“A forma como o racismo estruturou as relações de classe no Brasil segue como um fator determinante na definição de táticas, sobre o entendimento das prioridades políticas, sobre a conduta que a branquitude impõe nas comunidades negras, como se fossem objeto de política pública, e não como sujeitos capazes de analisar, formular e ser protagonistas na luta”, aponta a vereadora Karen Santos. Mulher negra, jovem, a representante parlamentar do PSOL, na Câmara Municipal de Porto Alegre, é também professora da rede estadual.
Ao analisar a participação das mulheres na política observa que dentro dos movimentos partidários e sindical existe uma barreira grande para que negros, sobretudo às mulheres, consigam se engajar de forma igualitária. Para ela, isso deriva das desigualdades produzidas pelo capitalismo e pelo racismo, que impõe ritmos de exploração e de opressão distintos.
Uma forma de reverter essa situação, opina Karen, é disputar a consciência das massas, de mulheres e homens para os ideais socialistas e igualitários. “É necessário dialogar, dialogar e dialogar. Não podemos militar, criar signos, simbologias e movimentos só pra nós mesmos. Ou buscamos a totalidade, temos uma política para o conjunto dos trabalhadores que tenha um conteúdo feminista, antirracista, anticolonial, pautado nos direitos já, tendo como motor uma verdadeira revolução, ou forjaremos guetos muito fáceis de serem abatidos por esses fascistas.”
Karen é a terceira convidada do Especial Mulheres na Política do Brasil de Fato RS, que por conta do isolamento social está sendo feito via e-mail.
Brasil de Fato RS - Gostaria de começar com um pouco da tua trajetória? Quando despertou o interesse pela política?
Karen Santos - Quando era criança me lembro de alguns fatos: meu pai era bancário do Banrisul e me recordo de termos militado na campanha do Olívio Dutra para governador do Estado. Me recordo também que meu primo havia concorrido pelo PCdoB à Câmara Municipal de Porto Alegre, e a casa da minha vó meio que virou um piquete eleitoral. Me recordo dos debates que envolviam raça e classe.
Minha família também frequentava muito os clubes negros da cidade, me lembro de pequena batendo perna no Odomodê, na Imperadores do Samba, assim como no Floresta Aurora, da qual meu pai chegou a ser conselheiro, e eu, minhas irmãs e meus primos tentamos criar um ‘grupo jovem’ que serviu pra fazer uma festa e depois se desarticulou. Na adolescência fiz capoeira na Escola de Capoeira Guerreiros, que é uma escola de capoeira muito engajada nas lutas sociais, e junto com o Mestre Farol participei de eventos como a Semana Municipal de Capoeira, Barracão da Capoeira, construímos o primeiro de encontro de mulheres do grupo – Menina Mandigueira, etc. Meu tempo de Grupo Guerreiros também foi base pro meu entendimento de política e sociedade.
Entro na UFRGS junto com minha irmã, para o mesmo curso – Educação Física. Ela para o primeiro semestre e eu para o segundo. A Renatinha ‘de cara’ se engajou no Diretório Acadêmico de Educação Física (DAEFi). Participou das lutas pelo RU na ESEF e dos encontros de área, e eu logo que entro começo a trabalhar no IBGE, onde realizo as pesquisas POF e PNAD. Ambas as pesquisas me permitem conhecer a diversidade e as desigualdades de Porto Alegre e Região Metropolitana. Termina meu contrato no IBGE e começo a participar do Movimento Estudantil, a convite da minha irmã. Primeiramente no movimento estudantil de Educação Física – MEEF/ DAEFi, e depois DCE da UFRGS. Em 2012, após a luta pela avaliação das cotas na UFRGS, criamos o Coletivo Negração, primeiro coletivo de estudantes cotistas da UFRGS. Na sequência vêm as jornadas de junho de 2013 e com isso o Coletivo Alicerce.
BdFRS - Tu és uma jovem vereadora em Porto Alegre pelo PSOL, também professora da rede estadual, mulher negra. Nessa tua trajetória como tu analisas a participação das mulheres na política e na atuação nos movimentos sociais?
Karen - Eu percebo que dentro dos movimentos partidários e sindical existe uma barreira grande para que nós negros, sobretudo às mulheres, consigam se engajar de forma igualitária. Isso ocorre pelas desigualdades concretas produzidas pelo capitalismo e pelo racismo que impõe ritmos de exploração e de opressão distintos, que objetivamente dificultam a participação e o engajamento em reuniões, campanhas, viagens, para compra de livros, para frequentar os mesmos lugares centrais, etc. Além do racismo e o machismo serem utilizados constantemente como instrumentos de poder, ou seja, para deslegitimar as discussões, para naturalizar essas condições desiguais, e para tirar o protagonismo desses sujeitos.
