Educar é algo que a priori se faz presencialmente. É nesse contado direto que acontece a sociabilidade, a troca da afetividade, onde as dúvidas são sanadas de forma mais rápida. Com a pandemia, esse cenário teve que ser reinventado. Na rede pública de ensino do Rio Grande do Sul, com as aulas suspensas desde 19 de março, a saída adotada pelo governo estadual para dar sequência ao ano letivo foi o estabelecimento de aulas programadas.
Criticado por educadores pela forma como está ocorrendo, esse sistema prevê a disponibilização das aulas pelas escolas estaduais. Diversos meios digitais são usados, como mensagens de WhatsApp ou Facebook, compartilhamento de arquivos de áudio e vídeo, por e-mail, por salas virtuais através do Google. Há ainda a possibilidade da entrega dos materiais pedagógicos a quem não tem acesso à internet, mas conforme a Secretaria Estadual da Educação (Seduc), a forma adotada depende das possibilidades de cada comunidade escolar.
Uma pesquisa feita pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), entre agosto e dezembro de 2018, aponta que 58% dos domicílios no Brasil não têm acesso a computadores e 33% não dispõem de internet. Entre as classes mais baixas, o acesso é ainda mais restrito. Os dados apontam que, nas áreas rurais, nem mesmo as escolas têm acesso à rede mundial de computadores: 43% delas afirmavam que o problema é a falta de infraestrutura para o sinal chegar aos locais mais remotos.
Com aulas suspensas até o dia 30 de abril, mas sem uma previsão concreta do retorno das atividades, o sistema tem desafiado os envolvidos, em especial os professores. Com salários atrasados e pagamento parcelado, a categoria tenta manter suas atividades e ensinar os alunos através das aulas programadas, lecionando à distância e enfrentando o desnível entre aqueles que têm e os que não têm acesso à internet.
Conforme a presidente do Centro dos Professores do Estado do Rio Grande do Sul (CPERS), Helenir Aguiar Schürer, o que ocorre no estado não é de fato o modelo de Educação à Distância (EAD), uma vez que essa modalidade só acontece quando existe uma plataforma que permita aulas online e com acesso a todos. “Aqui nós temos jovens que não têm acesso à internet, onde alguns estão conseguindo receber através de e-mail os seus afazeres. Outros através do WhatsApp e muitos ainda os pais têm que ir na escola buscar os trabalhos para serem desenvolvidos domiciliarmente.”
O relato de Clea Blós ilustra a situação. Cabeleireira, moradora da Vila Santa Rita, comunidade da Grande Cruzeiro em Porto Alegre, ela integra um projeto de contraturno escolar chamado Fazendo História, que atente de 20 a 25 alunos, e é mãe de dois filhos em idade escolar. Questionada sobre aulas à distância, ela diz: “Está surgindo um boato de que eles estão tendo aula on-line, mas pelo menos os meus alunos e os meus filhos não. Como eu sei que na nossa periferia, no nosso local, é muito difícil isso acontecer, eu gostaria de ter a certeza se isso está acontecendo, se é só para a classe média alta, porque nós não estamos sendo contemplados nesse sistema”.
Mel Berny é professora da rede estadual em Porto Alegre. Leciona para alunos dos anos iniciais do Ensino Fundamental na comunidade periférica da São José, no morro da Cruz e Tuca. Com idades entre 8 e 9 anos, alguns já leem, outros ainda estão no processo de alfabetização. Apesar da pouca idade, a maioria tem celular ou acesso ao dispositivo. Porém, acredita Mel, poucos têm acesso de fato à internet.
“Muitas famílias estão tentando sobreviver nesse momento de pandemia, então o acesso à internet é algo muito distante”, acentua. Ainda de acordo com ela, os alunos geralmente não fazem nem as tarefas para casa, os chamados tema de casa, porque falta estrutura e rotina escolar. “Imagina agora, no meio de uma situação dessas”, frisa.
Conforme explica Mel, o que vem acontecendo com as aulas programadas é que cada escola se vira como pode e com os recursos que têm para levar os conteúdos das aulas para os alunos. E os alunos se viram como podem para ter esse acesso. “As aulas deveriam prezar por aulas lúdicas e não aulas conteudistas. O que tenho visto é essas aulas cheias de conteúdos, sem nenhuma explicação básica para os alunos e uma cobrança excessiva da mantenedora em exigir das direções e dos professores planejamento das aulas programadas sem levar em conta a falta de recurso”, aponta Mel, reforçando que muitas vezes nem mesmo os professores têm acesso à internet.
