Em momentos como este, a face mais perversa da desigualdade fica evidente
Esse poderia ser um bom título de um filme de ficção, mas está mais para ser de uma crônica destes tempos atuais. Os fatos do dia a dia, principalmente aqueles protagonizados por representantes do governo, parecem indicar claramente que há um processo de escolha de quem está destinado a morrer. Aparentemente, nas planilhas do governo as vidas de cada um são apenas números, às vezes com sinais positivos, outras com sinais negativos.
Comecei a escrever este texto há duas semanas e confesso que está sendo difícil concluí-lo, pois, praticamente, a cada dia surge um fato novo relacionado a essa ideia que me faz voltar a ele para atualizar ou reescrever alguma coisa. Aliás, o cotidiano tem sido extremamente fértil e estimulante a quem pretende contar a realidade, mas frenético demais para quem se dispõe a analisá-la minimamente. As recentes manifestações públicas contra as medidas preventivas, com participação do próprio presidente da República, pedindo intervenção no Congresso e na Justiça, beiram à uma espécie de insanidade coletiva diante da gravidade da crise.
Em plena pandemia, a exoneração do antigo ministro da Saúde se dá simplesmente porque sua determinação de implementar as orientações técnicas e científicas de combate à pandemia contraria a opinião do presidente, que se vangloria por ter nomeado mais ministros técnicos do que políticos. O novo ministro da Saúde, por algumas de suas declarações anteriores, parece não ter muitos pruridos em relação à negação da ciência, nem em relação à importância de salvar vidas. Em um vídeo, que circula nas redes, ele, de forma muito pragmática, diz que há vidas que merecem mais ser salvas do que outras. Segundo o ministro, o mesmo valor que se gasta para salvar uma pessoa idosa poderia ser usado para salvar a vida de um jovem adolescente e que essa deveria ser a escolha a ser feita. Em outro momento, ele afirma que os gastos com compra de respiradores são desnecessários, pois estes respiradores não teriam função depois da pandemia, ou se viesse alguma cura para a doença, este gasto representaria um desperdício.
É preocupante que uma pessoa que atribua à vida valores distintos em função da idade ou das condições de cada um, ou que faça uma análise fria de custo/benefício para salvar vidas, seja o nosso ministro da Saúde. É como se um bombeiro, no combate a um incêndio, sabendo que há pessoas vivas nas chamas, resolvesse economizar água ou colocasse em dúvida qual seria o valor da vida que estaria sendo salva.
Um pouco antes, o presidente do Banco Central do Brasil, Roberto Campos Neto, em palestra proferida para investidores, dizia que reduzir as mortes por covid-19 seria pior para a economia. Para Campos Neto, neto do conhecido e liberal ministro do Planejamento da ditadura militar, o colapso na Saúde pública seria um preço razoável a pagar em nome dos lucros, na contramão, portanto, do que dizem mais de 700 pesquisadores, a maioria de universidades europeias, em documentos compilados pelos economistas Richard Baldwin e Beatrice Weder di Mauro, lançados em 18 de março deste ano, para quem “perder vidas para preservar a economia não deve ser sequer uma opção considerada pelos líderes mundiais".
Essa visão mercantilista da vida é, de certa forma, estimulada pelo próprio presidente da República que insiste em minimizar os efeitos da crise sanitária, mesmo agora, quando está muito evidente a gravidade da pandemia. Mais grave, ainda, são as carreatas que tomam as ruas para exigir a interrupção das medidas preventivas, alguns promovendo manifestações provocativas em frente a hospitais, onde profissionais da Saúde arriscam suas vidas para garantir condições mínimas de sobrevivência a milhares de pessoas infectadas. Outros afirmam publicamente que a morte de 6 a 7 mil pessoas seria um dano menor do que a crise econômica.
É difícil de acreditar que essas pessoas acreditem que a pandemia realmente não existe, já que os fatos escancaram a realidade. Muito mais razoável, portanto, é pensar que eles realmente defendem o aumento do número de óbitos ou que eles, simplesmente, não se importam com as mortes, dede que sejam dos outros, já que, até mesmo para atrapalhar os tratamentos, eles o fazem de forma segura do interior dos seus carros.
Obviamente que há mortes que são imprevisíveis e inevitáveis. No entanto, esta pandemia nos coloca diante de uma ameaça previsível e, portanto, com mortes evitáveis. É um vulcão que está prestes a explodir, em data certa e conhecida, logo aí na frente. Estamos falando de uma epidemia que se alastra de forma muito rápida, mas que já conhecemos razoavelmente seus efeitos. Portanto, a situação exige ações muito rápidas para salvar vidas, como o distanciamento ou isolamento social, ainda que com todos os seus efeitos colaterais inevitáveis para a atividade econômica. Mas é justamente aqui que aparecem os conflitos que nos colocam diante de uma crise civilizatória e humanitária, antes de uma crise sanitária. Afinal, qual é o preço que estamos dispostos a pagar para salvar vidas? Esta é a questão central que está substituída por esta outra: Qual o preço que estamos dispostos a pagar para salvar a economia?