Com as ações afirmativas começamos a ver mudanças qualitativas na composição do movimento estudantil, mas igualmente com choques e muitas contradições.
A forma como o racismo estruturou as relações de classe no Brasil segue como um fator determinante na definição de táticas, sobre o entendimento das prioridades políticas, sobre a conduta que a branquitude se impõe sobre as comunidades negras, como se fossem objeto de política pública, e não como sujeitos capazes de analisar, formular e ser protagonistas na luta.
Já dentro das comunidades, dos terreiros, escolas de samba, clubes de mães, etc. vemos como as mulheres negras são lideranças comunitárias potentes. São elas que articulam comunidades, sabem dos problemas cotidianos de falta de água, falta de professor, e que muitas vezes não têm o mesmo entendimento do que é racismo ou machismo, mas cumprem um papel de articulação e memória dessas lutas dos bairros, dessas lutas do nosso povo.
Nesse sentido é bem complexo dizer de forma direita que a participação das mulheres negras é ‘assim ou é assado’, como se compartilhássemos todos das mesmas especificidades, cada local de atuação tem suas contradições, dificuldades e potenciais. Todos os espaços atravessados pelas relações de classe, raça e gênero.
BdFRS - Ao analisarmos a participação das mulheres, principalmente na política, observamos que vem crescendo, mas mesmo assim distante do ideal, mesmo tendo regramentos como a cota de 30%. Por que isso ocorre na tua avaliação? E dentro desse contexto, como está a participação das mulheres negras?
Karen - As mesmas dificuldades que apontei na pergunta anterior. Se queremos igualdade na política temos que exigir igualdade na sociedade. Parece uma brincadeira de mal gosto, quanto mais aumenta a pobreza, a miséria, a violência, mais se amplia a necessidade de cotas para dar uma aparência de democracia a esse Estado, visto o aumento das lutas do movimento negro e de mulheres que crescem em nosso país.
As ações afirmativas para negros e indígenas nas universidades públicas é um fenômeno que tem que ser considerado nesse sentido. Ao não se modificar as bases econômicas de nosso país, o mercado interno não absorve a força de trabalho que se qualifica. Temos muita gente com ensino superior trabalhando em qualquer coisa pra sobreviver.
Outra coisa, é que a luta por igualdade de fato não pode ser substituída pela luta por igualdade política, como se o sistema político brasileiro estivesse estruturado para as mudanças radicais que o nosso povo necessita. A luta radical contra o capitalismo e o racismo tem que ser a base de formação dessas lideranças negras, inclusive para aguentarem o que é o parlamento burguês. É muito fácil ‘cair’ no canto da sereia que só a representatividade importa. Ao mesmo tempo que ali dentro existem dois caminhos: a briga política constante pela justiça social e racial e o consequente isolamento, ou a cooptação ao que pode ser feito dentro da correlação de força, e se regozijar das parcas vitórias simbólicas que se conquista.
BdFRS - O que precisa ser feito para incentivar a participação das mulheres para que elas se tornem sujeitos desse processo?
Karen - Dentro do campo da esquerda marxista eu defendo que o debate de raça e gênero não pode ficar restrito dentro de setorial, precisamos desses elementos e desses sujeitos dentro do ponto de análise de conjuntura. Entender o que é o racismo institucional, o genocídio da força de trabalho negra, de como a segregação racial e econômica se expressam dentro do nosso país, etc. Digo isso porque ainda é muito comum recortarem a realidade no formato de ‘setoriais’ para aprofundar e depois não conseguirem mais fazer ‘o caminho de volta’.
O debate da pós modernidade, do fim da história, e da ocupação dos espaços de poder dentro da estrutura capitalista se tornou central em muitas organizações políticas de esquerda. E nesse sentido acredito que para incentivar a participação de mulheres, mulheres negras, nas mais diversas instâncias da política, temos que pautar a totalidade na sua formação política. Temos que formá-las pra entenderem de macroeconomia, incentivar a leitura dos clássicos, exercitar o debate cotidiano de situação política, dividir tarefas de coordenação de ações e projetos. E estar aberto para receber também todo acúmulo histórico e a bibliografia que não está dentro da cartilha marxista, utilizando o próprio método materialista histórico e dialética, para testar e apreender o que o povo negro trás de acúmulo político organizativo e concebe enquanto política, cosmovisão de mundo, etc.
BdFRS - Como tu definirias o papel da mulher negra na sociedade e na política. E sobre o compartilhamento político dos espaços de poder no país, ele existe?