Exigência cai sobre professores
Helenir destaca que o governo estadual vem exigindo dos professores que façam um curso de aperfeiçoamento em uma plataforma que não tem as condições para isso. “Temos relatos de professores que tiveram que acordar as quatro horas da manhã para poder acessar a plataforma e poder desenvolver esse trabalho de formação de professores. Tem sido extremamente estressante e pesado”, relata. Soma-se a isso as dificuldades financeiras dos professores, “mais uma sobrecarga que caí em cima dos professores e dos funcionários gerando mais estresse”.
Ainda com salários congelados, os professores vêm sofrendo um desconto mensal de cerca de 30% dos seus salários, por conta da greve deflagrada no ano passado. “Os professores estão gastando o pouco salário em comida e medicação. Como trabalhar EAD dessa forma? Parece mais uma forma de ‘ajeitar’ da forma que der, sem se preocupar de fato com a qualidade e o acesso. Muitos professores estão ficando adoecidos com essa questão da falta de dinheiro e agora têm essa ameaça, se não fizer, corre risco de perder a efetividade”, desabafa.
Professora de história da rede estadual e também da rede privada em Porto Alegre, Muriel Rodrigues de Freitas, que trabalha com estudantes de EJA (Educação de Jovens e Adultos), corrobora com o que disse a professora Mel e complementa: “Professoras e professores estão tendo demandas que ultrapassam suas possibilidades de atendimento e suas vidas privadas estão sendo muitas vezes expostas quando suas redes sociais são utilizadas como meios de interatividade e até seus telefones celulares compartilhados com famílias para servirem de suporte”.
Mesmo compreendendo que nenhum governo estava preparado para esse tipo de situação e que algumas respostas rápidas eram necessárias também na área educacional, Muriel avalia que já se pode apontar algumas possibilidades positivas e negativas. Para ela, a partir das diversas tentativas de interatividade entre escolas e estudantes, pode-se pensar em limites de exigência tanto para quem está tentando produzir e construir algum conhecimento quanto para quem precisa absorver e interpretar todas essas novidades.
Diferentes realidades
Ao traçar um comparativo entre as duas redes de ensino, a professora lembra dos abismos existentes entre as escolas públicas e as privadas, principalmente no que diz respeito às questões estruturais e econômico-sociais dos estudantes. “Pensar as aulas à distância sem a metodologia, a tecnologia e o envolvimento prévio de todas as pontas não nos permite enxergar com a clareza necessária a quantidade de problemas e dificuldades envolvidos”, destaca.
De acordo com ela, os maiores problemas na escola pública giram em torno da resistência de estudantes mais velhos em interagir com as tecnologias que permitem estudos não presenciais. Também o fato de milhares de jovens não terem acesso à internet, ou se têm, dividem o celular ou computador com outros membros da família. Outro aspecto, pontua, é a falta de planejamento por parte do Estado em oferecer suporte técnico para os professores, além da disponibilização de uma plataforma única, e não exigindo que estudantes postem nas redes sociais imagens suas cumprindo as atividades.
Já as escolas privadas, segue comparando, podem oferecer as plataformas e os estudantes têm os meios para interagir nelas. Porém, estão sendo massacrados com enormes quantidades de conteúdos e atividades que exigem, além de acompanhamento especializado dos professores, tempo e organização familiar diferente das normais.
A seguir, confira a entrevista completa que a presidente do CPERS concedeu ao Brasil de Fato RS:
Brasil de Fato RS - Qual a análise que tu faz do comportamento do governo frente à pandemia no tocante a educação?
Helenir Aguiar Schürer - O comportamento do governo frente à pandemia, no tocante à educação, tem dois lados. Primeiro, está correto quando ele decreta isolamento por causa da pandemia, protegendo a vida dos alunos, dos professores e dos funcionários. O que não está sendo correto são algumas ações em que o governo aproveita essa pandemia, onde não se pode fazer grandes mobilizações, para retirar direitos da categoria. Direitos históricos nossos que foram retirados naquela votação do pacote da reforma administrativa, ele aproveita agora na pandemia para acelerar esse processo.
BdFRS - Como fazer EAD quando a realidade de muitas crianças e jovens no estado é sem acesso à internet? O que está sendo feito nesses casos?
Helenir - Aqui no RS, é importante que se diga que não está acontecendo o EAD, uma vez que essa modalidade só acontece quando você tem uma plataforma com acesso a todos e que se possa dar aula online para os alunos, em sua totalidade, em que todos eles possam se conectar e receber essas aulas. Aqui nós temos jovens que não têm acesso à internet, onde alguns estão conseguindo receber através de e-mail os seus afazeres, outros através do WhatsApp, e muitos ainda tendo que os pais ir na escola buscar os trabalhos pra serem desenvolvidos domiciliarmente.
