada a milhares de anos. No entanto, foi Gary Becker, da famosa Universidade de Chicago, quem a sistematizou para as ciências econômicas. Certa tarde quando ia para uma reunião, Becker se viu em frente ao seguinte problema: ou estacionava na rua e corria o risco de ganhar uma multa ou perdia a reunião. Dada a importância da reunião, Becker colocou na ponta do lápis e concluiu que transgredir a lei valeria a pena. Desde então, ele começou a relativizar de forma econômica diversas questões sociais antes não tocadas por economistas. 

Gary ganhou o Nobel de Economia em 1992. A Universidade de Chicago ganhou prestígio. A cada ano, Chicago produz uma nova fornada de economistas liberais, como o ministro Paulo Guedes. Assim com Becker, os Chicago Boys avaliam, por exemplo, o valor das baleias em águas brasileiras. Ou se vale a pena ou não investir no reforço de uma barragem de contenção em Brumadinho. Ou quantas vidas custam para manter os hotéis e casinos de Trump funcionando. Ou quantos infectados por coronavírus valem para que Bolsonaro fique no poder por mais algum tempo. Ou quanto custa a vida da sua mãe. Por sorte da humanidade, existem na economia bons contrapontos aos Chicago Boys.

No ano de 1944, a cidade de Dhaka sofria com uma onda de assassinatos por conta de conflitos entre muçulmanos e hindus. Numa tarde, o jovem hindu de onze anos Amartya Sen encontrou no jardim da sua casa um homem todo ensanguentado. O homem era muçulmano e se chamava Kader Mia. Apesar da advertência da esposa para não se expor em uma área hindu, Kader Mia não aguentou ver sua família faminta. Optou por correr o risco e aceitar o trabalho como pedreiro. Kader Mia morreu horas depois de chegar ao hospital. O episódio, porém, marcou profundamente o jovem Sen e o fez perceber que a pobreza não se resumia a falta de dinheiro e comida. Os pobres não tinham muitas liberdades que os ricos davam por certas. Kader Mia, por exemplo, não tinha a liberdade de trabalhar em um lugar seguro.

Amartya Sen se tornou filósofo e economista. A partir do episódio trágico de Kader Mia, Sen questionou os pressupostos básicos da economia. Para ele, um país rico não era apenas medido pela quantidade de dinheiro. A riqueza está na variedade de capacidades que a população tem: estar nutrido, boa saúde, sentir-se seguro, fazer parte da comunidade. Para Sen, o desenvolvimento da sociedade é igual à expansão das capacidades. Ou seja, o quanto uma sociedade dá suporte para que as pessoas sejam livres com segurança.

Para Sen, a educação é um dos principais fatores de libertação, pois dá acesso a leitura, escrita e reflexão. A democracia é outra liberdade importante para o desenvolvimento real. Através dela os indivíduos podem escolher os rumos da comunidade. Em complemento à educação e a democracia, Sen ressalta a importância da liberdade de imprensa para ampliar os horizontes da população, alertar para possíveis ameaças e pressionar os políticos. Os estudos de Sen transformaram a economia. Em 1990, Sen em parceria com o paquistanês Mahbub ul Haq criou o famoso IDH (Índice de Desenvolvimento Humano). O Prêmio Nobel de Sen veio em 1998. Seis anos após Gary Becker.

Amartya Sen e Gary Becker tiveram visões muito distintas sobre a economia. Enquanto o primeiro enxergou a liberdade através da proteção da vida como fator primordial, o segundo viu a liberdade através da precificação de tudo. Vivemos um momento inédito. Novas relações de procura e demanda se estabelecem frente ao distanciamento social. A maior prova disso foi o petróleo americano chegar a preços negativos na segunda-feira, dia 20. Sem ter onde estocar o petróleo refinado, os produtores americanos pagaram para que levassem a produção de maio embora. Esse cenário seria impensável, há dez anos atrás, mesmo para os ficcionistas mais inventivos. O fato é que temos uma oportunidade única na história. A oportunidade de reconfigurar valores de acordo com novas necessidades e percepções de mundo. Temos a oportunidade de cobrar políticos como Trump, Bolsonaro para que todos tenham condições igual de escolher se querem ir para rua ou não.

Edição: Katia Marko