Karen - As questões vão se complementando, de fato não tem como compartilhar o poder capitalista, racista e misógino que impera dentro das estruturas da sociedade capitalista brasileira. Compartilhar esse tipo de poder nem está no meu caminho de pretensões. Ângela Davis tem um livro que é ‘A democracia da Abolição, para além do império, das prisões e da tortura’, em que ela trata criticamente do modelo de democracia liberal que muitas vezes nos vemos defendendo.
Nesse momento difícil de acirramento da crise econômica e política temos que qualificar com mais precisão àquilo que defendemos. O papel da mulher negra na sociedade e na política é um devir, a comunidade negra analisando e se posicionando em relação aos fatos corriqueiros de violência e exploração a que somos expostas ajuda a forjar essa consciência coletiva que é necessária para entendermos qual o nosso papel coletivo e histórico.
BdFRS - Tu tens uma forte articulação com a questão quilombola. Como está a realidade desses povos aqui no Sul?
Karen - Atuamos enquanto Alicerce na Frente Quilombola/RS que basicamente se articula com os quilombos urbanos de Porto Alegre, tendo uma articulação também com o Quilombo de Morro Alto. Atualmente são sete quilombos na nossa cidade, a capital com o maior número de quilombos urbanos, sendo o primeiro titulado no Brasil o Quilombo da Família Silva. Dentro dessa nossa especificidade de territórios negros em meio urbano todos os problemas que ocorrem nas grandes cidades afetam de forma potencial esses territórios. Questões como o desemprego estrutural, a violência racista, a falta de direitos básicos são fatores que atravessam a luta pela manutenção dos territórios.
Ano passado em novembro fizemos uma manifestação em frente ao Incra, e conseguimos uma reunião com o superintendente para levar demandas referentes a demarcação e titulação dos territórios, em especial os quilombos do Fidelix, Machado e Morro Alto, que frequentemente sofrem tentativas de invasões. A reunião foi de pressão e em tom hostil. A precarização das instituições públicas responsáveis pelo acompanhamento da política indígena e quilombola é um instrumento de necropolítica, operado pelo Estado brasileiro, favorecendo setores da mineração e do agronegócio. Esse entendimento inclusive foi utilizado pelo superintendente para justificar sua morosidade em frente ao cargo que ocupa. Nesse sentido estamos em mobilização constante, nesse momento de combate a pandemia ao coronavírus a Frente Quilombola/RS está acompanhando de perto as necessidades dos quilombos, com uma campanha de arrecadação de cestas básicas, fabricação artesanal de EPIs, e também organizando pressões para que o Poder Público se responsabilize pelas demandas urgentes das comunidades.
BdFRS - Como tu analisas a atuação das mulheres, em geral, e também com um recorte específico das mulheres negras, no atual contexto de um governo de extrema-direita? Como garantir uma real democracia?
Karen - As mulheres estão na linha de frente de greves e mobilizações desde 2013. Percebo que nas ocupações das escolas houve lideranças femininas sendo perseguidas e criminalizadas, nas greves do funcionalismo público também. O março feminista desde então vem pautando um caráter de classe articulado com os problemas atuais e históricos que enfrentamos. Para além da liberdade sexual e reprodutiva que sempre foram pautas históricas, vemos as mulheres lutando contra a reforma da Previdência, por acesso a moradia digna, pelo direito de poder ter seus filhos longe da violência obstétrica, e vê-los crescer. Essa pluralidade de lutas é característica de uma sociedade como a nossa, que é plural, e o respeito a essas demandas faz o movimento crescer e ter a capilaridade que um Brasil do tamanho de um continente exige.
Processos como esses fortalecem uma perspectiva de luta, que abarque as questões de classe, de gênero, de religiosidade, de regionalidade, de sexualidade, de raça... afinal a realidade é interseccional, não em caixinhas. Somos atravessadas por inúmeras opressões, e o sistema opera esses níveis e ritmos distintos justamente para operar a fragmentação das lutas. A busca pela totalidade, e não de uma ‘pauta em comum’, mas a raiz histórica desses problemas é o que tem que nos interessar, obviamente sem abrir mão da particularidade.
É um exercício que a luta nos permite e exige fazer. Frente a esses governos de extrema-direita precisamos disputar a consciência das massas, de mulheres e homens para os nossos ideais socialistas e igualitários. É necessário dialogar, dialogar e dialogar. Não podemos militar, criar signos, simbologias e movimentos só pra nós mesmos. Ou buscamos a totalidade, temos uma política para o conjunto dos trabalhadores que tenha um conteúdo feminista, antirracista, anticolonial, pautado nos direitos já, tendo como motor uma verdadeira revolução, ou forjaremos guetos muito fáceis de serem abatidos por esses fascistas.
BdFRS - O machismo, na política, ainda persiste? Como ele se manifesta?