É falso o argumento de que não há dinheiro, e isso já foi demonstrado por vários especialistas[1], pois não há limites financeiros para os gastos do governo que tem soberania monetária e fiscal, que tem autonomia para arrecadar tributos, emitir moedas e emitir títulos públicos. Os limites, auto impostos, são políticos e ideológicos. Insistir no discurso da austeridade fiscal, do Estado Mínimo e da manutenção do teto de gastos, como aparecem nas premissas utilizadas pelo governo federal na elaboração do PLDO 2021[2], significa ampliar enormemente a lista dos escolhidos para morrer e definir o perfil dos escolhidos.
A covid-19 não escolhe vítimas e todos estamos sujeitos a sermos contaminados pelo coronavírus, sejamos ricos ou pobres, negros ou brancos, homens ou mulheres. Mas a realidade não é bem assim! Sabemos que muita gente tem condições mais favoráveis do que muitos outros. Há quem possa se isolar durante toda a pandemia e aqueles que não podem, seja porque são eles os profissionais que vão salvar vidas, são os que trabalham para garantir o abastecimento, são trabalhadores informais que precisam buscar alguma renda para sobreviver, ou são aqueles impossibilitados de se isolarem por falta de moradia.
Então, as condições sociais, econômicas e profissionais de cada um determinam o grupo dos escolhidos para morrer ou o grupo dos escolhidos para se salvar. Em momentos como este, a face mais perversa da desigualdade fica evidente e determina de forma concreta o grupo dos mais propensos a morrerem. Por outro lado, é aqui que o Estado deveria intervir de forma mais efetiva, garantindo a todos as mesmas condições de prevenção, com manutenção de renda e boas condições de isolamento social, garantindo de condições adequadas e seguras de trabalho aos profissionais da Saúde e de outras atividades essenciais, ampliando a capacidade de atendimento do Sistema de Saúde. A ação do Estado, portanto, é a única forma de inverter as previsões catastróficas que a pandemia projeta e para isso é preciso gastar o que se tem e o que não se tem, ainda que seja emitindo moeda ou títulos públicos, e encaminhar de forma urgente medidas para elevar a tributação das parcelas mais ricas da população e dos setores altamente lucrativos como o setor financeiro.
Entretanto, o que se vê é que a efetivação das políticas públicas é frustrada toda vez que o presidente da República, dizendo representar milhares de trabalhadores informais ou desempregados, que estão em situação de vulnerabilidade social, defende o fim do isolamento. O que ele afirma, implicitamente, é que o Estado não vai socorrer estas pessoas, garantindo a elas também o direito de viver. A demora na liberação dos recursos para permitir o aumento na capacidade de atendimento do SUS, e para garantir renda emergencial aos desempregados e aos trabalhadores informais, somadas à MP 927 que permitia às empresas suspender os contratos de trabalho sem remuneração e que sendo alterada pela MP 936, que permite a redução dos salários, são indicativos muito claros de que o governo parece estar mais preocupado com a saúde econômica dos empresários do que com a vida dos trabalhadores.
Enquanto isso, empresários continuam ocupando as avenidas com seus carrões de luxo, interrompendo o trânsito, atrapalhando o ir e vir das ambulâncias, debochando das mortes e dos profissionais da Saúde, e são seguidos por uma horda de manifestantes que desafiam as evidências e saem às ruas sem a proteção hermética dos automóveis, acreditando cegamente que tudo não passa de uma grande conspiração comunista contra o governo, sem perceberem que eles também fazem parte daqueles escolhidos para morrer.
Para os neoliberais, defensores do Estado Mínimo, a pandemia talvez nem seja um problema, mas uma oportunidade de livrar o Estado dos custos de proteção social daqueles que mais necessitam, ou seja, os “velhinhos doentes”. Desde que a maior propensão a morrer esteja localizada nestes grupos mais vulneráveis, tudo bem. E é por isso, talvez, que eles tratam com tanta naturalidade a morte dos mais fracos e dos já debilitados.
Vivemos tempos estranhos, sem dúvida alguma, difíceis de serem compreendidos. Como poderíamos imaginar que o direito à vida pudesse ser relativizado? Talvez a experiência histórica que mais se aproxime desta realidade de contradições que vivemos seja o período inicial da revolução industrial, em que a vida e a saúde dos trabalhadores (homens, mulheres e crianças) só importavam enquanto tinham capacidade de trabalhar, e milhões de pessoas, viviam, comiam, dormiam e morriam nas linhas de produção, sem quaisquer direitos. Os direitos humanos, duramente conquistados pela civilização, diante desta calamidade, parecem estar sendo colocados em cheque. Por isso, a defesa intransigente da vida se torna imperativo categórico[3] e, proteger a vida de todos, sem discriminação, ainda que às custas de uma crise econômica, é a única forma de não retroceder.
[1] Sobre esse assunto, recomendo ler ou assistir as entrevistas do economista Pedro Rossi.
[2] Em apresentação do Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias para 2021, o Ministério da Economia apresentou como premissas a manutenção da austeridade fiscal para 2021-2023 e o Teto dos Gastos previsto pela EC 95/2016.
[3] Conceito desenvolvido pelo filósofo alemão Immanuel Kant para criar um sistema moral que pudesse escapar dos aspectos subjetivos do utilitarismo. Define que seria inegociável e que independe dos fins que se queira alcançar.
Edição: Katia Marko