É importante resgatar, aqui no estado do Rio Grande do Sul, na orientação do governo, e acho que isso foi correto também, foi de não dar nenhuma disciplina nova. Esses trabalhos que estão sendo feitos são única e exclusivamente para reforçar aquelas disciplinas já trabalhadas em sala de aula, em aula presencial. Sabemos das dificuldades, têm alunos com mais facilidade, mas nós temos alunos extremamente carentes e que, além de terem essa dificuldade, de ter que buscar os seus trabalhos na escola, muitas vezes eles não têm ninguém para os auxiliar em casa. E não somente os alunos carentes, muitas vezes alunos têm mais poder econômico, mas mesmo assim não têm ninguém disponível para ficar com ele, com paciência para explicar e ajudá-los nas suas tarefas. Esse é o papel que o professor faz em sala de aula. Isso também é uma perda pedagógica que os alunos têm.
BdFRS - Quais as principais críticas dos professores e o posicionamento do CPERS?
Helenir - A principal crítica dos professores, que temos recebido, sobre esse processo, é o acúmulo de tarefa. Veja bem, quando tu estás em sala de aula, se um aluno tem uma dúvida, automaticamente o professor retira sua dúvida utilizando mais de uma estratégia, até que ele compreenda. Quando a gente manda o trabalho em casa, nós temos que pensar as possíveis dúvidas e já ir desenvolvendo conteúdo ou estratégias para que ele possa entender com mais de um exemplo. Isso gera um trabalho dobrado ao professor, que tem que pensar, escrever, tem que elaborar tudo isso e mandar para seus alunos.
Outra questão é que, ao mesmo tempo, o governo cobra que os professores façam curso de aperfeiçoamento em uma plataforma que se quer tem as condições para isso, porque cai muito facilmente. Temos relatos de professores que tiveram de acordar as quatro horas da manhã para poder acessar a plataforma e desenvolver esse trabalho de formação. Tem sido extremamente estressante e pesado. Diante das dificuldades financeiras dos professores, é mais uma sobrecarga que cai em cima deles e dos funcionários, gerando mais estresse.
BdFRS - Como ensinar em tempos de pandemia?
Helenir - Nesse tempo de pandemia, poderíamos ter simplesmente cancelado as aulas. Mas não é só no Rio Grande do Sul, têm outros estados também que tentam, de alguma forma, manter o vínculo da criança com a escola. Então a gente sabe que é extremamente deficitário, é um pequeno fio de ligação ainda entre a escola e o aluno. Não é tempo, infelizmente, não tem como a gente ensinar conteúdos. É claro que têm algumas disciplinas que são mais fáceis, que tu pode ensinar para a vida, fazendo as crianças observarem o momento, refletir sobre o momento, enfim, sempre é possível aprender, assim como ao professor e ao aluno, é um aprendizado para todos nós nesse momento.
BdFRS - Quais as perspectivas para o setor pós pandemia?
Helenir - Pós pandemia vamos ter que fazer um grande debate com a sociedade sobre a educação à distância. Acho que vai ser muito boa essa experiência dos pais e dos alunos para podermos discutir o que significa educação à distância. Mesmo que todas as condições sejam dadas, nada substitui a aula presencial para uma educação real, porque a aula presencial trabalha não só conteúdos, mas a sociabilidade, a afetividade, a humanidade e a cidadania. Portanto, essa discussão tem que acontecer e ser aprofundada após a pandemia.
BdFRS - Comentastes que o governo se aproveita da pandemia, de que forma?
Helenir - Eu digo que o governo se aproveita de um momento tão delicado que é esta pandemia para retirar nossos direitos na questão do difícil acesso. Por exemplo, uma escola onde os professores hoje ganham R$ 1.080,00 de difícil acesso, com a alteração que o governo está propondo vai para R$ 240,00.
Vejam bem, é uma categoria que está há seis anos sem reajuste, uma categoria que recebe parcelado, que está pagando até 30% do seu salário por uma greve justa que fizemos, e que, infelizmente, o estado do Rio Grande do Sul não respeita o direito à greve. Ele aproveita essa pandemia, onde não temos as condições de chamar a categoria para fazer grandes atos, para retirar mais direitos. A humanidade passa longe do governador Eduardo Leite.
* Com a colaboração de Carolina Lima
Edição: Katia Marko