Karen - Objetivamente dentro do parlamento percebo que se manifesta na forma de chacota e piadas internas machistas, criando um ambiente hostil a manifestação de problemas centrais que atravessam a vida das mulheres trabalhadoras, como necessidade de moradia, resistência aos ataques ao plano de carreira de categorias majoritariamente femininas, como magistério, saúde e assistência.
Na diminuição dos argumentos levantado por mulheres ou na apropriação desses argumentos, desconsiderando o sujeito da fala; na falta de iniciativa dos homens em articular questões políticas centrais com mulheres que estão à frente de processos de luta e que remetem questões à Câmara, na expectativa criada de que a nossa pauta é basicamente restrita ao debate pós moderno de gênero, o feminismo liberal. Enfim, daria pra escrever um livro só de situações peculiares que nos deparamos cotidianamente na Câmara, e imagino que nos outros espaços institucionais parlamentares deva ser o mesmo, justamente porque são os mesmos setores que historicamente ocupam esses locais de decisão.
BdFRS - Como as reformas têm impactado na luta pelos direitos das mulheres?
Karen - As reformas empurram as condições de vida e de trabalho da população de um modo geral pra baixo. E pensando numa sociedade que se organiza a partir de marcadores sociais excludentes, quem massivamente acaba sendo expulso do trabalho formal para o trabalho informal, do emprego para o subemprego ou desemprego, e consequentemente mais necessitará das instituições públicas, são essas categorias que são a maioria.
Nosso modelo de capitalismo é muito excludente, a maioria da população, feminina e negra, é alijada do básico de direito e dignidade. Esse modo de reprodução do capitalismo que como diria Mészaros ‘tapa um buraco cavando outro’, e o Estado ultraliberal adotado desde o golpe de 2016 como uma resposta crítica ao problema da crise estrutural no nosso país, é um esquema político que não tem nada a oferecer aos trabalhadores e despossuídos. Nos colocaram numa sinuca de bico: vocês querem emprego ou direitos? E nesse sentido o desemprego de um lado e o trabalho extremamente precário do outro é o que vêm sendo oferecido a nossa classe. Estamos a dez anos com dois dígitos de desemprego, e ninguém debate uma saída imediata para esse problema.
BdFRS - Neste momento que enfrentamos a crise gerada pela pandemia do coronavírus, como você avalia a situação das mulheres? E o que precisa ser feito?
Karen - Vivemos um momento de muita confusão política sobre o que fazer e sobretudo como fazer, com que fazer, no sentido das mudanças estruturais que precisamos pra resolver o problema do desemprego, da miséria, da existência de bilionários e de pessoas em situação de rua. Precisamos de uma mudança no modo de produção que está levando a humanidade pra um buraco. O capitalismo não tem respostas para os problemas que enfrentamos. Esse é um debate complexo, mas mais complexo é conseguir desenvolver força social nesse sentido da raiz do problema, num momento que a maior parte das organizações políticas de esquerda estão mais preocupadas com as próximas eleições, ou com salvar o arranjo da Nova República que está sendo a quase uma década questionada pela crise econômica estrutural que afeta Brasil e Mundo.
É um momento de exercer muita solidariedade e de muito trabalho político de agitação das denúncias dos problemas que surgem a todo momento, e de propaganda política das ideias socialistas. Criar força social empoderada de um projeto de poder nosso, de quem vive do próprio trabalho.
BdFRS - Que mundo há de vir passada essa fase?
Karen - A gente entende que os sintomas da crise estrutural do sistema capitalista vão agravar ainda mais a condição de miséria e exploração nos países do globo, sobretudo àqueles que passaram por processos de escravização e colonialismo, como é o caso do Brasil. O endividamento dos estados com as Organizações Multilaterais imporá um ajuste econômico e fiscal maior aos trabalhadores, e uma reestruturação produtiva, advinda da implementação das novas tecnologias que igualmente serão utilizadas pra maximizar a produtividade, visando o lucro, em detrimento de desemprego, genocídio, e destruição do meio ambiente.
A análise da situação, nesse sentido, segue pessimista, principalmente porque no caso do Brasil em particular, já vivíamos o acirramento do ajuste neoliberal como alternativa pra crise do capital. Ao mesmo tempo é tempo de revoltas, o ser humano resiste à desumanização, à exploração e à opressão. Nosso povo brasileiro que compôs diversas revoltas da senzala, a constituição de quilombos, das guerrilhas a protestos massivos por democracia e por direitos como em 2013, há de ser testado novamente. A questão é: que lições tiramos desses processos e o que teremos a oferecer pra esse povo que vem sucessivamente sendo boicotado, perseguido e criminalizado em suas ações.
Edição: Katia Marko